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Falta de atenção

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Por: MILU LEITE

Um problema que afeta 5% das crianças e adolescentes no mundo, independentemente do país, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) está no centro dos debates médicos, e sua invulnerabilidade a questionamentos no que tange a diagnóstico e tipo de tratamento já não existe mais. A principal causa dessa mudança foi o aumento no consumo do metilfenidato (nome do componente químico dos remédios Ritalina e Concerta), fato que gerou em alguns médicos, psicoterapeutas e pedagogos, um sentimento contra a banalização tanto de diagnósticos quanto de medicalização; todavia, outra parcela de especialistas defende, juntamente com os laboratórios que fabricam esses medicamentos, a indicação de drogas no trato do distúrbio.

Nos meandros desse debate pululam aspectos muito diferentes, mas todos eles confluem para uma reflexão a respeito da seguinte pergunta: até que ponto o homem deve-se adequar ao competitivo padrão de sociabilidade que impera hoje em dia? Utilizado fundamentalmente com o objetivo de melhorar a concentração, o metilfenidato (teoricamente vendido somente com a apreensão de receita médica) é indicado para ajudar crianças com esta dificuldade na escola. No entanto, de acordo com uma pesquisa do Departamento de Psiquiatria da Escola de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o desempenho da memória e da atenção dos jovens não melhora após o consumo do remédio. Outra pesquisa, publicada em 2011 pela Agency for Healthcare Research and Quality e realizada pela Universidade de Ontário, no Canadá, apontou que os melhores resultados no tratamento de crianças com diagnósticos de TDAH foram obtidos com o acolhimento familiar, exclusivamente, e que resultados bem inferiores foram colhidos com a prescrição do metilfenidato.

Os ecos dessas pesquisas, ao que parece, não têm sido captados por todos. Entre 2009 e 2011, a venda da medicação saltou de 156,6 milhões de miligramas para 413,3 milhões, segundo dados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC). O Distrito Federal é o estado que lidera o consumo, com 114 caixas do remédio para cada grupo de mil pacientes. Não está computada aí a venda ilegal do produto. Tampouco o preço da Ritalina (uma caixa com 60 cápsulas de 10 mg custa cerca de R$ 55) e do Concerta (caixa com 30 comprimidos de 54 mg, pode chegar a R$ 350) tem sido um empecilho para o emprego desenfreado do metilfenidato, apesar de ele se dar sobretudo entre usuários com alto poder aquisitivo.

Mas o que faz esse componente ativo, se as pesquisas não comprovam melhoria relevante do TDAH? A pediatra Maria Aparecida Affonso Moyses, professora titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), uma das vozes que questionam com veemência aspectos da abordagem do transtorno, explica que uma das reações adversas mais comuns provocadas pelo metilfenidato, e que ocorre com 40% a 50% das pessoas tratadas com o medicamento, é focar a atenção, isto é, só conseguir prestar atenção e fazer uma única coisa de cada vez. Ou seja, não significa propriamente uma “melhora, mas apenas uma forma diferente de prestar atenção”. Outra reação adversa comum, que costuma acompanhar esse “focar atenção”, é ficar contido em si mesmo, quieto, parado.

“Esse efeito é nomeado, em farmacologia, de zumbi-like”, explica a médica. Maria Aparecida foi ferozmente criticada por colegas de profissão por ter utilizado essa expressão em algumas de suas palestras, chegando a ser acusada de desrespeitar toda uma classe de pessoas ao dizer que elas são zumbis. Houve distorção de seu discurso, obviamente, e esse tipo de coisa só serve para evidenciar o tipo de armamento que vem sendo utilizado nesta guerra e que é travada em pelo menos duas frentes: diagnóstico e tratamento.

Um produto social

Em junho de 2013, começou a faltar Ritalina nas farmácias do país. A Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) publicou, à época, em seu site a explicação do fabricante do produto, cujo teor é resumidamente o seguinte: “com o aumento da demanda e o atraso nas autorizações para a importação do cloridrato de metilfenidato, o laboratório prometeu normalizar a distribuição até o final de julho”. A associação justifica seu empenho na divulgação desse esclarecimento “por entendermos a importância e a relevância da medicação para algumas pessoas portadoras de TDAH, sem a qual o desempenho de suas atividades cotidianas poderá ser seriamente prejudicado, acarretando prejuízos significativos”.

Para diagnosticar um portador de TDAH, familiares devem responder a um questionário específico, indicando nele o grau de intensidade de algumas características comportamentais da criança ou do adolescente. Além disso, o médico fará uma avaliação a partir de sua observação que será reforçada com o depoimento dos pais a respeito do paciente. As bases para a interpretação do questionário estão fundamentadas no que apregoa o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, na sigla em inglês), documento oficial elaborado nos Estados Unidos por um grupo de especialistas de várias nacionalidades. O psiquiatra brasileiro Luis Augusto Rohde, coordenador geral do Programa de Transtornos de Déficit de Atenção/Hiperatividade (ProDah) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, integrou a equipe que apresentou em maio do ano passado a quinta versão da cartilha seguida por médicos dos mais diversos países. Segundo depoimento dado por ele à revista “Veja”, em 31 de julho de 2013, “somos capazes agora de identificar muitos transtornos em sua fase inicial, e isso pode tornar os limites entre doença e normalidade mais tênues”. Entretanto, o que Rohde aponta como avanço foi duramente criticado pelo psiquiatra norte-americano Allen Frances, professor emérito da Universidade de Duke, que revisou a versão anterior do DSM, que foi a maior desde sua primeira publicação em 1952. Para Frances, uma delimitação distensa de diagnósticos pode significar um número maior de pessoas normais sendo tratadas como doentes.

Nesse aspecto, a pediatra Maria Aparecida é categórica: “Ao contrário do que se pretende afirmar, o diagnóstico se restringe, sim, basicamente à analise de um questionário simplista, com perguntas vagas. O médico que se deixa convencer de que as 18 perguntas do questionário avaliam bem o comportamento e o consideram como indicativo da existência de uma doença neurológica ou neuropsiquiátrica, passa a olhar o paciente em busca de sinais de hiperatividade, desatenção, impulsividade. E com grande chance encontrará”. O posicionamento da pediatra – que também coloca em xeque a classificação de TDAH como “doença”, por considerar que se trata, na verdade, de um “produto social” – vai na contramão do que é defendido por grande parte dos médicos.

Questionado sobre a chance de acerto e erro no diagnóstico, Abram Topczewski, neuropediatra do Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista, afirma que “o diagnóstico é clínico e não por prova terapêutica”. De acordo com ele, a causa para o excesso de indicação de uso do metilfenidato é o fornecimento de receitas por parte de não especialistas. “Quando as prescrições eram feitas por neurologistas e psiquiatras, o número era menor”, diz. O psiquiatra Guilherme Vanoni Polanczyk, professor doutor de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e orientador do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria da mesma escola, explica que “quando feito por profissional bem treinado, a partir de amplas fontes de informação e com critérios claros, o diagnóstico apresenta alta validade”.

Portanto, a experiência do médico que avalia o paciente é fundamental. “Ele deverá – além de fazer a apreciação do paciente no consultório – entrar em contato, no caso de crianças e adolescentes, com a escola e a equipe multidisciplinar, a fim de ter o maior número de informações possíveis para chegar a um diagnóstico adequado e poder definir o melhor tratamento.” “Quanto mais superficial for a avaliação, maiores as chances de erro”, resume a neuropediatra Cleise de Castro Prôa, de São Paulo.

Eventos negativos

Grosso modo, o adolescente ou a criança com TDAH é aquela que não para quieta (hiperativa), mas pode ser também aquela que vive “com a cabeça no mundo da lua” (déficit de atenção). Esses critérios de classificação, obviamente, não são os utilizados pelos médicos, mas são os que fazem milhares de pais baterem à porta dos consultórios, levando geralmente um dossiê escolar. Infelizmente, o aluno com TDAH costuma ser um problema para as escolas, espaços cada vez mais voltados para a otimização do desempenho, e raramente habituados a levar em conta as diferenças para chegar a tanto. Talvez seja por essa razão que o primeiro alerta a respeito do transtorno venha delas.

Aluno bagunceiro, que não deixa os colegas de classe prestarem atenção na aula, fala muito e não sabe ouvir, tem os cadernos sujos, sem capricho, esquece de fazer a lição e, no recreio, só corre para lá e para cá, atabalhoadamente, criando confusão e machucando outras crianças. Assim é normalmente descrito um caso clássico de TDAH, com apresentação hiperativa pelas escolas. Em casa, é respondão, não dá sossego ao irmão, não obedece aos pais, deixa as roupas pelo chão e não sai do computador. Por que será que isso se tornou um problema tão grave, a ponto de ser tratado como doença? Uma pista para a resposta está no estranho fato de que a atenção depositada no computador é desprezada, ao passo que a falta de atenção na escola, não. Não se trata, portanto, de falta de atenção mas de direcionamento. Os atuais padrões de ensino e aprendizagem requerem adequação visando um desempenho voltado para a sociedade de mercado. Em poucas palavras: enfocar para produzir. Guilherme Polanczyk, contudo, acha que o problema é mais complexo. “O TDAH vai muito além da quebra de padrões sociais. Representa um aumento substancial de risco de diversas situações que levam ao sofrimento, ao sentimento de inadequação, a eventos negativos, gerando insatisfação, pior qualidade de vida, aumento de custos sociais e individuais, aumento de morbidade e alguns estudos mostram que também há aumento de mortalidade”, diz.

“As taxas de TDAH no Brasil variam entre 2% e 17% da população em diferentes regiões, chegando-se a um índice médio de 5% a 6%”, segundo Maria Aparecida. “Ora, tais taxas são inaceitáveis para uma doença inata”, observa. Em medicina, a porcentagem é usada para doenças socialmente determinadas, como fome, desnutrição, verminose. Ainda segundo a pediatra, doenças inatas são muito menos frequentes, com prevalências da ordem de 1 por 1 milhão. “Pretender que uma doença neurológica ou neuropsiquiátrica, inata, como divulgam, tenha essa prevalência é absurdo em medicina”, conclui. Portanto, no entender da médica, TDAH tem a ver com um tipo de comportamento produzido pela sociedade em que vivemos.

Isso não significa nem de longe que não haja pessoas com comportamentos fora dos modelos socialmente estabelecidos, muitas delas com dificuldades de adaptação, aprendizagem e convivência. Elas existem e essas taxas certamente refletem isso. O cerne do problema está então em definir qual critério de diagnóstico é mais indicado, e não perder de vista o tipo de benefício que ele trará aos portadores de TDAH.

“Não gosto da palavra transtorno”, diz a psiquiatra Estelita Schames, “prefiro dizer que são pessoas cuja atenção atua de maneira peculiar.” Acolhimento, é o que ela indica antes de tudo. “Em geral, quem tem TDAH procura atendimento já com a autoestima baixa, pois enfrenta críticas pejorativas a seu comportamento em casa e no ambiente escolar (‘tem bicho carpinteiro’, ‘está sempre alienado’, ‘é cabeça de vento’)”, observa. Quando a abordagem medicamentosa se faz necessária, Estelita opta por remédios que atuem de modo mais abrangente do que aqueles que agem especificamente sobre a concentração e o desempenho. A médica conta ainda que muitas pessoas têm se beneficiado com o uso terapêutico de ômega 3 e enfatiza a importância da terapia familiar e da psicoterapia durante o tratamento.

Bem tolerado

De acordo com os estudos, o TDAH começa a se manifestar logo cedo, aos 4 anos de idade. Dados estatísticos apontam que 90% das crianças com idade entre 4 e 6 anos com TDAH e que têm atendimento em centros especializados, terão o diagnóstico quando chegarem à idade escolar. Uma criança nesta faixa etária com sintomas significativos que justifiquem o encaminhamento para centros médicos de atendimento pode (e deve) receber o diagnóstico. Especialistas ouvidos por Problemas Brasileiros disseram que as principais diretrizes de tratamento do transtorno indicam que crianças com sintomas leves, com prejuízo limitado, ou cujas famílias não desejam iniciar medicação, podem receber inicialmente intervenções psicoterápicas, sem tratamento medicamentoso. Havendo necessidade de medicalização, “os estimulantes (entre eles o metilfenidato) são os mais eficazes para tratar o TDAH, mas há outras indicações, não estimulantes, também eficazes para o transtorno, caso dos fármacos alfa-agonistas (clonidina e guanfacina), atomoxetina e bupropiona”.

O psiquiatra Polanczyk considera o metilfenidato bem tolerado e acha que ele não representa riscos graves à saúde. Os efeitos adversos mais frequentes, informa, são redução do apetite, desconforto gástrico, cefaleia, insônia. Com menos frequência, pode gerar irritabilidade e ansiedade. “O medicamento tem o mesmo mecanismo de ação que as anfetaminas e a cocaína, a diferença está na intensidade”, esclarece a pediatra Maria Aparecida. De acordo com ela, o componente químico pode provocar uma série de reações adversas, incluindo crises de alucinação, crises psicóticas e suicídios, “em taxas não desprezíveis”. “O risco de levar à drogatização é relevante, assim como a redução irreversível da estatura final”, acrescenta a pediatra, antes de explicar que essas reações constam em livros de farmacologia e também do Sistema de Relatos Espontâneos de Reações Adversas do Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos. “Por esse motivo, as indústrias farmacêuticas e entidades que preconizam e defendem seu uso ainda não conseguiram que sua comercialização seja liberada sem restrições, o que significaria retirá-lo da lista das drogas marcadas com a tarja preta.”

A perspectiva da neuropedriatra Cleise de Castro Prôa é distinta. “O TDAH é uma disfunção neurológica, mediada por neurotransmissores. O tratamento é medicamentoso, visando o melhor funcionamento dos circuitos cerebrais envolvidos no distúrbio”, esclarece. A medicação de escolha é, então, o metilfenidato, pelo fato de atuar diretamente nesses circuitos, normalizando sua função. “O metilfenidato é um remédio bastante antigo na farmacopeia brasileira (no Brasil, data de 1954), e existem inúmeros estudos relacionados ao seu uso. É uma medicação segura, porém não isenta de riscos, principalmente quando usada abusivamente”, alerta. Em dose alta, aumenta os riscos de problemas do coração e pode levar a um quadro de arritmia cardíaca, esclarece.

Está claro, pois, que não há consenso na discussão a respeito do TDAH. A diversidade de pontos de vista, portanto, deveria ser amplamente divulgada pelos meios de comunicação, por especialistas e educadores, para que os pais pudessem escolher com total responsabilidade o caminho a seguir. Mas não é o que acontece. Com raras exceções, a abertura para tais discordâncias apenas encontra espaço garantido na internet e em algumas publicações especializadas. Distante delas, na cabeça do cidadão comum, permanece a certeza: o metilfenidato é uma droga segura e com ótimos resultados. É bom lembrar que uma das razões para que se coloque definitivamente em dúvida essa certeza foi levantada por ninguém menos que Richard Roberts, prêmio Nobel de Medicina (1993), em junho de 2013. Sem fazer referência direta ao metilfenidato, seu depoimento ao diário espanhol “La Vanguardia” soa como uma saudável provocação: “Sendo empresas privadas as que fabricam medicamentos, seu objetivo é ter benefícios. Elas não têm nenhum interesse em desenvolver remédios que realmente acabem com as patologias”.

No mesmo mês, a Comissão de Educação do governo federal aprovou a proposta da deputada Mara Gabrilli que obriga o poder público a acompanhar integralmente os estudantes da rede pública de todo o país diagnosticados como portadores de TDAH, dislexia e outros distúrbios de aprendizagem. O projeto de lei já foi aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família, mas ainda será analisado pelas comissões de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Se aprovada, a proposta será conclusiva, não precisando ir a plenário. Eis, portanto, mais uma boa razão para colocar os pontos polêmicos deste debate em evidência.