Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Engenheiro de palavras

A poesia de João Cabral de Melo Neto é "a beleza que todos vêem"

CECÍLIA PRADA

Desde que recebeu, em 1992, o Neustadt International Prize, dado a cada dois anos pela revista "World Literature Today" e considerado uma espécie de pré-indicação para o Prêmio Nobel, a fama internacional de João Cabral de Melo Neto, o maior poeta vivo da língua portuguesa, cresceu e o colocou numa posição ímpar. Aos 78 anos, recolhido ao seu apartamento no Rio de Janeiro, maltratado pela doença e pela cegueira, o poeta que polariza a esperança do país num prêmio que tarda a vir não precisa entretanto dele para maior consagração de uma obra que já é patrimônio definitivo de nossa grandeza cultural.

Motivo sobejo para que relembremos o itinerário intelectual, duro e áspero, que João Cabral traçou para sua obra, e que cumpriu tenazmente: uma determinação de "mineralização formal", surpreendente para quem, como ele, desde cedo foi marcado por uma extremada sensibilidade poética; uma heróica - ou exagerada?, desumana?, louca? - vontade de extinguir a todo custo a emoção, tida como piegas e inferior, opção que, refinando sua expressão e diferenciando-a, ao mesmo tempo revela uma atitude político-filosófica bem do homem do seu tempo. E da sua ideologia.

No entanto, parafraseando o próprio poeta, que em plena elaboração de sua Educação pela pedra indagava "Como um ser vivo/ pode brotar/ de um chão mineral?", na contemplação desse mistério humano e literário que é João Cabral, perguntamos: como pôde esse ser, dilacerado pela terrível luta contra a emocionalidade, fisicamente sacrificado à cotidiana enxaqueca ("tenho o cérebro domado, algodoado pela aspirina..."), resistir a tanta tensão interior, realizar seu objetivo literário, desvincular a expressão poética do subjetivismo romântico em que ia caindo a geração que foi sua, a de 1945, e nortear sempre a sua poesia no sentido de uma arte maior, humana, resistente ao tempo?

A resposta a essa pergunta não pode ser parca, nem apressada ou improvisada. É essa resposta que os seus críticos, os estudiosos de vários países, o público (fundamente comovido pelo poeta que se quis de pedra...) procuram sem cessar, esquadrinhando a sua obra, aprofundando o conhecimento de seus parâmetros interiores e de suas circunstâncias existenciais.

Um menino de engenho

Nascido em 1920 de família tradicional pernambucana, medularmente consciente e cultor da genealogia que o aparenta com as mais ilustres famílias da antiga capitania, refinado artista, diplomata, homem de sociedade, João Cabral sempre guardou dentro de si aquele espanto primeiro do menino de engenho que foi - a descoberta brutal da divisão social, dos dois mundos que coexistiam, separados, marcados pela injustiça e pela opressão, no seu cotidiano. E que transporia mais tarde literariamente: o mundo do "senhor de engenho" e o mundo do "cassaco" (trabalhador), o "ritmo deputado", o "ritmo senador", de um lado, de outro a "condição cassaco", o "espaço severino".

Esse engajamento primordial com o social, presente no menino que para desgosto da família passava seu tempo lendo literatura de cordel para os cassacos do engenho, antecedeu e fundamentou o engajamento formal, ideológico, marxista, do poeta adulto, conservado até hoje. E somente como tal pôde integrar sua obra sem deformá-la nem restringi-la.

Aos 18 anos, lendo seu parente o poeta maior Manuel Bandeira, o estudante João Cabral - que até então da poesia conhecia somente o cordel, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira - sofre o impacto criador. "Aquilo, era outra coisa", diz. Curiosamente, não se vê de início como criador, mas como crítico. A indagação sobre o fazer criativo, nascida naquele momento, marcaria todo o seu trabalho poético e o faria reunir sob foco único reflexão e criação.

Além de Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes influenciariam o jovem poeta - o primeiro pela prevalência do processo construtivo, a introdução do vocabulário banal, a "prosificação" da poesia (tão nos moldes dos modernistas de 22), e o segundo pela plasticidade da imagem: "Foi ele quem me ensinou a dar a precedência à imagem sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo", diria Cabral. Dos poetas estrangeiros, inegavelmente Paul Valéry (principalmente nos ensaios) influiria muito, desde cedo, no projeto que o jovem Cabral, autodidata, ia já criando para sua obra futura.

No entanto, a maior influência seria sempre recebida das artes plásticas (Cabral considera a pintura "a maior das artes"), e da arquitetura. Freqüentando, ainda no Recife, um grupo de jovens arquitetos, tornando-se amigo de Joaquim Cardoso, matemático, arquiteto e poeta, Cabral seria integralmente seduzido pela teoria do expoente máximo da arquitetura da época, o francês Le Corbusier. Dele diria mais tarde, numa entrevista à revista "Veja" (citada por João Alexandre Barbosa): "Nenhum poeta, nenhum crítico, nenhum filósofo exerceu sobre mim a influência que teve Le Corbusier. Durante muitos anos ele significou para mim lucidez, claridade, construtivismo, em resumo, o predomínio da inteligência sobre o instinto".

E se no seu primeiro livro, publicado no Rio de Janeiro em 1942, "Pedra do sono", o poeta deixava-se ainda levar pela "memória cheia de palavras", pelos seus fantasmas familiares, porque, reconhecia, "diversas coisas se alinham na memória/ numa prateleira com o rótulo: Recife", o agudo olhar crítico de Antonio Candido já conseguia ver nas suas primeiras poesias "uma organização cubista"; e Antônio Houaiss, em 1950, saudava na publicação de "O cão sem plumas" "um acontecimento anômalo na poesia brasileira".

A visão distanciada

Ingressando na carreira diplomática em 1945, Cabral passou a viver em sua obra aquela "dialética do desterramento" responsável por algumas das maiores obras da literatura universal, de Ovídio e Camões a James Joyce - a possibilidade de uma visão segunda, diferenciada, mais lúcida, do país distante. Uma geografia poética especial que, segundo Benedito Nunes, lhe permitiu olhar com penetração mais profunda, através dos bairros de Sevilha, da paisagem seca de Castela - semelhante à do nordeste -, a paisagem do agreste, do sertão, e chegar à evocação do homem de sua região, do retirante, da população pululante das margens do Capibaribe.

A Espanha, sua literatura, os recursos de sua grande tradição poética, foram para o poeta nordestino a revelação, o caldo cultural de que necessitava. Ele próprio diz: "Se por acaso tivesse sido designado para algum país verdejante, teria sido um diplomata entediado, mais nada". E se ainda no Brasil o pintor Vicente do Rego Monteiro exerceria sobre a sua composição poética uma influência decisiva, em Barcelona, entrosado com um grupo de artistas plásticos, amigo pessoal de Miró, deixaria que a grande pintura dos seus contemporâneos - André Masson, Picasso, Juan Gris, Dubuffet, Mondrian - fosse impregnando cada vez mais o visualismo de suas estruturas lingüísticas.

Transpondo para a literatura o desejo expresso por Mondrian, de "chegar à coisa-coisa, ao miolo", Cabral veria sempre no poema um objeto a ser trabalhado racionalmente: "Crio sempre primeiro a forma, depois a encho. Para cada livro crio uma macroestrutura. A poesia é o fim a que se chega, e não o princípio absoluto do qual se parte". Teorizando também em verso, diria: "Não a forma encontrada/ como uma concha... Não a forma obtida/ em lance santo ou raro... Mas a forma atingida/ como a ponta do novelo/ que a atenção, lenta,/ desenrola" ("Psicologia da composição", 1947).

Em entrevista a Antonio Carlos Secchin, em 1980, interrogado sobre o propósito dos versos "Esta folha branca/ me proscreve o sonho/ me incita ao verso/ nítido e preciso", confirmava ser seu objetivo neutralizar ao máximo os dados oníricos, as forças do inconsciente, mas concluía com humor: "Eu gostaria de criar como um matemático, sempre a partir de elementos racionais. Impeço tanto quanto possível que o inconsciente governe a minha mão. Mas de repente o inconsciente faz uma má-criação e a pessoa acaba derrotada. Mas se ele agir contra a minha vontade e me der uma solução que eu julgar válida, sou suficientemente cínico para aproveitá-la".

As duas águas

A internacionalização da paisagem nordestina, dissecada, transfigurada e contida na poesia de Cabral, tem a sua contrapartida narrativa na prosa do seu colega de carreira diplomática, Guimarães Rosa, que desvinculou o seu sertão da trilha regionalística e lançou o homem da caatinga, fáustico, interiorizado, na grande corrente da literatura mundial. Ambos os autores ditos "difíceis", "áridos", mas curiosamente capazes de arrebatar seus leitores.

Empenhado profundamente em "cultivar o deserto/ como um pomar às avessas" e despojar o seu canto até deixá-lo próximo daquele cante a palo seco da poética hispânica, que é "um cante desarmado... que... sem tempero ou ajuda/ tem de abrir o silêncio/ com sua chama nua", Cabral prosseguiu por vários livros, até a "Educação pela pedra", de 1966.

Mas dez anos antes, ao organizar a antologia "Duas águas", incluía o seu inédito auto "Morte e vida severina" (que encenado na década de 60 o levaria ao auge da fama) e reconhecia uma outra vertente, mais aberta, mais fácil, mais popular, uma outra "água" na sua poesia, a dos "poemas para auditório" - nos quais a adoção da forma dramática é, segundo João Alexandre Barbosa, "isomórfica à condição retratada". Isto é, a mineralização da linguagem sofisticada do cultíssimo poeta-diplomata, propósito mantido constante nos livros, e que mesmo quando Cabral trata da seca, do retirante, da paisagem nordestina, sempre transcende e essencializa o tema, no seu auto desaparece e o poeta adota a métrica adequada ao discurso direto, deixa-se levar por uma emoção maior (como já acontecera com o poema anterior, "O rio", de 1954), teatraliza realmente o tema.

A fluidez assim obtida é como um rio de emoção - mas sempre contida, refinada, nunca estereotipada - em que arrasta o público, ou o leitor. É interessante ver como as "duas águas" em que o poeta separa os dois tipos de poesia que faz correspondem, uma, a mais cerebral e seca, à paisagem desértica do nordeste, o sertão esturricado sob a soalheira impiedosa, e o homem seco, contundente, devorado pelas circunstâncias exteriores. Ao passo que na fluência molhada do poema "O rio", ou no Capibaribe cujo curso é seguido pelo retirante Severino em "Morte e vida severina", temos um poeta mais relaxado, mais comprometido com uma possível imagem de esperança, posto que "a medida do homem/ não é a morte mas a vida".

O engenheiro de palavras e rigor formal como que estende a mão sobre o rio, para encontrar o seu duplo, o poeta que apesar de toda a teoria abstrata procura sempre se concretizar no desejo superior da comunicação. Numa conferência realizada em 1956, Cabral diria, dos seus próprios objetivos literários: "A criação está subordinada à comunicação. Como o importante é comunicar-se, o autor usa os temas da vida dos homens, os temas comuns aos homens... Seu papel é mostrar a beleza no que todos vêem e não de falar de uma beleza a que somente ele teve acesso".

Essa integração de formas-propósitos faz a grandeza de nosso poeta maior. E se a obsessão do formalismo, a pretendida educação pela pedra, permanece para sempre associada ao nome e à obra poética de João Cabral, é porque, sabemos, sabe bem ele próprio, a metáfora-pedra relativiza-se na prevalência do humano. É o próprio poeta que diz, respondendo à pergunta: "O ser humano é uma pedra imperfeita?" formulada pelo grande estudioso de sua obra, Antonio Carlos Secchin: "Não sou a favor da pedra contra o ser humano. Acho que temos de nos petrificar um pouco, mas não creio que esse seja o ideal maior do homem".


Comentários

Assinaturas