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Por: HERBERT CARVALHO

Tecelão por formação e designer de artesanato, Renato Imbroisi trabalha com artesãos têxteis de todas as regiões do Brasil, dirigindo oficinas e desenvolvendo novos produtos. Seu método de criação começou a ser projetado em 1987, no município de Carvalhos, no sul de Minas Gerais, junto com as tecelãs do bairro rural do Muquém. Ali, sem eletricidade, uma população que sobrevivia de pequenas criações e hortas para consumo próprio ainda produzia tecido em teares antigos, feitos à mão com madeira local.

De trama perpendicular e pedal, os teares eram construídos pelos homens e operados pelas mulheres adultas, com técnica herdada dos colonizadores portugueses que se fixaram na região durante o Ciclo do Ouro (séculos 17 e 18). Elas empregavam fios industriais e tiras de tecido usado para fazer roupas, colchas, toalhas e outros itens de utilidade doméstica. Por orientação de Renato, passaram a empregar tiras de chita cortada, fibras e outros materiais coletados, como sementes, caules e galhos para desenvolver e produzir peças inovadoras de tecelagem, mantendo, porém, a tradição dos desenhos e pontos. Surgiram, então, novos tecidos multicoloridos de grande durabilidade e ampla utilização em tapetes, jogos americanos e bolsas.

O sucesso dessa experiência proporcionou ao designer têxtil o primeiro convite para atuar como consultor junto a artesãos do Distrito Federal, seguindo-se outros 140 projetos em todo o país, workshops e oficinas de criação na Itália e no Japão. Resultou também nas exposições Meninas Geraes (BNDES, Rio de Janeiro, 2003), Que Chita Bacana (Sesc Belenzinho, São Paulo, 2005) e Desenho de Fibra (Bento Gonçalves e São Paulo, 2011), título também de um livro em coautoria com a escritora Maria Emilia Kubrusly (Editora Senac, 2011).

Esta mesma dupla reedita agora a parceria em trabalho de escopo bem mais amplo, fruto de pesquisas no Brasil e na África, em nações nas quais Imbroisi atua como coordenador de projetos de desenvolvimento de artesanato. Publicada igualmente pela Editora Senac, a obra Lá e Cá: Trocas Culturais entre o Brasil e Países Africanos de Língua Portuguesa traz informações e curiosidades surpreendentes que evidenciam os intercâmbios entre a nossa cultura e a de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Ilustrado por belíssimas fotos coloridas estampadas em várias das 160 páginas, o livro parte do artesanato de comunidades brasileiras e africanas – não apenas tecelagem, mas também escultura e cestaria – para abordar outros aspectos culturais afro-brasileiros, como gastronomia e lendas populares.

Navios negreiros

Reunido ao longo de anos de pesquisas, viagens e relatos, o material não tem a preocupação teórica de investigar a trajetória das trocas, idas e vindas entre escravos africanos e população brasileira a partir de uma relação que começou no Brasil Colônia (1500 a 1822), quando 4 milhões de seres humanos aqui aportaram transportados pelos infames navios negreiros. O que ele faz com mestria e riqueza de detalhes sobre autores, técnicas, materiais e regiões de origem é revelar semelhanças indiscutíveis e comemorar uma aproximação cultural e estética por meio de um artesanato de alta qualidade, “que preserva tradições e, ao mesmo tempo, renova e promove profissionalização e sustentabilidade para os artesãos de lá e cá”, afirmam os autores.

Para o Senac Nacional e a Editora Senac São Paulo que o coeditam, o livro pretende, sobretudo, estimular a reflexão sobre a identidade cultural brasileira, país onde há mais afrodescendentes fora do continente africano. Em relação a esta questão, o antropólogo Raul Lody adverte em texto de introdução intitulado “Ngangue Bakulu” (“sabedoria ancestral” em língua Quimbundo, dos povos Banto): “No ambiente escolar do Brasil, ainda hoje, a África é olhada como um continente tribal, selvagem, ficando reduzida a uma compreensão relacionada exclusivamente à escravidão”. Com o propósito de contar ao público brasileiro mais sobre esses países – “dos quais pouco sabemos e com os quais temos ligações que ainda não percebemos” – Imbroisi e Kubrusly dividiram o volume em quatro partes: comida, escultura, tecelagem e cestaria.

No quesito gastronomia, a influência foi de mão dupla. A culinária brasileira, ou mais especificamente baiana, herdou da África o vatapá e outros pratos, mas alguns dos nossos, como o pirão, também foram levados para lá. O caruru, que além dos restaurantes frequenta os terreiros da Bahia como comida de santo, virou “calulu” em São Tomé e Príncipe. Em Angola o pirão é feito com caldo de peixe, enquanto no Brasil, onde a papa de mandioca era a alimentação original dos índios, emprega-se também a carne. A matapa, prato tradicional de Moçambique preparado com peixe, camarão e outros frutos do mar, descende da açorda portuguesa (espécie de papa de miolo de pão ensopado em água fervente), assim como o nosso vatapá. Como especialistas nas respectivas iguarias, cozinheiros africanos e uma brasileira detalham as receitas de seus pratos e contam como aprenderam o ofício. As imagens são de dar água na boca.

Feito à mão

Na escultura, ao contrário do que acontece na culinária, não há uma troca de influências evidente e explícita, mas as semelhanças impressionam e provocam encantamento. No sul de Moçambique, por exemplo, pequenas esculturas de madeira, pintadas em cores vivas, representam desde animais, prédios e casamentos até a campanha de combate à Aids, o domínio colonial e a fuga da população na guerra civil. São as “psikhelekedanas”, palavra que no idioma ronga significa “feito à mão”. Esta arte, que na definição do escritor moçambicano Mia Couto tornou-se “um país escrito em madeira”, remete às peças moldadas em argila por Vitalino Pereira dos Santos, o Mestre Vitalino (1909-1963), cujos retirantes não fogem da guerra, mas da seca. O suporte é diferente, mas as dimensões e a realidade retratada pela cerâmica figurativa do Nordeste brasileiro exibem evidentes pontos de contato com os objetos talhados pelos artesãos africanos.

Ainda em Moçambique, o totem Ujamaa, que em língua swahili significa “família”, surge a partir de um bloco único de madeira, trabalhado até formar figuras humanas entrelaçadas. É o que também fazia o escultor mineiro Geraldo Teles de Oliveira, o GTO (1913-1990), que chamava suas peças circulares de Rodas Vivas.

Em relação à tecelagem, na pequena aldeia moçambicana de Maciene, a 237 quilômetros da capital Maputo, os teares de trama perpendicular e os tecidos reciclados são empregados de forma semelhante à utilizada na mineira Muquém e sob a mesma orientação, de Renato Imbroisi. Na direção inversa, as tradicionais faixas de tecido de algodão originárias de Cabo Verde e Guiné-Bissau, lá chamadas de “panus di terra” ou “panus d’obra”, cá se transformaram no “pano da costa”, inseparável do figurino da baiana conforme descrito na famosa canção de Dorival Caymmi. Para completar, os mesmos desenhos geométricos cabo-verdianos “surgem” nas redes de dormir tecidas à mão no bairro de Xique-Xique, na cidade serrana de Pedro II, no Piauí.

Finalmente, a cestaria praticada em especial na Amazônia pelos índios brasileiros, principais multiplicadores desse conhecimento para outras populações, encontra similares em Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Desenhos com origem em nossa mitologia indígena foram descobertos pelos autores em sacolas africanas de palha, idênticas àquelas comercializadas no Norte e Nordeste do Brasil. Esteiras produzidas com folha de palmeira piaçava no litoral da Bahia exibem em seu trançado a mesma aparência de “escama” de cobra dos tapetes do distrito moçambicano de Palma, na fronteira com a Tanzânia.

Entre os capítulos, o leitor encontra curiosas histórias e fábulas sobre inundações, animais e figuras mitológicas que, com pequenas variações, pertencem à tradição oral dos povos originários de todos os países envolvidos. A formação do lago Dilolo, em Angola, possui lenda semelhante à da Sapucaia-Roca, povoação à margem do Rio Madeira. E a Iara brasileira dos igarapés se reproduz nas sereias angolanas Quianda e Quicimbe, moradoras das águas do mar, que protegem e garantem fartura aos pescadores.