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Aço vegetal

Qualidades da gramínea gigante atraem empreendedores de todas as áreas / Foto: Marco Antonio Sá
Qualidades da gramínea gigante atraem empreendedores de todas as áreas / Foto: Marco Antonio Sá

Por: CLEIDE SALES

Existem pessoas, especialmente na zona rural, que utilizam o material para fazer armação de pipas, artesanato, cercas, estrutura de parreiras, varal para roupas e traves de campos de futebol. Outras, para erguer casas de pau a pique, construções toscas em que o barro é o elemento aglomerante no lugar da areia e do cimento. Mas também há aquelas que enxergam na planta um potencial inesgotável como matéria-prima em áreas diversas da atividade humana, uma mudança que começou há poucas décadas e vêm ganhando a adesão de governos, entidades de pesquisas e setor privado de todo o planeta. E não faltam exemplos de iniciativas de uso do bambu em situações onde ele nunca marcou presença. É o caso da canoa idealizada por Marcelo Cadori, formado em tecnologia em construção naval, e que foi integralmente produzida com aquela matéria-prima. Na época, ainda na faculdade, Cadori não conhecia ninguém com atuação na área, tendo sido obrigado, por isso, a buscar informações na internet. Foi assim que conheceu alguns pesquisadores e pôde tirar o inusitado projeto do papel.

“No início, deparei-me com alguns entraves, pois o bambu apresenta uma série de dificuldades: ele é leve em estado bruto, mas razoavelmente pesado quando transformado em ripa”, relata Cadori. Resistente e com dureza de superfície, todavia, é muito bom como matéria-prima de embarcações. “É certo que a planta reúne algumas particularidades que a diferenciam da madeira, pormenores que fomos conhecendo e paulatinamente corrigindo”, diz. O tecnólogo acrescenta que os pontos positivos do bambu, que ele conferiu enquanto fabricava seu barco, dizem respeito à densidade e alta resistência do material. “Ao final da minha pesquisa, conclui pela sustentabilidade ecológica e mesmo social da planta, e acredito que, economicamente, o custo final de um projeto como o meu pode acabar saindo mais em conta que o de uma embarcação semelhante confeccionada em madeira”, calcula Cadori.

As qualidades dessa gramínea, cientificamente conhecida por Dendrocalamus giganteus, enfim, têm encantado empreendedores de todas as áreas. Uma interessante novidade vem do meio musical, a guitarra digital feita de placa de bambu (da espécie gigante) laminado colado, uma tecnologia desenvolvida pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus de Bauru. Fabricado pela Agência Bambu de Conhecimento, o instrumento de cordas revolucionário terá, certamente, o condão de abrir novas perspectivas para a matéria-prima.

O bambu é, definitivamente, um material de amplas possibilidades. Durável e renovável, no entanto, o fato é que, mesmo fora do Brasil, o potencial representado pela planta ainda está longe de ser revertido em benefício para a população. Além da falta de conhecimento de quem poderia se aproveitar de suas qualidades, especialistas e pesquisadores apontam que, no caso da terra descoberta por Cabral, faltam normas regulamentadoras, cursos profissionalizantes e investimento público para que a matéria-prima seja aplicada corretamente, por exemplo, nos setores da construção civil e de mobiliário, e em diversas outras frentes.

De acordo com Antonio Ludovico Beraldo, pesquisador-colaborador da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e autor do livro Bambu de Corpo e Alma, coautoria Marco Antonio dos Reis Pereira, trata-se de um vegetal desconhecido pelos cientistas. E um dos principais motivos desse distanciamento, segundo diz, “tem a ver com o fato de que a planta raramente floresce e, quando isso acontece, os intervalos são muito longos, entre 30 e 200 anos, impossibilitando a coleta para identificação botânica e engessando o desenvolvimento de futuras pesquisas”, comenta.

Beraldo salienta que praticamente todos os materiais podem ser substituídos pelo bambu. No caso de estruturas secundárias, ele pode assumir o lugar do aço no reforço do concreto, material conhecido no mercado como bambucreto. Seu uso vem de longe e, segundo pesquisas conduzidas por algumas universidades brasileiras, a eficiência dessa substituição é fato consumado. O bambu picado, devidamente tratado, também é uma boa opção como sucedâneo de agregados minerais, como a areia e a brita, cujas propriedades são o isolamento térmico, a leveza e a resistência ao impacto. Estudos recentes realizados pela Universidade de São Paulo (USP) atestaram a qualidade do bambu como matéria-prima para a produção de placas de fibrocimento. Reforçadas com polpa de bambu as placas se mostraram altamente resistentes e com um padrão de absorção de água superior ao exigido pela legislação, revelando-se, portanto, uma excelente alternativa para a fabricação de telhas, caixas de água e outros produtos em substituição ao amianto, insumo que vem sendo banido do mercado mundial por conter substâncias cancerígenas.

Taj Mahal

Tem mais: “O bambu pode substituir vantajosamente as fibras artificiais na confecção de meias e colchões. Também, como fonte de energia renovável, são grandes as chances da matéria-prima na produção de carvão, carvão ativado e de pellets”, explica o pesquisador Beraldo. No entanto, acrescenta, atualmente os produtos derivados da planta que apresentam maior valor agregado são o bambu laminado colado (BLC) e o bagaço de bambu (bamboo strand), produtos importados da China, pois no Brasil não se cultiva a espécie destinada especificamente a tais aplicações.

Não é de hoje, é coisa de milênios, que a China e o Japão e outras nações asiáticas erguem casas de bambu que duram uma eternidade. A gramínea gigante também é conhecida naquela parte do mundo como “dádiva dos deuses”, “ouro verde da floresta” e “amigo do homem”, e sabe-se que, hoje, a utilização do bambu tem contribuído consideravelmente para o sustento de milhões de pessoas, chegando a movimentar a quantia anual de US$ 30 bilhões apenas no mercado interno da China. Por conta disso e de outras particularidades, arquitetos de todos os quadrantes passaram a considerar o emprego do produto em seus projetos. Os orientais, portanto, são mestres nessa arte, edificando casas com colmos de bambu entalhados, encaixados ou amarrados, alternativa que tem a qualidade de tornar o conjunto leve e suficientemente flexível. Para evitar o contato com a umidade do solo e o ingresso de animais peçonhentos, o imóvel se apoia sobre palafitas. Os fechamentos laterais e as divisórias internas são feitas de painéis de bambus serrados ao meio e revestidos com argamassa de vedação. Os conterrâneos de Xi Jinping ainda são especialistas na edificação de pontes de grandes dimensões em bambu.

Os japoneses também andaram a passos rápidos aqui. Muitas construções de padrão elevado no país do sumô empregam madeira e bambu em tiras e em peças roliças. Em muitos lugares o bambu cortado ao meio (meia cana) e disposto na horizontal, é empregado na composição de paredes em que os vãos são preenchidos com barro e fibras vegetais. Duas curiosidades: nas Filipinas, país de 96 milhões de habitantes, 90% das residências são feitas de bambu, e na Indonésia (com uma população de 244,7 milhões), um terço das edificações são integralmente com o material e outro um terço com bambu e madeira. Mas não é preciso ir tão longe para colher exemplos do uso dessa matéria-prima na habitação. Colômbia, Costa Rica e Equador, países vizinhos que em alguns aspectos lembram o Brasil, utilizam há séculos a planta na construção de moradias. Pesquisas divulgadas pela imprensa dizem que no Equador uma residência popular em bambu custa, aproximadamente, US$ 400, ou R$ 890.

O fato é que à medida que o tempo foi passando e a experiência asiática se espalhando mundo afora, o bambu passou a ocupar espaços antes preenchidos por materiais tradicionais, casos de coberturas, forros (melhora a temperatura térmica no ambiente) grades, janelas, portas e ripas. Graças a essas possibilidades, a planta ganha importância como material construtivo. Na Índia, o mausoléu Taj Mahal, de grande significado para o país, tem sua cúpula em estrutura de bambu (construção original). Erguido entre 1631 e 1652 pelo imperador muçulmano Shah Jahan, teve o propósito de imortalizar a amada Aryumand, sua esposa, que havia falecido no parto de seu 14º filho. Conjunto arquitetônico de grande beleza e Patrimônio da Humanidade tombado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 1983, mede em sua parte mais elevada 171 metros de altura.

Os exemplos se sucedem. A fachada do estacionamento do zoológico municipal de Leipzig, na Alemanha, foi construída com varas de bambu presas a cintas de aço, e os projetistas do aeroporto internacional localizado no distrito de Barajas, a nordeste da capital espanhola, Madri, optaram pelo material na execução do forro com vistas a dar leveza à estrutura de concreto e aço da enorme construção.

Quadro e guidão

No Rio de Janeiro, a sala de cinema CINEmato foi erguida com bambu, projeto que nasceu na cabeça dos ecodesigners Tiago de Paula e Daniel Malaguti. Os dois levaram adiante a empreitada em parceria com a cineasta carioca radicada em Lisboa, Prisci La Guedes, e o Atelier Sustentável. Com área útil de 35 metros quadrados, a sala conta com 54 lugares e sua cobertura recebeu telhas convencionais para proteger o ambiente nos dias chuvosos. Em Pardinho, na região de Botucatu, a 240 quilômetros de São Paulo, um dos pontos turísticos do município de 6 mil habitantes, além dos Mirantes das Três Pedras e do Gigante Adormecido (montanha que lembra uma pessoa deitada), próprios para escaladas, rapel e voos de parapente, é o centro cultural Max Feffer cuja cobertura é de bambu.

Muitos brasileiros estão dando vida a projetos em que o bambu assume papel de relevância, e é crescente o número de pessoas que aplicam o material na confecção do quadro e do guidão de bicicletas em substituição às peças congêneres feitas em aço e alumínio. Apenas um exemplo: a imprensa noticiou, em setembro de 2013, que o operador de máquinas Cleiton Tompson, de Vila Velha, no Espírito Santo, havia construído um veículo de duas rodas com aquelas características. Ele informou, na oportunidade, que fez a desidratação do bambu, o acabamento e a pintura, e comprou as partes restantes nas lojas especializadas.

O artesão e fabricante de móveis, João Nunes, acredita que ainda há um longo caminho a percorrer até o reconhecimento de fato do bambu, material que faz parte de sua vida desde a infância. “Nasci, cresci e vivi nas sombras dos bambuzais”, diz. O industrial conta que começou a fazer peças artesanais com a gramínea gigante em princípio como hobby até que, em 1995, a pedido de alguns clientes, realizou uma exposição para mostrar as suas habilidades manuais. “Infelizmente, existem muitos empresários que trabalham com a matéria-prima, mas indevidamente. Montam grandes estruturas sem planejamento e se socorrem de profissionais despreparados”.

Há um detalhe que, segundo Nunes, merece atenção. Ele diz que quando o bambu não é tratado corretamente, acaba atraindo insetos e fungos, podendo vir a trincar e, consequentemente, se tornar imprestável em pouco tempo. O moveleiro ressalta que esse é um dos principais fatores que têm colocado as pessoas contra o emprego da matéria-prima em aplicações onde deveria ser bem aceita. Outro dilema enfrentado pelo setor refere-se à falta de viveiros capacitados para a produção de mudas em grande escala. É fundamental, portanto, que seja dado um passo significativo com vistas a aumentar a oferta de mudas por meio de treinamentos e a utilização de técnicas avançadas, como a propagação in vitro.

O pesquisador Beraldo aproveita para fazer um alerta. Diz que o cultivo do bambu deve ser estrategicamente planejado, porque, salvo raras exceções, depois de plantado é quase impossível ser erradicado, “especialmente se for do tipo alastrante (vara de pescar)”. Ao tentar eliminá-lo, corre-se o risco de dar maior vigor à planta. Explica-se: a propagação dessa espécie é feita por meio da rizoma, uma estrutura subterrânea que se espalha com voracidade. As técnicas para o cultivo da planta são diversas e estão relacionadas com o clima, tipo de solo e umidade do ar. É possível fazer o preparo do solo em aterros sanitários, locais onde outras plantas jamais se reproduziriam. É que o bambu tem a capacidade de recuperar esse solo, contribuindo com o meio ambiente.

Lei de incentivo

No Brasil, as maiores plantações de bambu localizam-se na cidade de Coelho Neto, no Maranhão, em área de aproximadamente 30 mil hectares, produção destinada à confecção de sacarias industriais. Desponta, em seguida, os estados do Acre, Bahia e Pernambuco. Já na região sudeste, graças à presença de descendentes de imigrantes japoneses estabelecidos nos arredores da cidade de São Paulo, é possível encontrar grandes áreas de cultivo, negócio que movimenta o comércio de brotos e o fornecimento de colmos tratados e indicados, principalmente, para decoração e artesanato. Em Brotas, na região central do estado de São Paulo, o bambu é direcionado à produção de varas de pescar e à indústria de móveis.

Pouco a pouco o bambu vai se impondo. É esperada uma mudança radical no jeito do mercado olhar para o produto à proporção que a lei de Incentivo ao Plantio do Bambu de 2011, começar, de fato, a motivar o surgimento de novos investidores na área. O texto legal instituiu a Política Nacional de Incentivo ao Manejo Sustentado e ao Cultivo do Bambu (PNMCB), com o objetivo de desenvolver a cultura da gramínea no país por meio de ações do governo e da iniciativa privada.

O pesquisador Beraldo lembra que, recentemente, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), publicou o segundo edital, no valor de R$ 6 milhões com vistas a alavancar a pesquisa com o bambu no país. Tempos atrás, na primeira chamada, no valor de R$ 1,2 milhão, foram contemplados vários grupos de pesquisa. Alguns estados também estimulam a agricultura sustentável e acabam dando suporte ao cultivo do bambu. O aumento da oferta e da valorização do material, naturalmente, despertará um interesse maior, virada que já está acontecendo no ramo do artesanato. De uma maneira geral, conforme diz o fabricante de móveis João Nunes, cresce o número de cursos voltados para a especialização de futuros artesãos. Duas instituições, a Rede Brasileira do Bambu (RBB) (integrada por pesquisadores, técnicos e profissionais de universidades e institutos de pesquisas) e a Associação Brasileira de Produtores de Bambu, investem na disseminação de conhecimentos sobre a planta, passos que, mais dia, menos dia, acabarão colocando o bambu no lugar de destaque de que é merecedor.