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AIDS - O risco é de todos
Não basta concentrar cuidados na pessoa. A prevenção depende também de cidadania
IMMACULADA LOPEZ
Dezessete anos após o primeiro caso de Aids, o Brasil parece viver um momento de otimismo em relação à epidemia. Apesar de o número de casos novos a cada ano continuar alto e crescente entre as mulheres, o ritmo total de contaminação começou a desacelerar. O trabalho de prevenção conseguiu avançar e atingir grupos específicos da população. O tratamento médico ganhou nova perspectiva com os recentes medicamentos. O governo brasileiro, por pressão de organizações não-governamentais (ONGs), decidiu distribuí-los em todo o país. A qualidade de vida dos pacientes melhorou. A taxa de mortalidade caiu. A imagem da doença começou a mudar.
Certamente, são motivos para otimismo. Mas, ao falar desses avanços, os especialistas, autoridades e representantes de ONGs mantêm um olhar apreensivo. O momento é também de preocupação. Cada vez mais, a Aids se fortalece com as fraquezas do país. A doença está se multiplicando no interior dos estados e nas periferias das cidades, onde encontra a pobreza como aliada. Qualquer trabalho de prevenção fica mais difícil com a falta de educação escolar, de acesso aos serviços de saúde e de organização da comunidade. Longe dos centros de referência de algumas capitais, o tratamento se vê dependente de um sistema público de saúde desestruturado. A conta dos remédios e exames continua cara e, por enquanto, apenas o governo federal se dignou a pagá-la. Muitas prefeituras e governos estaduais ainda não se mobilizaram. Os convênios médicos particulares e o setor privado em geral continuam omissos, com raras exceções. Mais: surgem as primeiras preocupações com o uso do coquetel de remédios contra a Aids. Os infectologistas alertam para as falhas no tratamento e temem que o vírus crie resistência a esses medicamentos.
O coquetel foi, sem dúvida, o acontecimento ligado à epidemia mais comentado nos últimos anos. Em 1996, pesquisadores norte-americanos anunciaram que a combinação de diferentes remédios (um verdadeiro "coquetel" de drogas) conseguia evitar a multiplicação do vírus dentro do organismo do portador. O governo brasileiro foi um dos primeiros em todo o mundo a comprar os medicamentos e garantir sua distribuição em todo o país.
"O coquetel trouxe vida nova para os portadores", conta Cláudio Pereira, vice-presidente do GIV (Grupo de Incentivo à Vida), entidade que há oito anos apóia portadores do vírus da Aids em São Paulo. A preocupação do grupo, como também das outras ONGs, é assegurar a distribuição dos medicamentos, não só para quem já os está tomando mas para aqueles que venham a necessitar deles. "O custo tem que ser dividido com os estados e municípios", opina Pereira. O Ministério da Saúde também tem essa expectativa, mas garante que não há riscos de a distribuição ser suspensa. "O governo federal mantém sua decisão política de fornecer tratamento a todos", diz Pedro Chequer, coordenador do Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST)/Aids, do Ministério da Saúde. No ano passado, a União destinou quase R$ 300 milhões aos medicamentos - verba que deve ser repetida este ano. "O resultado foi enorme: houve um resgate de dignidade dos pacientes, além de queda da mortalidade", diz Chequer.
Um novo levantamento, divulgado em abril, confirma a redução do total de mortes por Aids no estado de São Paulo no decorrer de 97. No ano anterior, já havia ocorrido uma queda de mortalidade, mas só entre os homens. "Certamente, os coquetéis foram decisivos para as pessoas com o vírus viverem mais", diz Bernadette Waldvogel, gerente de indicadores de estudos populacionais, da Fundação Seade, responsável pela pesquisa.
"Ainda não temos a cura, mas conseguimos controlar a doença", esclarece o médico Vasco Carvalho Pedroso Lima, diretor da Divisão Médica do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo. Ele conta que o coquetel fez os pacientes ganharem peso, recuperarem a disposição para trabalhar, terem vontade de se cuidar. No hospital, por exemplo, as infecções e internações diminuíram bastante.
Resistência
Entretanto, ainda não passou tempo suficiente para se saber por quantos anos a reprodução do vírus pode ser controlada através dos medicamentos. De qualquer forma, os infectologistas já temem que o vírus se torne resistente às drogas. A resistência pode vir com o uso prolongado dos remédios, com a interrupção do tratamento ou com uso não adequado. Não é fácil seguir um tratamento que inclui de 20 a 22 comprimidos por dia. "Se não nos sensibilizarmos para a falha do tratamento, poderemos estar criando um vírus resistente às drogas já existentes", aponta Vasco.
"Certamente, os medicamentos trouxeram uma nova perspectiva para o tratamento", diz a infectologista Conceição Accetturi, coordenadora do Centro de Controle de Deficiências Imunológicas da Universidade Federal de São Paulo, antiga Escola Paulista de Medicina. "Mas já começamos a ter medo de perder essas armas." Conceição teme que os medicamentos atuais percam eficácia antes que novas drogas sejam desenvolvidas.
"Entretanto, a dificuldade em lidar com o coquetel, que ocorre no mundo todo, não justifica de forma nenhuma uma restrição a sua distribuição", pondera o médico Paulo Roberto Teixeira, um dos maiores especialistas do país e atual assessor do Programa Estadual de Aids de São Paulo. "O país deve neutralizar essa dificuldade." Teixeira informa que já está sendo feita, no estado de São Paulo, uma pesquisa piloto para descobrir que fatores estão dificultando a adesão ao tratamento, para que seja possível buscar soluções.
No mundo todo, os esforços parecem se concentrar na descoberta de novos medicamentos. Mas, cada vez mais, os especialistas destacam que, no Brasil, não é suficiente a existência de tratamento. "Determinantes sociais acabam neutralizando os avanços técnico-científicos", resume Teixeira, que além de assessorar o programa paulista é consultor do Programa de Aids das Nações Unidas (Unaids) no Cone Sul. Neste momento, a equipe do Unaids está tentando identificar quais os diferentes determinantes da expansão da Aids no país, para que seja dada uma resposta mais ampla à epidemia. Segundo Teixeira, não basta desenvolver remédios ou até mesmo encontrar a cura. "Há quanto tempo existe tratamento para tuberculose e hanseníase? Nem por isso o problema está resolvido no país." Ele dá o exemplo do estado de São Paulo, onde não faltariam nem medicamentos nem serviços para tratamento de Aids. "O problema é que as pessoas não chegam aos serviços. Quando chegam, o quadro clínico geralmente já está avançado e as possibilidades de tratamento ficam limitadas. Isso mostra como nosso sistema de saúde geral é ruim e inacessível."
"Cada vez mais, a luta contra a Aids se aproxima das outras lutas por saúde", completa Veriano Terto Jr., coordenador de projetos da Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids). "Precisamos de medicamentos, bons hospitais, bons laboratórios." Segundo Veriano, a situação está se agravando, pois a Aids atinge cada vez mais as classes empobrecidas, que dependem do sistema público de saúde. "Não podemos abandonar essas pessoas e excluí-las ainda mais da sociedade." Projetos como o Aids na Rua enfrentam diariamente as dificuldades de lidar com a epidemia em uma realidade de exclusão social.
"Os casos estão se multiplicando entre a população de baixa renda", confirma Naila Seabra dos Santos, diretora da equipe de Vigilância Epidemiológica do Programa Estadual de DST/Aids, de São Paulo. Estatisticamente, essa tendência pode ser confirmada pelo índice de escolaridade dos casos notificados. Mas Naila faz questão de ressaltar que a difusão entre as classes mais empobrecidas não significa que a doença esteja se restringindo a uma parte da população. "A doença continua afetando a sociedade como um todo."
Ricos e pobres
De qualquer forma, ressalta Veriano, é evidente que, se a pessoa tem mais acesso a informações e mais condições de absorvê-las, tem maiores chances de se prevenir. Como também, se tem mais acesso ao tratamento e condições de levá-lo adiante, tem maiores chances de viver mais e melhor. Se é difícil para um paciente esclarecido, bem-alimentado e bem-assistido tomar os vários remédios nos horários certos, como será para quem não faz todas as refeições diárias, não consegue conversar com o médico ou nem sequer tem geladeira para guardar os remédios?
Apesar de ainda não ser a situação presente, Teixeira teme a banalização da doença se ela se concentrar na população desfavorecida. "A Aids seria banalizada como outras epidemias que continuam matando, mas não chamam mais atenção." Segundo Teixeira, não se pode esquecer que o esforço mundial em enfrentar a doença tem sido tão grande porque, até agora, ela atingiu a todos, inclusive os países ricos.
Teixeira acredita que os problemas estruturais não começaram a atrapalhar apenas agora. "Já desde o começo, enquanto os pacientes em outros países alcançavam uma sobrevida de oito ou nove anos, não conseguíamos superar os dois anos." Entretanto, ao mesmo tempo que a realidade do país deixa os profissionais com as mãos amarradas, esses mesmos profissionais encontram respaldo na epidemia para forçar mudanças. "O controle de sangue, por exemplo, sempre foi um problema no país, e só foi enfrentado há pouco tempo por causa da Aids." Segundo Teixeira, a epidemia também pode obrigar, por exemplo, a um controle maior das outras doenças sexualmente transmissíveis e à expansão do pré-natal, pois há uma tentativa de articular os programas de Aids com os de saúde da mulher.
Olhando o mapa da epidemia, outra tendência se destaca: a interiorização. Os últimos dados do Ministério da Saúde indicam que a Aids está se espalhando para além dos grandes centros urbanos. Até 1986, menos de 2% dos municípios brasileiros abaixo de 50 mil habitantes tinham algum caso de Aids. Em 1990, já eram 14% e, em 1994, 33%. Nesse mesmo ano, quase 88% dos municípios com 50 mil a 200 mil habitantes e 98% dos municípios com 200 mil a 500 mil já tinham pelo menos um caso. O mesmo acontecia com 100% das cidades com população maior que 500 mil. Aos poucos, está aumentando a proporção de casos em outras regiões além do sudeste. No estado de São Paulo, onde a epidemia começou no Brasil e onde ainda hoje há a maior concentração de casos do país, a tendência de interiorização se repete. "No estado, percebemos que a epidemia seguiu a rota do tráfico de drogas", aponta Naila. Hoje, mais da metade dos casos conhecidos em São Paulo está fora da capital.
Estar longe dos grandes centros urbanos significa estar longe das universidades, dos centros de referência e da maioria das ONGs de apoio. As pessoas ficam mais dependentes da rede básica de saúde. Com a dispersão da epidemia, portanto, uma das prioridades do Ministério da Saúde passa a ser o fortalecimento da rede local de saúde. "Apesar dos problemas do Sistema Único de Saúde (SUS), queremos preparar os serviços e difundir as alternativas de tratamento bem-sucedidas nas capitais, como o hospital-dia, o serviço ambulatorial e o atendimento domiciliar", diz Pedro Chequer. "Considerando o impacto social da Aids, esperamos conseguir sensibilizar os serviços locais."
Verba do Banco Mundial
Até o momento, muitos municípios e estados não tomaram iniciativas próprias. Apenas o estado de São Paulo, por exemplo, colabora com a compra de medicamentos. Os demais ficam à espera do governo federal. Entretanto, o controle da doença, segundo Chequer, vai depender cada vez mais da mobilização local. Essa postura está sendo estimulada na nova proposta de empréstimo apresentada ao Banco Mundial.
Durante os últimos cinco anos, o Brasil recebeu um empréstimo de US$ 250 milhões do Banco Mundial para o Programa Nacional de DST/Aids. Foram US$ 160 milhões emprestados pelo banco e US$ 90 milhões de contrapartida do governo brasileiro. Essa quantia financiou centenas de projetos governamentais e de ONGs credenciadas, principalmente na área de prevenção. Em julho de 98, a verba se encerra. Mas já está em negociação um novo empréstimo até o ano 2002. Desta vez, seriam US$ 165 milhões do banco e US$ 145 milhões do Brasil, mas não apenas da União, como também dos estados e municípios. A confirmação do empréstimo deve ser divulgada até junho, quando a proposta será apreciada pelo Senado Federal.
"Além de ser uma relevante fonte de renda, o empréstimo tem importância estratégica", observa Pedro Chequer. "É exigida contrapartida nacional em diversos níveis, obrigando participação local." Outra novidade prevista é a descentralização do gerenciamento das verbas. Os projetos passam a ser decididos localmente, acompanhados e avaliados por conselhos municipais. "Com a descentralização, esperamos incentivar a auto-sustentabilidade dos projetos, como também garantir maior cobertura do país e uma ampla participação da sociedade em geral", diz Chequer.
O trabalho, segundo os especialistas, deve ser amplo e permanente. Além de demandar a solução de problemas estruturais, a Aids exige que o país mude de mentalidade. "Construímos uma imagem da Aids ligada à promiscuidade. Quem tinha Aids parecia ter culpa", diz a psicóloga Vera Paiva, do Nepaids (Núcleo de Estudos para Prevenção da Aids), da Universidade de São Paulo. Afinal, os primeiros casos surgiram entre homens homossexuais, usuários de drogas injetáveis e mulheres prostitutas. E todos os preconceitos contra essas pessoas passaram para a doença. "Ainda hoje, geralmente, quando sabemos de um caso, logo perguntamos como a pessoa pegou, o que fez." Vera conta que a Aids parecia restrita a esses grupos "de risco" e acabou ficando na cabeça das pessoas como sendo uma doença dos outros.
"Até hoje, estamos pagando o preço da idéia de grupos de risco", destaca Julio Pacca, diretor de prevenção do Programa Estadual de DST/Aids, em São Paulo. A contaminação das mulheres em geral, e conseqüentemente das crianças, demorou a chamar a atenção - afinal, elas estavam fora dos grupos de risco. "Não conseguimos nos precaver e, agora, estamos atrasados nessa luta", admite Julio.
Novos valores
Em dez anos, o número de mulheres contaminadas explodiu. Em 1986, a proporção entre novos casos masculinos e femininos era de 16 para um. Em 1990, de seis para um. Em 1994, chegou a três para um - número que se mantém até os levantamentos mais recentes. Mas, segundo Naila Seabra dos Santos, logo chegaremos à proporção de um para um. "Afinal o número de casos entre homens está caindo, mas o de mulheres continua a subir." Essa tendência se observa tanto nos números do estado de São Paulo como nos do país como um todo.
Além de derrubar o conceito de grupos de risco, a contaminação das mulheres obrigou - e continua obrigando - o país a rever valores e idéias feitas. "Só depois de dez anos de Aids, conseguimos falar abertamente de preservativo", conta Vera Paiva, atuante no Nepaids desde 1991. "Já se haviam passado cinco anos desde que se descobrira que o preservativo podia ajudar a controlar a doença." Mas poder falar em preservativo foi só o primeiro passo. A dificuldade maior ainda é incorporá-lo no dia-a-dia sexual das pessoas. "Muitas mulheres associam o preservativo à falta de entrega, de paixão", completa Vera. Para os homens, o significado também não é positivo: "A maioria acha que ter um preservativo na bolsa significa ser uma mulher fácil". Para Vera, a prevenção só será possível quando homens e mulheres criarem uma relação respeitosa, consensual.
"O problema é que a Aids passa pelas relações humanas", diz Wilney Feres Contrera, do Gapa (Grupo de Apoio e Prevenção da Aids), em São Paulo. Falar do preservativo, segundo Wilney, é ter que falar, por exemplo, de fidelidade, confiança. A relação entre homens e mulheres e a própria sexualidade devem ser reconstruídas.
"Se queremos falar sobre Aids com os jovens, por exemplo, temos que começar pelos temas em que eles estão mais interessados: gravidez, diferenças entre meninos e meninas, prazer, masturbação", conta a psicóloga Silvani Arruda, diretora de treinamento da Ecos (Estudos e Comunicação em Sexualidade), que trabalha com adolescentes e professores da rede pública de São Paulo. "Não adianta apenas falar da doença e distribuir preservativos." Silvani diz que os jovens só vão decidir se prevenir se for trabalhado o conceito de auto-estima e de cuidado com si próprio. "Muitas meninas pensam, por exemplo, que devem se sentir bem só porque alguém as deseja. Como se elas não tivessem direito nem ao prazer, nem aos cuidados necessários. Na cabeça delas (e dos meninos), só o homem deve tomar as decisões, pois eles entendem mais de sexo."
Se no campo da sexualidade a discussão pelo menos começou, no das drogas não se pode dizer o mesmo. Velhos valores e preconceitos têm armado uma resistência ainda mais ferrenha. As conseqüências são gritantes. Frente aos números nacionais da epidemia, os dois grupos principais de contaminação de dez anos atrás (homossexuais e usuários de drogas injetáveis) evoluíram de forma diferente desde então. Em 1988, a maior porcentagem de casos novos era por exposição homossexual: 36,7%. Esse número foi caindo gradualmente nos anos seguintes até chegar a 15,9%, menos da metade, em 1996/97. No mesmo ano de 1988, a segunda maior porcentagem de casos novos era por exposição sangüínea por uso de drogas: 18,5%. Mas esse número, em vez de cair, foi subindo até alcançar 26,3% em 1991 e depois cair um pouco até 20,2% em 1996/97. "Conseguimos uma queda efetiva em alguns grupos que tiveram uma intervenção específica desde o início", diz Pedro Chequer. Ele reconhece que, em relação aos usuários de drogas, a ação foi tardia. "Não tanto por uma questão técnica mas em virtude do forte preconceito contra o usuário."
Rota da cocaína
Essa omissão tem uma repercussão maior do que aparenta, na avaliação do sanitarista Fábio Mesquita, coordenador do Programa de DST/Aids de São Vicente, no litoral paulista, e diretor executivo da Rede Latino-Americana de Redução de Danos, que discute a melhoria de qualidade de vida dos usuários de drogas. Ele destaca a relação entre o número crescente de mulheres contaminadas e a falta de prevenção entre os usuários de drogas. Apesar de a maioria das mulheres estar se contaminando por meio de relação sexual, muitas delas teriam parceiros usuários de drogas. A médica Naila Seabra dos Santos concorda com essa avaliação. Ela destaca que, no estado de São Paulo, quase 50% das mulheres que se contaminaram através de relações sexuais tinham parceiro sexual único. Ao mesmo tempo, 40% tinham parceiro usuário de drogas.
A transmissão pelo compartilhamento de seringas contaminadas também teria sido decisiva para a expansão da epidemia no centro, sul e sudeste do país. "O vírus seguiu a rota da cocaína, passando por São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul", diz Fábio Mesquita. No norte e nordeste, por sua vez, esse tipo de transmissão não se destaca.
Já no início da década, garante o sanitarista, o país tomou consciência do fenômeno em várias cidades. Em 89, a prefeitura de Santos, na qual ele atuava, propôs o primeiro projeto de troca de seringas do país. Os usuários poderiam trocar seringas usadas por novas. "Era uma medida-chave de prevenção, que traria um grande impacto na evolução da epidemia", afirma ele. Mas a promotoria pública impediu a ação, alegando proibição legal. "Equipararam as autoridades sanitárias aos traficantes", conta Fábio. "O argumento de que a distribuição de seringas estimula o uso de drogas é totalmente equivocado. Não se observou nenhum aumento do uso nos países onde há programas similares." Para Fábio, o grande obstáculo foi - e continua sendo - a forma como a sociedade em geral olha os usuários de drogas. "Eles parecem merecer desprezo, como se não tivessem mais nenhum direito, nem à prevenção."
Mais uma vez, a Aids torna urgente um novo olhar aos velhos problemas. Mundialmente, tem sido discutida a necessidade de amplos programas de redução de danos à saúde dos usuários de drogas. Em primeiro lugar, deve-se garantir a oferta de tratamento. "Mas precisamos ter consciência de que apenas 30% das pessoas que passam por serviços exemplares de tratamento conseguem parar de usar drogas. Além disso, geralmente, a pessoa demora por volta de cinco anos para buscar ajuda", diz Fábio, referindo-se a médias mundiais. "Enquanto isso, temos que diminuir os riscos para a saúde dessas pessoas."
No Brasil, há poucos projetos de redução de riscos, destacando-se o da prefeitura de Porto Alegre. Em São Paulo, o governo estadual regulamentou, em março, uma lei em que autoriza a troca de seringas para fins de saúde pública. Com esse respaldo, projetos como o de Santos, que desde a perseguição judicial vinha atuando timidamente, devem se fortalecer. "Não podemos mais perder tempo", diz Fábio. "A prevenção entre usuários de droga deve se tornar prioridade dos governos."
A realidade das mulheres de usuários de drogas injetáveis mostra que o trabalho de prevenção é cada vez mais complexo. Primeiro, parecia ser suficiente dizer para as pessoas ficarem fora dos "grupos de risco". Depois, seria necessário evitar apenas os "comportamentos de risco". Hoje, começa a ser reconhecida uma situação mais ampla de vulnerabilidade. "Antes, o enfoque ficava centrado só no indivíduo", explica Julio Pacca. "Agora já se sabe que o que torna uma pessoa vulnerável ao vírus da Aids não é apenas seu comportamento isolado."
Julio desenvolve um raciocínio simples: quem tem mais chances de contaminar, um homem que se relaciona com dez mulheres ou com uma? Mas se o primeiro sempre usou preservativo e o segundo não? E se o primeiro mora na capital e estudou e o segundo não? Ou seja, uma pessoa é mais ou menos vulnerável à doença não só por conta de seu comportamento individual. Contam também as ações governamentais e não-governamentais que a afetam e os determinantes sociais que a cercam, como sua perspectiva de vida, sua relação com os outros, sua educação.
A mudança de enfoque leva, segundo Julio, a duas importantes conclusões. Primeira: as ações preventivas não podem se concentrar na pessoa. "Temos que dar condições para que ela possa tomar uma decisão. Portanto, em alguns lugares, os projetos de prevenção têm que discutir a geração de renda, por exemplo." Se não tiver condições econômicas, a pessoa não vai se prevenir de forma permanente. "Não vamos ter êxito se não houver ganho de cidadania." Mas será que os projetos relacionados à Aids terão fôlego para promover uma mudança tão profunda? Julio aponta então a segunda conclusão: Aids não é um problema só da área da saúde. Todas as instituições, dentro e fora do governo, devem se envolver. "As escolas, os presídios, as empresas, etc. não podem simplesmente chamar o pessoal da área da saúde para dar uma palestra. Todos precisam desenvolver programas próprios de prevenção e apoio aos portadores do vírus." Só assim, segundo Julio, o país conseguirá dar uma resposta à altura da epidemia e salvar vidas.
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