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Eu quero uma casa no campo

O verde e a calma: atrativos da roça / Foto: João Prudente/Pulsar Imagens
O verde e a calma: atrativos da roça / Foto: João Prudente/Pulsar Imagens

Por: SILVIA KOCHEN

O caminho da roça é o sonho de um número crescente de brasileiros, que procuram um lugar onde a vida é radicalmente oposta ao dia a dia vivido na cidade, sem correria e longe do estresse. Por isso, moradores das grandes cidades estão comprando ou mesmo alugando propriedades na zona rural com a justificativa, dentre outras, de ficar distante do trânsito frenético e da violência. O contato com a natureza e uma rotina em ritmo mais lento, dizem, permite o desfrute de uma vida longe do barulho e da poluição, dois de uma extensa lista de males que o desenvolvimento legou às zonas urbanas. Se, no passado, a casa no campo vivia apenas no imaginário, hoje ela já é parte da realidade de milhares de pessoas. A família de Iraci Chaves Scorsatto é um exemplo bem-acabado da opção pela roça, pelo verde e pela paz. Anos atrás ela adquiriu uma chácara de 4 mil metros quadrados em Juquitiba, a 71 quilômetros da capital paulista e com a maior área de Mata Atlântica preservada na Grande São Paulo (o município é Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura]). “Resolvemos comprar a chácara bem longe de casa porque queríamos ter lazer sem muito incômodo”, diz Iraci.

Há cerca de 30 anos, um pouco depois de se casarem, Iraci, o marido, Adamir, e seus dois filhos, foram para Embu das Artes, a 27 quilômetros da capital paulista, graças a uma proposta de emprego. Com o tempo, o casal progrediu, hoje eles têm duas lojas de móveis e seus filhos já estão adultos. Como Adamir é gaúcho e, Iraci, catarinense, o churrasco sempre fez parte da rotina da família, um motivo a mais para a mudança ao campo. Vinicius e Emeline, os filhos, tinham doze e sete anos, respectivamente, quando a família comprou o pedaço de terra em Juquitiba, que na época contava apenas com uma casa de dois quartos, cozinha, banheiro e um imenso milharal. A área é resultado do desmembramento de um sítio maior. A antiga dona vendeu várias partes e hoje, além de morar ao lado, é a caseira de Iraci.

As modificações feitas no local foram poucas: ganhou churrasqueira e piscina e o milharal cedeu espaço a um gramado amplo, onde há um campo de futebol e o cultivo de diversas plantas, com direito a uma horta que abastece a família e os amigos. “Meu marido tem paixão por mexer na terra”, conta Iraci, “e não sossega um minuto quando estamos na chácara”. Na realidade, o lugar tem um clima festivo, e, desde que a família assumiu o imóvel, é lá, sempre, que realiza as festas juninas, o halloween, as confraternizações de Natal e da passagem de ano. “Foi lá que fizemos a festa de 15 anos de minha filha, ocasião em que reunimos muitos parentes do sul e de Brasília”, relata Iraci. Outra lembrança marcante foi a festa de casamento de amigos que se conheceram na chácara. Fatos assim passam a sensação de que a casa de campo dos Scorsatto é, definitivamente, um lugar cheio de alegria e onde só acontecem coisas boas.

Nos últimos 50 anos, o país experimentou um processo acelerado de urbanização. Em 1960, apenas 45,1% dos brasileiros viviam em cidades, índice que subiu para 84,4% em 2010, segundo os dados do último censo, realizado no mesmo ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse movimento levou a um crescimento desordenado dos centros urbanos, gerando toda sorte de problemas. Atmosfera e rios poluídos, banditismo, estresse e ruas congestionadas passaram a ser apontados como os principais inimigos da saúde e do humor dos habitantes dessas localidades. É nesse contexto que a busca por uma qualidade de vida superior ganhou uma importância inédita. Então, o sonho de respirar ar puro e viver junto à natureza verdejante veio cooptando os brasileiros.

“Três pilares”

Foi assim que surgiu, nos anos 1970, o projeto que virou uma marca e, também, uma quase cidade: Alphaville. O local era uma área imensa entre os municípios de Santana de Parnaíba e Barueri, na Grande São Paulo, e nela foram instaladas empresas não poluentes, grandes centros de compras e hotéis, e construídas admiráveis residências. E o trânsito, menos irritante que o amargado pela população na capital e nos municípios da região metropolitana, fez toda a diferença.

Inicialmente, a ideia era oferecer qualidade de vida aos funcionários das empresas que optaram por aquele requisitado loteamento, que poderiam, assim, morar perto do local de trabalho. Mas o projeto foi atraindo outros moradores, que estavam atrás de um lugar onde os filhos pudessem crescer em casas confortáveis em espaços ao lado do verde preservado. O terreno foi fracionado em lotes que poderiam ser considerados pequenas chácaras. Em uma área próxima, um pouco mais afastada da capital, um outro braço do empreendimento, batizado de Aldeia da Serra, oferecia uma paisagem mais bucólica.

Passadas algumas décadas, todavia, o resultado não saiu conforme o combinado: Alphaville hoje é praticamente um bairro com administração privada. Foram erguidas 12 mil casas, 42 prédios residenciais (sim, a ocupação do local acabou se verticalizando diante da grande demanda por moradias) e 16 comerciais, tudo com serviço de segurança gerenciado pela própria associação de moradores. Vivem no local 35 mil pessoas, mas a população diária flutuante é de 200 mil almas, que ali trabalham ou visitam o lugar – que conta com cinco hospitais, dois shoppings centers, oito hotéis ou flats e dezesseis agências bancárias.

O mesmo aconteceu com inúmeros outros empreendimentos imobiliários que começaram a surgir a partir dos anos 1980 no entorno de grandes cidades brasileiras. O que era para ser uma chácara em condomínio acabou, ao longo do tempo, herdando os mesmos problemas de um condomínio comum como os custos altos com a manutenção de equipamentos coletivos. É claro que cada um se desenvolveu em diferentes graus e alguns até preservam uma qualidade de vida invejável, mas o sonho bucólico foi ficando na lembrança.

Talvez por isso, muitas pessoas têm evitado a opção do condomínio e preferido adquirir uma área em regiões efetivamente rurais para viver. Nesse caso também é preciso ter uma série de cuidados como, por exemplo, verificar a propriedade da terra e se os impostos e taxas estão pagos junto aos cartórios e às municipalidades. É importante, na mesma proporção, averiguar o fornecimento de água e de eletricidade, o sinal de celular e a disponibilidade de linha de telefone fixo.

“Minha ideia era morar em uma região cheia de mato e onde pudesse curtir arte e cultura”, diz o artista plástico Renato Gonda, 55 anos. Um dia, ele resolveu sair da cidade de São Paulo para levar adiante aquele projeto de vida. Gonda explica que sua atração pela natureza veio da infância, quando era escoteiro. Sentia-se desmotivado na cidade grande, onde sobrevivia dando aulas. Idealista, tinha como meta vivenciar, segundo ele, “três pilares da nossa existência no planeta: espiritualidade, arte e natureza”. Afirma que queria sobreviver trabalhando em casa, com projetos que poderiam ser realizados a distância, e com qualidade de vida. “Eu não queira uma chácara apenas para os fins de semana. Pretendia mesmo era morar no campo”, destaca. Foi assim que decidiu se estabelecer em Embu das Artes, município que, nos anos 1970, passou a ser conhecido como a “capital da ecologia” no Brasil e famosa por sua efervescência cultural.

Adensamento urbano

Gonda mudou-se em 1991, mas não conseguiu ver seu sonho realizado de pronto. Alugou uma chácara no município de Embu das Artes junto com o amigo Gerson Correra, também artista plástico, mas durante algum tempo continuaram trabalhando na capital. “Eu ficava de três a quatro horas por dia no trânsito e, por conta disso, tive de fazer uma cirurgia no joelho”, relata. Gonda avalia que morar no campo pesa mais financeiramente em comparação aos gastos que tinha quando residia em São Paulo. Manter uma chácara exige uma série de cuidados, desde serviços de jardinagem, combate às pragas e toda espécie de manutenção.

Esse custo, porém, não é só financeiro, ele rapidamente observa. Há um ônus invisível: a falta de opções de cultura e mesmo de lazer. Um programa como teatro ou cinema normalmente fica restrito aos fins de semana, e mesmo assim requer um planejamento prévio. O artista plástico ainda paga aluguel pela chácara onde vive. Como a maioria das propriedades na região não tem escritura definitiva, a venda dos imóveis costuma ser feita mediante contrato de cessão de direitos, e, por conta disso, não é possível fazer financiamento imobiliário. Na verdade, Gonda conseguiu adquirir metade do terreno, mas não a parte principal, onde estão a casa e a piscina.

Nesses mais de vinte anos em que Gonda mora na chácara, localizada a apenas trinta quilômetros da cidade, aconteceu algo de certa forma previsível por se tratar de uma região onde são muitos os loteamentos: o adensamento urbano no entorno. Por isso, algumas linhas de ônibus já estão passando diante de sua porta, além de muitos carros, e há cada vez mais vizinhos ao redor. “Penso em mudar para um lugar mais tranquilo por causa do barulho, mas isso depende de alguma oportunidade pontual e da possibilidade de financiamento”, enfatiza Gonda.

Até há pouco tempo, viver junto à natureza era um sonho distante para muita gente, e muitas pessoas só se sentiam tentadas a se transferir de mala e cuia para a roça depois da aposentadoria. Mas a evolução tecnológica mudou esse panorama porque a comodidade da cidade grande chegou ao campo, e isso graças ao celular e aos serviços de banda larga da internet. Veja-se o caso do comerciante Cassius Carlos Gomes Gama, 48 anos, que morava em São Paulo, mas deu um grito de liberdade e foi residir numa chácara – pois precisava de uma vida mais tranquila para preservar sua saúde. “Pensei no mato para morar, definitivamente, e não dispor de uma casa de campo apenas como um lugar para algumas horas de lazer”. A prioridade era driblar o estresse, e também fugir do aluguel, já que os preços dos imóveis na capital paulista estão superfaturados.

Vice-presidente da Agência Brasileira de Apoio à Cultura (Abac), uma ONG dedicada à prospecção de negócios na área de cultura, Gama passou a buscar uma chácara nas cercanias da rodovia Raposo Tavares, autoestrada que liga a cidade de São Paulo ao município de Presidente Epitácio, no interior paulista, a 660 quilômetros. Explica-se: ele residia no bairro paulistano do Butantã, onde fica o marco zero daquela rodovia, uma região que conhece como a palma da mão. Navegando na internet, encontrou uma oportunidade em Vargem Grande Paulista, a 40 quilômetros de São Paulo.

Aliás, Gama acredita que essa mudança só se tornou possível graças ao computador, já que recorre a e-mails e outras ferramentas para dar andamento a boa parte de seu trabalho. Ele é um dos muitos privilegiados que se mudaram para a zona rural e desfrutam da comodidade de organizar a agenda de reuniões presenciais de acordo com suas possibilidades. Normalmente, ele perde em média 40 minutos para chegar a São Paulo, isto, evidentemente, fora do horário de pico do trânsito. Quando enfrenta congestionamentos, esse tempo sobe para uma hora. “O máximo que já gastei para chegar foi uma hora e meia”, recorda-se.

Galinhas e cachorros

No início, Gama comprou o terreno, de 4 mil metros quadrados, em parceria com um amigo. Depois, colocaram lá uma casa pré-fabricada de madeira, confortável, com 70 metros quadrados. Mas os empecilhos que tiveram de superar para se instalar no campo foram vários. O entrevistado conta, por exemplo, que passaram cinco meses até que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) autorizasse a remoção de algumas árvores para a abertura de uma estrada até a casa, que fica em uma clareira. “A instalação de luz e telefone também foi complicada. As empresas concessionárias queriam que a colocação dos postes corresse por nossa conta, o que representaria um custo muito elevado. Depois de muita conversa, a prefeitura local assumiu o investimento, beneficiando alguns outros vizinhos”. As obras na chácara continuam. O plano agora é construir um galpão nos fundos da casa já que o amigo de Gama, que divide com ele o lugar, é cenógrafo e precisa de um local apropriado para trabalhar. O bom nessa história é que o comerciante não teve dificuldade para se adaptar à vida no campo. “Sou natural de Aracaju, capital de Sergipe, e durante a minha infância e adolescência mantive laços estreitos com a roça”. Gama também diz que não encontrou dificuldades para se adaptar às idas e vindas à capital paulista porque, por conta do trabalho que desenvolve, está acostumado a viajar.

A vida do professor Paschoal Antonio Bonin, 58 anos, diretor de escola técnica estadual, também deu uma guinada de 180 graus quando optou por se estabelecer com a mulher, Vera Lúcia, na zona rural de São Manuel, no centro do estado de São Paulo. Bonin residia em Americana, a 154 quilômetros dali, município de 224 mil habitantes e que, em 2013, registrou a melhor pontuação (0,911) no Índice de Bem-Estar Urbano (Ibeu) do país, segundo o Observatório das Metrópoles. Justiça seja feita: a escolha do campo não foi um caso pensado, ao contrário, o professor se viu na contingência de instalar seu lar fora da zona urbana porque não estava encontrando casa para alugar. Então, por indicação da própria imobiliária, foi conhecer uma propriedade de 5 mil metros quadrados à venda num agrupamento de 120 chácaras às margens da rodovia Marechal Rondon, autoestrada que serpenteia pelo interior do estado até a divisa com Mato Grosso do Sul.

Isto foi em 2012, e, passado tão pouco desde a mudança de rotina, Bonin garante que aquela foi uma escolha certa. “Moro no paraíso”, ele diz. E se justifica, citando fatos. “Estou a apenas cinco quilômetros da cidade, minha residência é aconchegante, colho as minhas frutas e verduras, tenho um galinheiro (ovos não têm faltado) e seis cachorros, um estilo de viver que foge de tudo o que eu havia experimentado até vir para cá”. A decisão tomada dois anos atrás pelo professor teve a aprovação unânime em casa, de Vera Lúcia e dos três filhos, um homem (veterinário) e duas mulheres (veterinária e zootecnista) – profissões que guardam uma certa proximidade com o campo, tanto que, volta e meia, eles estão na casa dos pais. Bonin dá a isso o nome de “qualidade de vida”.