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A falta que faz a produtividade

Marcos Lisboa / Foto: Bruno Leite
Marcos Lisboa / Foto: Bruno Leite

Marcos de Barros Lisboa é mestre em economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com doutorado em economia pela University of Pennsylvania. É vice-presidente do Instituto de Ensino e Pesquisa, foi professor assistente da Stanford University e da Escola de Pós-Graduação em Economia, da Fundação Getulio Vargas.
Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, de 2003 a 2005, e presidente do Instituto de Resseguros do Brasil, de 2005 a 2006. Atuou também como diretor executivo e vice-presidente do Itaú-Unibanco.
A palestra de Marcos de Barros Lisboa, com o tema “Desafios para o Crescimento Econômico”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 10 de outubro de 2013.

No Brasil, o centro da discussão sobre política econômica esteve tradicionalmente na macroeconomia, por razões naturais. A macroeconomia sempre foi o desafio do país, que conviveu com inflação elevada, crises externas, graves problemas nas variáveis econômicas, o que desperta naturalmente a atenção da política pública para esses temas. Durante muito tempo se acreditou que, uma vez enfrentados os problemas macroeconômicos – inflação, desequilíbrio nas contas externas e nas contas públicas –, o crescimento estaria assegurado. Podia haver divergência entre economistas sobre a melhor combinação de juros e câmbio, mas estaria nessas variáveis o grande roteiro para o sucesso da economia brasileira? Um pouco da minha carreira permitiu mostrar que não.

Para a economia crescer é fundamental um câmbio equilibrado e uma política fiscal ajustada, mas isso não seria suficiente nem de longe. Crescimento da renda per capita é a capacidade de a economia produzir mais bens, mais serviços, mais renda com os fatores de produção disponíveis – trabalho, capital e educação. A raiz do crescimento econômico está no aumento da produtividade. A macro pode ser um obstáculo ao crescimento, pois não viabiliza um aumento maior da renda per capita.

Isso leva à necessidade de uma agenda que avance além dos temas da macroeconomia. Durante muito tempo esses pontos estiveram equilibrados. Após a crise de 2008, porém, houve uma inversão importante do binômio câmbio-juros. Havia uma expectativa por parte dos economistas de que com o câmbio mais alto e os juros mais baixos o desenvolvimento viria, auxiliado, sobretudo, por políticas de estímulos do governo. O país vive uma grande frustração, porque o esperado, não apenas pelo governo, mas também por diversas lideranças da nossa economia, não ocorreu. Apesar dos juros para baixo, do câmbio para cima e dos imensos estímulos que o governo promoveu em cinco anos, o crescimento tem sido bastante medíocre, entre 2,3% e 2,7%.

Não parece haver nenhum sinal de mudança nesse campo. Não é o quadro de uma economia com graves dificuldades, com um sério problema inflacionário, nem se trata de uma economia que enfrenta forte desaceleração. Nada disso; é preciso dosar com muito cuidado os adjetivos. É uma economia com crescimento mediano.

Desde o final dos anos 1970, os dados econômicos têm apresentado um comportamento bastante medíocre em termos de crescimento, em alguns momentos com graves crises macroeconômicas, como nos anos 1980, mas mesmo depois da estabilidade. Mesmo olhando mais para trás, desde os anos 1950 nossa economia não conseguiu convergir para a renda dos países desenvolvidos. Em termos de renda per capita, a economia brasileira era equivalente a 15% da americana em 1950, passou para 20% em 1960, chegou a 30% em 1980, caiu novamente para 20% e agora está próxima de 28%. Temos um terço da renda per capita dos países desenvolvidos, há várias décadas. O espelho do comportamento da renda é o comportamento da produtividade, que cresce como a fronteira do mundo, 2% ao ano. O mundo avança, o Brasil avança, mas a distância não diminui, ao contrário de outros países que tiveram muito sucesso em convergir sua renda à dos países desenvolvidos.

Por que nossa produtividade cresce tão pouco? Se ela avançar 1% ou 2% ao ano, isso significa que a renda per capita vai subir 1% ou 2% ao ano, que é o que o Brasil tem crescido nos últimos anos. Em alguns breves momentos tivemos um comportamento diferente da produtividade, como no final dos anos 1960, que depois constituíram o “milagre econômico”. Houve também um período que gerou muito otimismo, em meados da década passada. No governo Lula nossa economia cresceu mais, porque a produtividade aumentou. Não foi porque acumulou mais trabalho ou mais capital. Será que ela pode voltar a crescer mais? A resposta infelizmente é não.

A produtividade do trabalho, desde o fim do governo Luiz Inácio Lula da Silva, tem apresentado crescimento zero. Tradicionalmente o Brasil possui baixo crescimento da produtividade e isso se traduz em baixo crescimento da renda. Houve uma exceção entre 2007 e 2008, mas a partir daí, infelizmente, o padrão anterior retornou e na sequência a economia voltou a crescer menos.

Esse comportamento da produtividade não foi homogêneo em toda a economia, alguns setores tiveram forte crescimento nesse período, como o comércio, serviços e administração financeira, enquanto se expandiu o agronegócio. Esses setores puxam a média de crescimento da economia para cima.

Por que o agronegócio e algumas áreas da economia tiveram tanto sucesso enquanto o resto da economia apresentou mais dificuldades? E, o pior, por que desde 2008 parece que a parte da economia que ia bem está convergindo para a parte da economia que não vai tão bem? Em vez de o Brasil que estava com dificuldades convergir para o Brasil que ia bem, está acontecendo o inverso.

O emprego ainda vai bem, porque a parte da economia que estava melhor nesse período, a dos serviços, emprega de dois terços a três quartos da população brasileira. Não é um emprego de grande qualidade, de maior remuneração, mas de média qualificação. Como esse setor ainda vai bem, mesmo que nem tanto quanto no passado, o emprego continua bem. Esse é o quadro da nossa economia.

Ganhos do agronegócio

Vou contar algumas histórias e a primeira é a do agronegócio. Afinal de contas, como é que ele possui um sucesso tão grande? Para ter uma noção do que isso significa, o agronegócio brasileiro teve o maior crescimento de produtividade, na década de 2000, entre todos os agronegócios do mundo. Cresceu quase 6% ao ano, de 1990 para cá. A produção subiu quase quatro vezes e a área plantada não aumentou, ou seja, a mesma área plantada produziu quatro vezes mais com cerca de 8% a menos de trabalho e 30% a mais de capital. Portanto, com os mesmos fatores de produção, terra, trabalho e capital, foi possível obter quatro vezes mais do que se produzia em algumas décadas. É impressionante, vamos imaginar a mesma fábrica com o mesmo número de trabalhadores produzindo quatro vezes mais. E sem infraestrutura. O agronegócio supera a logística pelo ganho dentro da fazenda. Se a logística fosse melhor, nosso agronegócio seria imbatível.

A história do agronegócio parece ser a de uma política pública bem-sucedida, com os seguintes componentes: em primeiro lugar a tecnologia. O Estado contribuiu por meio das universidades federais, da Esalq [Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”] e outras, e da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] para o desenvolvimento da tecnologia que permitiu adaptar culturas temperadas ao cerrado e às regiões tropicais brasileiras. A soja é o maior exemplo disso, mas não é só, há também o desenvolvimento da safrinha do milho. Antigamente, onde se produzia soja, só se plantava soja, hoje vemos fazendas com 15 tratores colhendo soja e a dez metros dali outros 15 plantando milho. É a famosa safrinha do milho, hoje tão grande quanto a própria safra do milho. Foi assim que se quadruplicou a produção em poucas décadas.

A tecnologia do agronegócio começou a ficar disponível a partir dos anos 1970. Até o fim dos anos 1980, ainda sugava 3% de subsídios públicos ao ano, numa economia bastante fechada e isenta de competição. Com a grave crise dos anos 1980, entre o fim do governo José Sarney e o início do governo Fernando Collor, os subsídios foram cortados a um terço e se abriu a economia à competição. Isso gerou oportunidades e dificuldades para diversas empresas do setor. As mais eficientes reagiram, importando máquinas e insumos melhores, investindo na produtividade. As menos eficientes foram compradas e seguiram-se anos difíceis para o setor. Mas houve imensas consolidações e surgiu a grande produção do nosso agronegócio moderno. O sucesso do setor parece ser o resultado da combinação de uma boa política pública, do desenvolvimento de tecnologias adaptativas e da pressão competitiva. Mais: a abertura comercial e o acesso à melhor tecnologia internacional. Uma boa parte dessa tecnologia vem de navio, em insumos ou máquinas, bens de capital.

Essa história não é restrita ao Brasil. Quando se compara a produtividade entre diversos países, por exemplo, Estados Unidos, China e Índia, as empresas mais eficientes não estão muito distantes entre si, nos três países, ou seja, sua produtividade é parecida. A diferença é a que China e Índia têm muito mais empresas improdutivas ou menos produtivas. Não é tanto a empresa mais produtiva que faz a diferença, mas a existência de várias empresas improdutivas, devido a proteções que parecem jogar para baixo a produtividade nos países em desenvolvimento. Mais: no caso da economia americana o que se percebe é que o ganho de produtividade em geral vem das novas empresas, que vão incorporando as tradicionais e pressionando os ganhos de produtividade. Esse ciclo de renovação constante das empresas leva ao crescimento contínuo da produtividade, no caso americano. É uma vida de competição, difícil, de tensão permanente, por isso mesmo uma vida com estímulo permanente, que leva ao desenvolvimento de tecnologias e de técnicas mais eficazes. A história do agronegócio brasileiro parece reproduzir a de setores bem-sucedidos em outros países.

Mercado de crédito

Uma segunda história é a de inovações que ocorreram no sistema financeiro, sobretudo na década de 2000. Aqui, o crédito privado sempre foi extremamente baixo, com muitas dificuldades para ser estabelecido. Mesmo em períodos de baixa inflação, o Brasil é um dos países com maior taxa de inadimplência. Por exemplo: no auge da crise de 2008, a modalidade de crédito mais arriscada do mercado americano, o cartão de crédito, teve uma inadimplência de cerca de 4,5%. No Brasil a taxa de inadimplência normal para todo crédito de pessoa física é de 8% a 10%. Ou seja, o normal para nós representa duas vezes o pico da crise da pior modalidade de crédito americano. Nos Estados Unidos, retoma-se uma casa com dois ou três meses de inadimplência. Aqui recupera-se cerca da metade dos automóveis, meses e meses depois, pendurados em dívidas e multas.

A partir de 2001 foram introduzidas diversas inovações institucionais que minoraram parcialmente esses problemas do mercado de crédito. Vou contar duas histórias curtas. A primeira é do consignado. Até 2003, se alguém quisesse comprar uma geladeira financiada, pegava o carnê na loja ou ia buscar empréstimo pessoal no banco, pagando prestações mensais. É o tradicional crédito pessoal, que ainda existe no Brasil, cuja taxa de juros sempre foi na faixa de 7,5% a 8% ao mês. Com o crédito consignado o cliente faz o mesmo empréstimo para a mesma geladeira, mas em vez de carnê o banco desconta da folha de pagamentos. Isso implica em menor risco, pois, a menos que o cliente perca o emprego, o valor vai ser descontado em folha. A inadimplência esperada, portanto, é menor.

Quando estive no governo houve um debate para avaliar se o consignado reduz o custo da operação de crédito, já que diminui a inadimplência. Mas qual é a consequência dessa redução? Será que ela garante menor taxa de juros ou maior spread bancário? Havia um forte debate para saber em que medida o sistema bancário é competitivo. Se é pouco competitivo, o custo menor gera maior lucro. Se é competitivo, o custo menor leva a menor taxa de juros. O consignado é o que os economistas chamam de um experimento natural, uma mudança exógena. Ele foi introduzido e a taxa de juros caiu de 7,5% para 3,5% na época e hoje está em torno de 2%. O spread caiu em três quartos e ocorreu uma queda muito importante da inadimplência. Rapidamente ele se tornou a maior modalidade de crédito pessoal no Brasil, com juros à metade ou a um terço do valor que tinham anteriormente.

Esse mesmo movimento ocorreu com outras modalidades de crédito, como alienação fiduciária ou patrimônio de afetação por mercado imobiliário. Independente do debate sobre a taxa básica de juros, na década de 2000, novas modalidades de crédito foram introduzidas, com spread significativamente menor do que as anteriores e incorporando grupos até então excluídos do mercado de crédito. Pequenas e médias empresas, por exemplo, foram os setores em que mais cresceu a oferta de crédito nos últimos anos, num nível sem precedente. A taxa de juros para pessoa jurídica, mesmo com a incorporação de empresas de maior risco, caiu à metade do que era no começo da década. Isso é ganho de produtividade.

Com a mesma tecnologia utilizada para captar depósitos, o sistema financeiro passou a oferecer volumes muito maiores de crédito. O crédito privado passou de 10% para 30% do PIB, com juros na ponta muito menores e para grupos que não tinham acesso a ele. Simultaneamente, desenvolveu-se o mercado de capital, que permitiu às empresas arrecadar recursos para crescer a custos muito menores do que até então.

Sem governança

Vejamos as histórias difíceis. Uma delas é a da grande indústria brasileira de transformação. A indústria, por características de sua função, é o espelho da grande dificuldade na realização de investimentos no Brasil. Em todo o processo de autorização, burocracia e graus de controle, a evidência episódica sugere que realizar investimentos no Brasil tornou-se cada vez mais complexo, a começar pelo licenciamento ambiental. Vou deixar de lado a discussão se temos controle demais ou de menos, mas há falta de uma clara governança no processo de realização dos investimentos. Nos países de tradição anglo-saxã os agentes públicos têm uma clara jurisprudência de suas alçadas e mandatos, o que podem autorizar, o que é permitido e quem fiscaliza. A discussão dos órgãos de controle não é sobre o mérito da decisão, mas se ela seguiu as alçadas. Existe uma clara atribuição de mandatos, de quem decide, do que pode ser decidido e os órgãos de controle verificam se o critério foi cumprido ou não. Isso é tão forte na tradição americana que, frequentemente, na Suprema Corte, o juiz vota contra sua consciência. Ele discorda, mas não pode questionar o que a seu ver deveria ser o certo, tem de discutir a moldura legal. Houve casos pitorescos como o do juiz Antonin Scalia que votou a favor do direito de queimar a bandeira americana, apesar de ser radicalmente contrário a isso.

Não é o nosso caso. Na tradição brasileira tem ocorrido crescentemente a ausência de um claro mandato para as agências públicas. E quando existe um mandato claro, ele costuma ser questionado. Mais: falta clareza sobre qual é o órgão de controle e qual o processo de aprovação do investimento. E há uma discussão frequente do mérito, os investimentos em hidrelétricas, em estradas, em portos, que esbarram em grupos de interesse e em pequenas discussões. Quem decide? Qual é o critério de compensação? Nas empresas existem mandatos claros, a aprovação de crédito cabe a uma comissão e o que ela decidir a auditoria não questiona. A auditoria das empresas vai verificar se foi cumprido o mandato previamente definido e se foram seguidas as regras. Não é assim, no entanto, com o investimento no Brasil. E na falta de regras claras, mandatos e princípios bem definidos, liminares são concedidas, porque cabe ao juiz defender a minoria.

Assim, hidrelétricas demoram 40 anos para ser construídas. Isso vira custo de capital. Já tivemos a energia mais barata entre os países emergentes, hoje temos uma das mais caras, apesar de todo o nosso potencial hídrico. Isso ocorre também em obras extremamente simples como na duplicação de estradas.

A respeito do agronegócio, nada mais natural do que ligar o centro-oeste a um porto ao norte do país e de lá embarcar soja. Essa estrada está planejada há dez anos e não sai. Nada é ecologicamente mais correto e aparentemente mais trivial do que o mineroduto – um tubo subterrâneo pelo qual passam pedras e água. É difícil imaginar alguma obra que gere menor intervenção no meio ambiente sem afetar grupos de interesse. Não há desapropriações e se houver vazamento será somente de água. No entanto, o mineroduto, que a Anglo American comprou do Eike Batista, em 2006, que deveria ligar a mina a um porto e que seria concluído em um ano, até hoje continua inacabado. A revista “The Economist”, que gerou celeuma, tratou desse caso e de toda a dificuldade em relação aos investimentos no Brasil. Isso afeta a indústria, obviamente, porque ela depende de investimento físico. Afeta a infraestrutura e o país, criando custo para todas as atividades produtivas.

Esse é o quadro da nossa economia, que passou por reformas importantes desde o fim do governo Sarney. Com a abertura comercial, o que aconteceu com o agronegócio aconteceu com outros setores. O acesso a bens de capital e insumos mais baratos, produzidos no exterior, gerou ganhos de produtividade. O agronegócio particularmente se beneficiou disso, exposto à competição. E o ganho de produtividade do agronegócio com a abertura vale para o resto da economia.

Tenho um trabalho com dois coautores, em que analisamos duas mil empresas entre 1988 e 2001. Na evolução da produtividade dessas empresas, o fator determinante foi o acesso a bens de capital. Então tivemos reformas importantes, abertura comercial, a estabilização e algumas reformas institucionais que permitiram ganhos de produtividade em setores específicos, como o sistema financeiro. Não podemos esquecer a privatização, que também levou a grandes ganhos de produtividade em outros setores, como no caso das telecomunicações, mas não só. Surpreendentemente, existem trabalhos mostrando que a privatização tem inclusive efeitos indiretos, por exemplo, no caso de saneamento. Em uma mostra de três mil municípios brasileiros, alguns privatizaram saneamento, outros não, pode-se mensurar qual foi o comportamento da mortalidade infantil. Para surpresa de alguns, as cidades que privatizaram são as que tiveram menor evolução da mortalidade infantil e dos índices de morbidade. Isso vale para outros países também.

A abertura comercial, exposição à competição, privatização, estabilidade, equilíbrio fiscal, maior segurança sobre as regras do jogo e algumas reformas institucionais, como no caso do mercado financeiro, permitiram um comportamento médio da economia melhor do que na década de 1980. Alguns setores tiveram forte aumento da produtividade, puxando um maior crescimento nos anos 2000. A isso se somou um choque externo favorável que beneficiou alguns setores adicionais. Essa parece ser a história do maior sucesso da economia brasileira até meados da década passada, esse breve interregno de maior crescimento da produtividade em décadas de baixa evolução.

Atraso

No Brasil, a história se repete, como dizia o velho Karl Marx, como farsa. A América Latina tem um processo de desenvolvimento peculiar quando comparado com a América do Norte e o Brasil é um destaque nesse processo. A América Latina combina economias profundamente desiguais com uma forte intervenção do Estado e sistemas políticos bastante restritivos. A democracia chegou tarde à América Latina, a economia de mercado chegou tarde e o Estado chegou cedo, não o Estado tradicional da saúde e da educação, mas o Estado interventor, coordenador do desenvolvimento e que transfere recursos entre agentes privados. Em todos os indicadores, da política aos sociais, comparados com os da América do Norte, é impressionante o tempo que se demora para avançar. Os indicadores de democracia, percentual da população que vota, taxas de analfabetismo, gastos públicos com educação e saúde em geral estão cem anos atrasados, até a redemocratização.

São sociedades desde a colonização com forte intervenção do Estado, extrativistas e com aparelhos repressivos fortes. No Brasil, após Getúlio Vargas esse grande Estado interventor assume o discurso do nacional desenvolvimentismo, cujo papel é não apenas mediar as relações sociais como coordenar e induzir o desenvolvimento. Esse Estado importa instituições da Itália de Benito Mussolini, define os órgãos de representação do setor privado, as instâncias de mediação de conflitos do setor privado, retira da negociação privada e traz para o espaço público a mediação de todos os conflitos. Assim, do social à política e à economia cabe ao Estado coordenar e mediar as decisões privadas, definir quem investe, onde investe, quanto investe.

Esse Estado desenvolvimentista persiste na democratização, com algumas características surpreendentes. Por um lado, as demandas pela intervenção do Estado crescem. É o Estado que define a atividade privada num nível de detalhamento sem precedentes, de taxas múltiplas de câmbio a decisões sobre exportação. Até os anos 1980, quase todos os preços da economia eram tabelados, de seguros a diversos serviços. A taxa de câmbio era diferenciada por setor e o governo definia quem podia exportar, o preço e a quantidade de quem exportava. Com a democratização há um aumento da demanda, todos estão pedindo privilégios e benefícios por parte do Estado, o que leva a uma exacerbação dos conflitos políticos. A concessão de privilégios e benefícios e o descontrole fiscal levaram à grave crise dos anos 1960, já no fim do governo Juscelino Kubitschek de Oliveira, quando a inflação chegou a dois dígitos num país com uma economia estagnada e severa crise política.

Essa crise teve um desfecho trágico, que foi o golpe militar. Era uma ditadura, mas pela primeira vez na história brasileira houve um conjunto de reformas liberais, o chamado Paeg [Programa de Ação Econômica do Governo], com Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos, uma agenda de reformas que produziu diversos instrumentos de crédito, arrumou o sistema tributário e criou o mercado de capitais. Até o Banco Central foi criado, nasceu independente, mas não passa pelo ditador de plantão. Quando o presidente Costa e Silva descobriu que o Banco Central era independente, perguntou por que, e quando lhe disseram que ele era o guardião da moeda, ele bateu na mesa e disse: “O guardião da moeda é o presidente”. Acabou a independência do Banco Central.

Essas reformas tiveram uma vida relativamente curta no período da ditadura, mas um grande impacto sobre o crescimento da produtividade, o milagre. Com a crise externa de 1974 foi resgatado integralmente o velho projeto nacional desenvolvimentista sob a forma do II PND [II Plano Nacional de Desenvolvimento], do governo Ernesto Geisel. A semelhança era impressionante, um plano ambicioso, com forte intervenção na economia, coordenação, concessão de privilégios, definição de quem receberia os benefícios da intervenção pública. Íamos ter uma indústria naval, desenvolver a indústria de alumínio, criar polos de exportação, mas com descontrole fiscal e financiamento externo inadequado. Como nos anos 1950, esse projeto terminou numa grande crise de inflação, descontrole das contas públicas e crise externa, que conseguiu ser ainda mais severa do que a anterior.

História que se repete

A crise das contas públicas, da intervenção desenfreada, da baixa produtividade e das contas externas durou boa parte dos anos 1980. Ela se aprofundou e, como nos anos 1960, terminou, depois de anos de uma economia com graves dificuldades, com um conjunto de reformas liberais. Era um filme que se repetia: abertura comercial e ajuste das contas públicas. Entre o fim do governo Sarney e o do governo Fernando Henrique Cardoso a economia passou por uma profunda transformação liberal modernizante, que incluiu as privatizações, o fim de diversos benefícios que o Estado concedia e o desmantelamento de várias agências setoriais, aquelas proteções que engessavam a economia.

Esse conjunto de reformas liberais institucionais perdurou ao longo dos anos 1990 com muita dificuldade, acompanhou o primeiro mandato do presidente Lula, até que veio mais uma crise externa e a resposta foi similar à de 1974. O Estado assumiu crescentemente o papel de coordenar decisões de investimento, conceder privilégios e benefícios a setores escolhidos para garantir o crescimento econômico, o fechamento da economia e a proteção de diversos setores. Numa escala reduzida, a agenda nacional desenvolvimentista foi retomada a partir de 2007, embora já existissem indícios dela no primeiro mandato do presidente Lula. Então, em vez do estímulo à competição e à abertura, ocorreu o fechamento da economia, a intervenção do Estado para tentar garantir maior investimento, ampliando a concessão de créditos públicos. O total de empréstimos do BNDES passou de 5% do PIB na época para 11% do PIB atualmente.

O Brasil tem uma carga tributária alta e um baixo IDH [Índice de Desenvolvimento Humano], os recursos públicos do país não vão para a promoção de políticas sociais. Mesmo com o Bolsa Família, a fração é muito pequena. O Bolsa Família representa 0,5% do PIB. É um belo programa, tem transparência, é saudável, mas não está aí o grande núcleo dos recursos públicos. No quesito educação, o Brasil evoluiu bastante na última década, mas encontra-se muito aquém dos outros países e muito a posteriori. O termo educação não aparece no discurso educacional desenvolvimentista, ela não é vista como um aspecto relevante para o crescimento econômico. Relevante é a educação superior, a universidade.

Então a resposta à crise externa foi o Estado valorizar o processo de desenvolvimento, a concessão de transferências de recursos e benefícios para os setores escolhidos, aumentar a proteção da economia na competição externa, procurar fazer domesticamente o que antes era importado, da indústria naval à política do componente nacional, da tomada de energia elétrica de três pontas ao estaleiro, enfim, fazer o esforço para fabricar domesticamente todos os produtos. Como esses setores não são produtivos no Brasil, isso aumenta o custo de quem compra deles. Com frequência as pessoas esquecem que não é possível proteger todos ao mesmo tempo. Se protejo a indústria de couro, desprotejo a de calçados. Se protejo a indústria naval, desprotejo a de petróleo.

Talvez o exemplo mais claro para ilustrar o fracasso dessas políticas de proteção e de desenvolvimento local seja a Zona Franca de Manaus, que virou uma tragédia. Nos anos 1970, o governo militar resolveu ocupar a Amazônia por questões de segurança e para desenvolver a região. Não havia muita gente lá, apenas plantas, animais e índios. Foi desenvolvido um grande programa de migração de gente e de capital para criar um polo industrial no meio da floresta. A esperança era de que depois de alguns anos aquelas empresas com fortes subsídios se tornassem competitivas e os subsídios seriam retirados. Não deu certo uma vez, prorrogaram os benefícios. Não deu certo mais uma vez e continuaram a ser prorrogados, 40 anos depois. Se aqueles recursos e pessoas estivessem em outras regiões do país fazendo outras coisas, o Brasil estaria mais rico e melhor. Como desmontar uma Zona Franca de Manaus? Não faço a menor ideia.

O Brasil já quebrou três vezes a indústria naval, o que custou caro. Em vez de estimular a competição e concentrar recursos escassos no que faz bem, insiste em tentar fazer o que não faz bem. Portanto, a produtividade é menor, não cresce e, pior ainda, a baixa produtividade do que a gente não faz bem por proteção e estímulos públicos contamina aquilo que a gente faz bem e o nível de distorção gerado é muito grande. Uma vez criados os estímulos e proteções, é muito difícil retirá-los, porque criam-se grupos de interesse e o custo é pago de forma difusa pela sociedade.

O tamanho do Estado brasileiro não resulta do fato de que ele gaste muito consigo mesmo, mas, sim, porque gasta bastante em muitas transferências. A política adotada depois de 2007 foi defendida por boa parte das lideranças deste país – proteção, benefícios, concessão de
recursos subsidiados. Mais: o pedido de privilégios e benefícios por parte do Estado permeia
toda a sociedade, do ensino subsidiado à
meia-entrada para o cinema. Todos nós recebemos algum benefício público. Isso é parte da nossa cultura, não reconhecemos como privilégio aquilo que recebemos. Aceitamos o benefício, mas não vemos o custo que pagamos por ele.

O Bolsa Família equivale a 0,5% do PIB, 37% é do Estado e grande parte são transferências. Para onde vão os recursos? Quanto custa a Zona Franca de Manaus? Só as desonerações de impostos federais representam 5% do PIB. O FGTS [Fundo de Garantia do Tempo de Serviço] representa 1,7% do PIB, é uma parte da carga tributária que não passa pelo orçamento da União, vai para um fundo privado que financia investimentos ou compra ações de empresas. Que empresas? Não sei, ninguém sabe.

O exemplo que dou é o da meia-entrada. Ninguém é contra a cultura, mas devem-se conceder benefícios com transparência, metas claras, objetivos e avaliação de resultados independentes. É muito melhor dar dinheiro para as pessoas de forma transparente e clara, como no Bolsa Família, do que subsidiar o consumo específico. Toda vez que você dissocia o preço do custo, gera má alocação de recursos na sociedade e menor produtividade. Como o custo é difuso pela sociedade, cada uma das coisinhas parece pequena, mas a soma da conta torna-se grande. O problema não está apenas na carga tributária extremamente elevada no Brasil. Os impostos pagos à União são apenas parte do problema, temos impostos que não passam pela União, são do setor privado diretamente, como o FGTS. Mas há os subsídios cruzados que não passam por imposto, como os créditos direcionados. Para fazer um crédito livre no Brasil, temos de fazer um crédito subsidiado para captar depósitos, por exemplo. Então alguns vão pagar spread de 20% para que outros possam pagar 3%. O spread médio dos bancos é de 11%, porque para conseguir o crédito livre tem de fazer o subsidiado.

As perspectivas são difíceis. Essas distorções condenam o país a ser medíocre e esse é um jogo difícil de ser desarmado. Quem vai topar abrir mão de seu privilégio ou benefício? O ajuste da macroeconomia é mais simples. Pode ser mais penoso, mas o país já fez isso, ajuste fiscal, ajuste monetário, pôr a inflação e as contas em ordem.

Para concluir, diria que cada benefício concedido deve ter transparência de resultados e registrar seus objetivos. Quanto será gasto e qual será o resultado? Mais: quem tem de fazer a avaliação da política e dos resultados é uma agência independente, quem oferece o benefício não pode ser o avaliador do que fez. Vários países têm essa tradição para garantir de fato que a sociedade possa, de forma consciente e transparente, decidir que benefícios serão concedidos, verificar seus resultados e resolver se devem prosseguir ou ser interrompidos. Mas que seja uma decisão de todos e não do príncipe de plantão.

Debate

MÁRIO ERNESTO HUMBERG – Você abordou os fatores positivos do agronegócio, mas penso que faltou um que considero fundamental, que foi a mudança que ocorreu com a educação nessa área. A nova geração de agricultores tem uma educação diferenciada de seus pais. Em vez de bacharéis em direito passaram a ser agrônomos de grande competência. Isso ocorreu também no setor financeiro, que começou a ser regido por profissionais formados em Harvard e outras escolas de grande prestígio, e não apenas pelos tradicionais banqueiros que existiam no país.

LUIZ GORNSTEIN – As telecomunicações foram privatizadas e hoje estão completamente desnacionalizadas. No setor aéreo, só 30% de capital externo foi permitido. O resultado foi ruim: Vasp, Transbrasil e Varig quebraram. A mesma coisa acontece nos hospitais, que não podem ter capital externo. A Zona Franca de Manaus foi induzida a fabricar produtos para o mercado interno; precisaríamos mudar para um modelo exportador competitivo.

EDUARDO SILVA – Em matéria de transporte o Brasil teve uma rede ferroviária avançada e de repente resolveu acabar com os trens, com os bondes, porque precisava gerar novidades na indústria de automóveis. Todos os outros países puderam conciliar as duas coisas, trens e carros. O Brasil é enorme, com muitas diferenças e o caminho para se tornar uma grande nação pode levar séculos.

NEY PRADO – Gostaria de saber se na avaliação do PIB está sendo considerada a taxa de informalidade, que é muito grande. Também queria saber se, em sua opinião, é possível a qualquer empresa resolver seu passivo trabalhista, previdenciário, tributário e ambiental. Estou convencido de que nenhuma delas pode enfrentar esse passivo.

FRANCISCO BARBOSA – Apesar do grande desenvolvimento da agricultura, dos serviços e do comércio, que se deve a Fernando Collor com o fim da restrição de importações e da lei do similar nacional na informática e novas máquinas agrícolas, analiso a economia brasileira sob dois aspectos: o estrutural e o conjuntural. Na questão conjuntural um fator muito importante do baixo crescimento é a excessiva volatilidade das atividades. Um exemplo: do começo do real até agora, perto de 20 anos, passamos por seis desativações industriais importantes. Estamos numa delas, talvez a mais longa. Isso significa que tivemos um ciclo completo de aceleração e desaceleração da indústria a cada três anos, o que, do ponto de vista conjuntural, é um absurdo.
De 1980 para cá, não foi diferente, a volatilidade é a mesma, com períodos mais longos associados com a valorização da moeda. Ou seja, a economia dá passos para a frente e passos para trás. Apesar do grande desenvolvimento da agricultura, do comércio e de muitos serviços, ela continua patinando, a média de crescimento de 1980 até agora é de 2,5% ao ano. E hoje estamos de novo envolvidos num problema que em grande parte tem origem na própria política econômica do Banco Central. Estamos aumentando a taxa de juros para controlar a demanda e a inflação, só que o nível da taxa de juros ao consumidor é tão alto que o efeito não atinge o consumo, atinge a oferta. Quando o Banco Central eleva a taxa de juros, inibe a oferta. Os estoques e os investimentos são reduzidos, ou seja, cria-se um estado em que os estoques bancam a diferença, o consumo cai, mas a produção cai mais. Chega a um ponto em que a recuperação se dá até rapidamente, mas com pressão inflacionária. A inflação voltou em todos os períodos de recuperação e vai voltar agora, mas com um quadro muito pior.

MARCOS – Concordo que a educação é fundamental, a melhor qualificação das pessoas que foram para o agronegócio e para o sistema financeiro certamente fez diferença. Minha dúvida é se a causalidade não é inversa, quer dizer, como esses setores eram dinâmicos e com ganhos de produtividade, não teriam atraído bons profissionais?
Telecomunicações e setor aéreo – não consigo entender as restrições ao capital externo, inclusive a Constituição não as prevê. Empresa no Brasil é brasileira, não interessa quem é o acionista. E isso vale para aviação, para hospital, para mídia, para agronegócio. Não entendo esse viés nacionalista, puramente ideológico. A aviação é um dos setores mais difíceis do mundo, porque não tem capital, só leasing e slot, não existe valor adicionado.
As telecomunicações são um caso de sucesso impressionante, se bem que têm sofrido com a complexidade institucional no Brasil recente. Por alguma razão criou-se o mito de que antena de telefonia pode gerar problemas de saúde. Segundo pesquisas de 15 anos, uma antena típica gera menos radiação do que lâmpadas e não é radiação iônica. Mas o mito existe e assim proliferam legislações restritivas. Todo mundo reclama do sinal, mas não sabe que a culpa não é das operadoras, ela está em outro lugar.
Quanto à Zona Franca de Manaus, as avaliações de zonas exportadoras são muito ambíguas no mundo. Alguns lugares as criaram, mas não funcionaram como se esperava e o benefício gerado não parece claro.
A rede de transporte ferroviário era muito boa, concordo. Mas não resolveram acabar com os bondes, decidiram eliminar as empresas estrangeiras. Houve um debate longo em torno da questão de que elas teriam lucros absurdos e inaceitáveis, foram nacionalizadas e deu no que deu. Com a nacionalização, trocamos as estradas de ferro que tínhamos pelas que não temos, atualmente, e se destruiu todo esse parque. O nacionalismo custou caro para o país e continua custando.
Quanto à informalidade no PIB, o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] procura dar conta dela, faz estimativas. Na força de trabalho a participação está em 45% mais ou menos, mas já foi pior, já foi de 55%.
O Brasil é extremamente volátil, sim, e parte dessa volatilidade vem das intervenções, ou seja, a tentativa de evitar a volatilidade faz com que ela aumente. Na crise de 2007, alguns países tentaram proteger a economia com medidas macroprudenciais e uma série de estímulos – Brasil, Turquia, África do Sul e países do Leste Asiático. Outros enfrentaram a crise com austeridade – Chile, Colômbia, Peru, Austrália, Nova Zelândia. Estes crescem hoje de 4% a 6% ao ano.
Mas vamos aos últimos pontos levantados. Primeiro, dou menos peso à questão da macroeconomia, acho que sobrevalorizam o papel do câmbio. O Brasil é muito caro independentemente do câmbio e o governo tem pouca capacidade de intervir. O câmbio é um efeito visível de problemas muito mais sutis, é só olhar o impacto de 10% do câmbio sobre a competitividade de alguns setores. Ficamos muito na discussão da macroeconomia e não avançamos na agenda que talvez seja mais relevante para a indústria, que é desembaraçar mercadorias do porto com a velocidade de Roterdã, dos bons portos do mundo.
Os estudos que conheço mostram que a taxa de juros não afeta só o consumo, mas também as decisões de demanda em geral da economia. Pelo fato de o governo ter tido dificuldades e optado por maior leniência com a inflação, os preços administrados estão crescendo 2% e os livres 8%. Isso torna muito mais difícil reduzir a inflação dos preços livres. A inflação nos preços livres é tão alta que talvez seja melhor não forçar a mão nos juros e aí infelizmente vamos ter de conviver com inflação mais alta. O ideal seria que o governo combinasse juros com ajuste fiscal e que fizesse de fato o ajuste fiscal para botar a inflação para baixo. É muito mais saudável para o país baixar a inflação reduzindo gastos públicos. O problema é que todos nós vamos pagar uma conta grande por isso.
A questão tributária é uma questão institucional no Brasil. O que mais me preocupa é essa complexidade institucional e nossa aceitação. Custo trabalhista, passivo trabalhista, passivo tributário, tudo isso é custo de produção. O Brasil tem três milhões de ações trabalhistas por ano, o Japão tem 70 mil, os Estados Unidos têm algumas dezenas, a maior parte dos países tem poucos milhares.

NEY PRADO – De 1988 para cá foram editados 4,4 milhões de artigos de lei nos três níveis. Como é que se pode tocar um país com essa quantidade de leis?

MARCOS – É uma loucura a complexidade tributária do Brasil, em qualquer ranking internacional estamos entre os piores países do mundo. Então há toda essa problemática institucional e a tentativa de normatizar todos os aspectos da vida privada. Isso é muito mais custoso do que a questão cambial. Por outro lado, existe essa agenda positiva, que infelizmente não avança. É necessário retirar os privilégios, estabelecer regras horizontais para todos e, quando forem concedidos privilégios, que seja de forma transparente, com avaliação independente, disposição à concorrência, meritocracia dos mercados, simplificação institucional, procurando melhorar a governança e as regras da questão ambiental, trabalhista e tributária.

CLÁUDIO CONTADOR – Existem exemplos bons e alguns péssimos, às vezes o desespero pode até levar a decisões corretas e a uma implantação mais rápida. A Embrapa e a mudança do agro­business no Brasil servem bem como exemplo. Você puxou mais para o final da década de 1980, mas a grande virada do agronegócio começou em 1982, com Delfim Netto, quando o Brasil quebrou e não tinha recursos para o tal do crédito subsidiado à agricultura. Lembro que Delfim disse que tinha de começar a cortar os subsídios à agricultura e aí houve uma mudança fundiária enorme no país. Outra boa semente que surgiu do governo foi a Embraer [Empresa Brasileira de Aeronáutica], que mais tarde se tornou um exemplo de que nem tudo que nasce do governo será sempre ruim.
Não fez parte diretamente de sua palestra, mas a questão dos preços monitorados é uma bomba de retardo, alguma hora vão ter de ajustar esse negócio. A Petrobras está aí com problemas enormes, as tarifas públicas precisam ser ajustadas e não sei como será feito. Você disse que isso vai virar imposto, mas nós vamos ter uma distorção enorme nos preços relativos e será muito mais complicado corrigir depois.

JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – Um dos debates que existem agora na nação mais desenvolvida do mundo [Estados Unidos], com um PIB de US$ 16 trilhões, é sobre a possibilidade de o dólar deixar de ser uma moeda de reserva internacional, coisa que o Charles de Gaulle já tinha tentado fazer. Quando isso ocorrer, haverá uma catástrofe. Gostaria de saber se você acredita que o Brasil está preparado para tomar atitudes como a China, o Japão, a Rússia e a Coreia do Sul de trocar o dólar como o lastro de sua economia. A moeda é um dos símbolos nacionais e o real tem sido muito aviltado.

JOSEF BARAT – A questão das concessões é um exemplo interessante de avanços e recuos. O Brasil avançou bastante tentando definir mandatos de agências, controles externos e avaliação de concessões, mas de repente a coisa regrediu e é preocupante como essa nova rodada de concessões está sendo uma catástrofe anunciada. Como você vê isso?

MARCOS – Concordo totalmente que temos tido histórias de sucesso e de fracasso. O que as histórias de sucesso têm em comum é uma boa política pública para tecnologia, avanços institucionais, melhores regras do jogo e setor privado aberto à competição. Onde existe proteção, intervenção para alocar recursos de um lado para o outro, restrição à competição externa, o resultado pode até ser bom no curto prazo, mas depois mostra a mediocridade da economia, afetando negativamente os demais.
Durante anos, a Embraer teve reserva de mercado no Brasil e dependia de subsídios bastante elevados, US$ 200 milhões na época, se não me falha a memória, até que foi exposta à competição e deu o grande salto. Enquanto estava protegida, dependia de subsídios permanentes, a competição foi o choque de realidade.
Então o recado é uma boa política pública para ajudar a tecnologia, com competição e abertura. Proteções podem até ter uma fase para durar, mas que tenham tempo determinado, vida útil e avalição externa. Infelizmente, estamos fazendo o contrário, o governo dá os benefícios de forma disfarçada – empréstimo via BNDES, concessões específicas, as desonerações que criaram o caos tributário, cada setor pagando impostos diferentes, não se consegue fechar a conta.
Uma agenda boa seria a da simplificação. Discutir reforma tributária para baixar imposto vai dar no que deu. Ou para alocar recursos para estados vai dar no que deu. Por que não começar uma agenda para a simplicidade? Pagar a mesma quantidade de imposto que se paga hoje, mas de maneira simples, a mesma regra para todo mundo, acabando com os privilégios. Ninguém tem a competência da indústria automobilística, favorecida por uma tarifa de proteção efetiva de 80%, enquanto outros setores da economia têm zero. No jargão dos economistas, só se faz proteção para ajudar uma indústria infante, que está nascendo. A indústria automobilística vai fazer 60 anos no Brasil e ainda precisa de proteção, é a única indústria infante em que se pode pedir aposentadoria. Por que não temos regras uniformes?
Sou cético sobre o dólar deixar de ser reserva de valor, o que não quer dizer que não venham mudanças importantes pela frente. Você tem razão, a transformação da política monetária americana terá impacto e o Brasil, infelizmente, sofrerá mais que os outros pelo tamanho de nossa economia, mas também pelo que tem acontecido com ela nos últimos anos. Não tenho tanto receio de que o dólar deixe de ser reserva de valor. Mesmo na China as reservas são em dólar.
Quanto às concessões, você sintetizou o que eu diria, são de avanços e retrocessos. O Brasil conseguiu avanços importantes, ainda que aquém do desejado, nos anos 1990. Houve uma paralisia com a discussão de agências regulatórias. De novo, não é uma questão de governo, é uma questão do país, um debate que não evoluiu. Pelo menos o governo atual reconheceu que concessões são importantes, mas as regras são confusas – limite de taxa de retorno, critérios pouco transparentes e que mudam com frequência, compensação de taxa de retorno com empréstimos subsidiados. O governo apostava suas fichas numa recuperação mais forte com as concessões, mas teve mais uma vez uma frustração e está tentando reverter a situação. Isso reflete a tônica da economia: não é uma situação desastrosa, como nos anos 1980, com inflação de dois dígitos, trata-se
de uma economia com preços livres crescendo mais, dificuldades para a política monetária, maior volatilidade, crescimento mais baixo, difícil e um tanto medíocre.