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Por que a Comissão da Verdade?

Glenda Mezarobba / Foto: Bruno Leite
Glenda Mezarobba / Foto: Bruno Leite

Glenda Mezarobba é mestre e doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado pela Universidade Estadual de Campinas. É autora do livro Um Acerto de Contas com o Futuro – a Anistia e suas Consequências: um Estudo do Caso Brasileiro.
É especialista em justiça de transição, ou seja, em como os Estados lidam com legados de violação em massa de direitos humanos. Sobre esse tema, escreveu quatro verbetes, a respeito do Brasil, na primeira enciclopédia sobre justiça de transição, lançada pela Cambridge University Press, em 2012.
Esta palestra de Glenda Mezarobba, com o tema “A Comissão da Verdade”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 8 de agosto de 2013.

A ideia desta palestra é falar sobre as razões pelas quais o Brasil precisa de uma Comissão da Verdade. Atuei como consultora na elaboração do anteprojeto de lei e hoje sou consultora da Comissão, criada em maio de 2012. Para responder a essa questão, convido-os a voltar no tempo para entender como se chegou a esse tipo de necessidade.

Sou especialista na área de justiça de transição, que trabalha na forma como os Estados lidam com legados de violação em massa de direitos humanos. Há indícios desse estudo na Grécia antiga, mas conseguimos identificar seu primeiro embrião ao final da Primeira Guerra Mundial, que ganhou consistência após a Segunda Guerra, não com essa designação. A denominação justiça de transição é recente, tem duas décadas e meia, mas ela começou a ser construída no fim da Segunda Guerra Mundial, basicamente porque havia milhões de vítimas do Holocausto, milhares, se não milhões, de violadores de direitos humanos e era evidente que os Estados não tinham condições de lidar com esse número imenso de vítimas e de acusados de crimes.

No mesmo instante em que se começa a construir o sistema multilateral – Organização das Nações Unidas (ONU), Organização dos Estados Americanos (OEA) –, também se começa a desenvolver essa noção, que naquela época não possuía uma designação concreta. Ficou claro que os Estados precisariam de uma espécie de contenção externa para situações de ruptura com a possibilidade de se lidar com isso de uma maneira satisfatória. Hoje a comunidade internacional admite plenamente que os Estados têm obrigações em relação aos legados de violação em massa de direitos humanos. Esses legados são, por exemplo, as vítimas da Segunda Guerra Mundial, os perseguidos pelo comunismo, pelo apartheid, na África do Sul, situações em que milhares ou milhões de pessoas perderam seus direitos.

Perante a comunidade internacional isso já é indiscutível, um Estado não pode alegar que não tem o dever de lidar com essa situação. Fica um pouco evidente que a perspectiva em que se está pensando é a das vítimas. Sabemos que os Estados são os principais promotores dos direitos humanos, os que podem assegurar direito à moradia, alimentação, saúde, educação, direito à vida e à segurança. Por outro lado, os Estados também são os principais violadores dos direitos humanos. Se eles não garantem segurança à população, estão violando um direito.

Então foi a partir da perspectiva das vítimas que essa construção foi sendo feita e muito naturalmente pela influência do legado de horror da Segunda Guerra Mundial. Como lidar com aqueles milhões de vítimas, como processar juridicamente os acusados? Não há sistema jurídico que dê conta disso. A mesma coisa ocorreu com o fim do apartheid na África do Sul. Como lidar com aquele universo de sofrimento? É nesse sentido que temos de pensar, com o foco nas vítimas. A noção de justiça de transição está nos direitos humanos e no direito humanitário internacional.

A justiça de transição pode ser definida de uma maneira simples como um conjunto de mecanismos que os Estados têm à disposição para tratar de legados de violação em massa de direitos humanos. Quando se fala em justiça de transição, a justiça deve ser pensada numa acepção mais ampla. Não é no sentido estrito de Poder Judiciário ou de uma ação judicial, é no sentido maior de se fazer justiça, de se tentar resolver ou minimizar injustiças. É um tanto complicado o conceito, criado com uma designação que gera um pouco de ruído. Ela diz respeito exatamente a um período em que não havia democracia, como no governo nazista, nos países comunistas antes da queda do Muro de Berlim, nas ditaduras latino-americanas e em alguns casos de guerras civis, de conflitos, como na questão Estados Unidos-Iraque, Estados Unidos-Irã. Cuba em algum momento vai ter de lidar com esse legado, assim como Israel e Palestina.

A transição é nesse sentido de um governo autoritário em que há violações e que passa para uma democracia, que já existia ou que será construída. Como é um campo muito novo do conhecimento, os especialistas dizem que por enquanto são quatro deveres, embora eventualmente possam surgir outros. Todos têm a mesma importância. Um é o dever de justiça. Os Estados têm a obrigação, ao término dos períodos de graves violações, de identificar, processar e, se for demonstrada a responsabilidade, punir os violadores. Outro, o dever da verdade. Os Estados têm o compromisso de revelar as circunstâncias que envolveram as violações, como tortura, desaparecimentos e assassinatos. Terceiro, o dever de reparações. Este é sobretudo no campo simbólico: reparar com a construção de memoriais e museus, produzir literatura sobre o tema e também compensar monetariamente, embora obviamente não haja dinheiro que pague um dia de tortura ou o desaparecimento de uma pessoa etc. O último é o dever de reformar as instituições, torná-las democráticas e accountable. Os três primeiros deveres dizem respeito mais a direitos das vítimas e dos familiares. O quarto refere-se sobretudo à sociedade, da qual naturalmente as vítimas e seus familiares fazem parte. Esses deveres correspondem ao direito à justiça, à verdade, à reparação e à reforma das instituições. Eles não compõem um menu em que os Estados podem escolher o que querem atender, eles têm a obrigação de atender a todos.

Investigar e punir

No caso do dever de justiça, os Estados têm a obrigação de investigar, processar, identificar e punir os violadores de direitos humanos. Esse dever pode se realizar naturalmente através do Poder Judiciário, em tribunais nacionais, internacionais e em arranjos híbridos. Por exemplo, quando caiu o Muro de Berlim e unificou-se a Alemanha, os acusados de violação em massa no lado comunista foram julgados no sistema judiciário da Alemanha unificada. Na Argentina, os integrantes das juntas militares foram julgados pelo próprio Judiciário do país. No Chile não se conseguiu julgar Augusto Pinochet dentro do país e os movimentos de direitos humanos construíram uma estratégia muito bem-sucedida, que é considerada uma referência nessa questão. Sensibilizaram um juiz de fora, no caso Baltasar Garzón, da Espanha, porque cidadãos espanhóis haviam perdido a vida no Chile em decorrência da ditadura. Quando Pinochet viajou para o Reino Unido, foi preso ao desembarcar, porque havia um mandado de prisão contra ele por crimes cometidos durante a ditadura.

Gerou-se aí um grande debate jurídico, que em alguma medida mobilizou o mundo ocidental, sobre a legitimidade de se fazer isso. Pinochet ficou em prisão domiciliar por quase dois anos no Reino Unido, e isso gerou efeitos no Chile, onde o Judi­ciário percebeu que teria de julgá-lo e começou uma movimentação importante para que fosse extraditado. Ele foi condenado, não por esses crimes, mas por corrupção e evasão fiscal, e chegou a cumprir prisão domiciliar em território chileno. É interessante observar que em algum momento o Judiciário de um determinado país pode não conseguir lidar com a questão, o que não significa que é impossível.

O dever de revelar a verdade se dá basicamente sobre dois pilares: a abertura de arquivos feita pelo Estado, como ocorreu na queda do Muro de Berlim, por exemplo. Os arquivos da polícia secreta foram encontrados, embora com muito material destruído, coletados pelo país unificado, trabalhos de reconstrução foram feitos e tudo se tornou público. A outra maneira é a criação de comissões da verdade.

Essas comissões foram criadas em muitos países, já tivemos mais de 40 e algumas continuam em funcionamento. A experiência considerada como um paradigma é a Comissão da Verdade da Argentina, em 1983-84, que lidou com os desaparecidos políticos. Hoje a Comissão Nacional da Verdade, em que estou envolvida, também se vale ou procura se valer de arquivos de outros países, aos quais solicita informações.

O outro dever é o de reparar. É também um dever a que os Estados atendem sozinhos, digamos assim. A Alemanha paga até hoje indenizações a famílias de judeus. As empresas alemãs que utilizaram trabalho escravo também pagam indenizações. Esse é considerado o primeiro esforço mais concreto no sentido da reparação. No Brasil também efetuamos indenizações. Cada país lida com isso a sua maneira. Essas reparações também são feitas de maneira simbólica, com a construção de museus e memoriais.

Por fim temos a reforma das instituições, o que também ocorre na esfera nacional, pois, geralmente elas precisam se tornar democráticas; são as forças de segurança, as polícias, as Forças Armadas e, dependendo do país, o Judiciário. Ainda sobre a Alemanha, lá ocorreu uma coisa peculiar, que não se vê em outras regiões: o expurgo na burocracia. Muita gente foi demitida e em casos assim ocorre muita injustiça, como em tudo o que se faz de maneira massiva e sem muita reflexão. Em nosso país, isso não aconteceu.

No Brasil

Vejamos o caso brasileiro à luz desse arcabouço teórico. Tivemos de 1964 a 1985 uma ditadura que se inseria na lógica da segurança nacional. O cenário mundial era da Guerra Fria em que havia o bloco comunista e o capitalista. No Brasil o golpe de Estado foi dado em nome de valores alinhados ao capitalismo e aos Estados Unidos. Aconteceram então graves violações de direitos humanos. Nossa ditadura foi muito similar à argentina e à chilena, os crimes de tortura, desaparecimentos e assassinatos são muito parecidos. A partir daqueles deveres e direitos, os Estados tinham de começar a lidar com isso em algum momento. Mas trata-se de uma construção muito recente, que não existia dessa maneira à época em que os crimes foram cometidos, seja na Argentina, no Chile ou no Brasil. Dependemos então das demandas das próprias sociedades, que cobram dos Estados lidar com essas questões.

Aqui um parêntesis mais acadêmico: o caso do Brasil foi considerado muito peculiar pelos outros países e de difícil compreensão. Pesquisei isso e só consegui entender nossa realidade quando a comparei com a da Argentina e a do Chile. O processo de acerto de contas do Estado brasileiro com as vítimas, seus familiares e a sociedade começa com a aprovação da Lei da Anistia, em 1979. Isso pode parecer banal e óbvio, mas não é e depois vou mostrar por quê. A volta dos exilados é permitida, alguns presos políticos são libertados, não todos, e há a retomada de alguns direitos políticos. Nesse mesmo momento volta o pluripartidarismo, que durante boa parte da ditadura não existiu. Havia uma demanda da sociedade por uma anistia aos presos políticos, que foi ganhando força, até que em 1979 chegou às ruas. Esse movimento basicamente associava a reivindicação por anistia à volta da democracia, ao Estado de direito, à libertação dos presos políticos, ao fim das torturas, à responsabilização dos torturadores, mas a palavra de ordem ficou sendo anistia, um guarda-chuva que abrigava todo tipo de reivindicação. Pode-se dizer que o movimento pelos direitos humanos no Brasil começou com a luta pela anistia, ao contrário, por exemplo, da Argentina onde já existia.

Anistia é amnésia, perdão em alguma medida, na linguagem jurídica também. Não era exatamente isso que os movimentos reivindicavam, mas acabou sendo aprovado assim no Congresso Nacional. Na Argentina e no Chile nunca se reivindicou anistia, na Argentina sobretudo o que se pedia era justiça. Outra peculiaridade: quando aprovamos a Lei 6.683, da Anistia, em 1979, na Argentina e no Chile não existia um Congresso aberto como aqui. Não era um parlamento totalmente livre, mas havia uma margem de liberdade, que em alguns temas era muito pequena ou não existia. No caso da anistia ela não existia, o projeto de lei, encaminhado pelo governo, foi aprovado como os militares queriam. Obviamente, não era a lei que a sociedade e os movimentos reivindicavam. Na Argentina e no Chile, como não havia Congresso funcionando, foram aprovados decretos da ditadura, jamais reconhecidos pelas vítimas, por seus familiares e pela sociedade. Não possuíam legitimidade e isso impactou depois um processo de acerto de contas.

Brasil: Nunca Mais

Com a Lei da Anistia criou-se uma situação que podemos chamar de conciliação pragmática. Os exilados voltaram e foi restabelecido o pluripartidarismo. Sem dúvida isso significou um marco na democratização do país, embora a ditadura ainda fosse durar mais seis anos. O processo de acerto de contas começou então dessa maneira e permaneceu nesse mote de esquecimento até que a democracia fosse mais aprofundada. Com essa lei os militares não estavam pensando em lidar com aquele legado, era uma tentativa de garantir a impunidade.

Outra iniciativa muito importante, quando acabou a ditadura, foi o projeto Brasil: Nunca Mais, desenvolvido por advogados que defendiam os presos políticos e encabeçado pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns e pelo pastor presbiteriano Jaime Wright, com o apoio do Conselho Mundial de Igrejas. Trata-se de um projeto muito interessante. Os advogados tinham de solicitar anistia a seus clientes presos, exilados ou com os direitos cassados, e podiam ter acesso aos processos por apenas um dia. Criaram então um míni birô de fotocópias em Brasília. De manhã tiravam os processos, que xerocavam nesse local clandestino e disfarçado, embora ficasse num lugar público; e, para manter a fachada, algumas vezes atendiam às pessoas que queriam copiar documentos. Reproduziram todos os processos que tramitaram no Tribunal Militar, que são obviamente registros oficiais. Está para ser lançada uma cópia digitalizada de todos esses documentos, que são milhões de páginas. Feitas as cópias, conseguiram mandar uma versão microfilmada para o Conselho Mundial de Igrejas, na Suíça, e outra para os Estados Unidos. Como isso funcionou em sigilo, até hoje pouco se sabe de quem participou do projeto. Esses advogados não quiseram assumir a autoria, até hoje preferem se preservar, justamente para não tirar o protagonismo do cardeal Arns e do pastor Wright, que correram mais riscos. Foi a primeira iniciativa não oficial na tentativa de lidar com o dever de verdade a partir de documentos oficiais. Existe também uma cópia completa em papel, na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], desde o começo dos anos 1990.

“Onde está meu irmão?”

Em 1995, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso já estava no poder, acentuou-se uma demanda internacional a partir de alguns fatos que pareciam casuais. Um pouco antes o Brasil tinha participado como protagonista de uma convenção da ONU, na qual ficou estabelecido que os Estados deveriam criar programas de direitos humanos. E como fazer um programa de direitos humanos sem lidar com os crimes da ditadura?

Trabalhamos com uma soma que seria de aproximadamente 400 mortos e desaparecidos. Em números absolutos ou relativos representam muito menos do que no Chile e na Argentina. Entre os chilenos fala-se em 3 mil vítimas e na Argentina se chegou a 30 mil, embora hoje se imagine que sejam de 10 mil a 15 mil. Portanto, era um grupo pequeno de familiares que ficou demandando isso do Estado brasileiro, desde a ditadura até hoje. Quando Fernando Henrique foi receber um título numa universidade norte-americana, na hora dos debates, alguém na plateia, afirmando ser irmã de um desaparecido político, perguntou o que o presidente do Brasil tinha a dizer sobre isso: “Onde está meu irmão?” Outra situação constrangedora: a Anistia Internacional descobriu, no Reino Unido, que um adido militar do Brasil [Armando Avólio Filho] era acusado de tortura e fez um escândalo. O premier Tony Blair ligou para Fernando Henrique dizendo: “Não dá para ter um torturador como adido militar em sua embaixada”. O presidente pediu a retirada desse senhor e aí teve início uma queda de braço com o Exército, que demorou a removê-lo, alegando a Lei da Anistia.

Mais tarde ocorreu outro episódio. Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado Rubens Paiva, escreveu um artigo na revista “Veja” perguntando a Fernando Henrique, que era amigo pessoal da família: “Onde está meu pai?”. Foram situações pontuais, mas que iam explicitando essa demanda e que encontraram ressonância.

Tive a oportunidade de entrevistar o ex-presidente Fernando Henrique que afirmou que essa era uma questão muito cara e que ele sentia necessidade de lidar com ela. Logo que assumiu o governo, avisou os comandantes militares que ia tratar disso e não houve nenhum problema, segundo ele, por parte dessas autoridades. Em 1995, seu governo criou a Lei 9.140, para tratar da questão dos mortos e desaparecidos. Foi basicamente a primeira iniciativa oficial do Estado brasileiro no sentido de reconhecer aquelas pessoas como mortas e desaparecidas. Num primeiro momento, a lei trouxe um anexo com quase 200 nomes e foi criada uma comissão, que funciona até hoje, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que passou a receber solicitações dos familiares das vítimas. Foi um fato muito importante porque o Estado reconheceu pela primeira vez que aqueles crimes haviam sido cometidos e que seus agentes tiveram responsabilidade por eles. A lei decidiu que seriam pagas reparações simbólicas para os familiares, na época o equivalente a US$ 150 mil, no máximo, valor considerado suficiente pela OEA e pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Quando foi aprovada a Lei da Anistia, havia um aspecto peculiar que era o das pessoas que tinham perdido seus empregos por causa da ditadura, sobretudo funcionários públicos; o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso havia sido cassado da universidade. Existia uma espécie de arquivo não oficial onde as pessoas eram fichadas, e era muito comum consultar esse arquivo na hora de contratar funcionários. Como o regime era arbitrário, os nomes que estavam lá não pertenciam necessariamente a alguém que teria cometido algum tipo de crime ou delito. Por isso, muitas pessoas eram excluídas do mundo do trabalho por questões totalmente indefensáveis. Então ocorreu uma demanda muito grande de trabalhadores que queriam ter seus direitos reconhecidos. Esse movimento resultou, em 2001, numa medida provisória – depois Lei 10.559 – para tentar reparar esses casos. Foi essa lei que criou a Comissão de Anistia.

Legislação equivocada

A Comissão de Anistia funciona até hoje buscando reconhecer as perdas econômicas que as pessoas tiveram em virtude da perseguição política. Na perspectiva de quem trabalha com direitos humanos, porém, a lei é equivocada, pois não dialoga com a anterior, que é a dos mortos e desaparecidos. As pessoas têm direito a solicitar reparação, não porque foram torturadas, mas por perdas econômicas. Quando se olha pela perspectiva de que a vida com integridade física é o principal valor, não faz sentido pensar nisso. Essa lei gerou muito ruído e sob o ponto de vista da justiça de transição não cumpre seus objetivos, porque hierarquiza as vítimas. Com ela o Estado sinaliza que o direito à vida, à integridade física e à segurança não é o principal valor para a sociedade. Admite também que as pessoas são diferentes, já que o sofrimento de um pedreiro, por exemplo, vale menos que o de um juiz ou advogado. Ela é quase a antítese da lei anterior, porque esta pagava até US$ 150 mil para os familiares de mortos e desaparecidos e aquela permite uma pensão mensal vitalícia de, por exemplo, R$ 5 mil. Então a pessoa que não morreu vai ganhar muito mais que os familiares dos mortos e desaparecidos.

Nesse caso, o equívoco foi do legislador, não das vítimas. Mas não se trata de um erro exclusivamente brasileiro. No caso do atentado ao World Trade Center aconteceu algo semelhante. A família de um engraxate brasileiro que trabalhava lá no momento em que as torres caíram recebeu uma indenização proporcional ao que ele deixou de ganhar como engraxate. Em compensação, a família de um alto executivo do mercado financeiro recebeu valor proporcional ao que ganhava.

As primeiras informações oficiais apareceram no Brasil: Nunca Mais, que começou no governo de Fernando Collor de Mello. É interessante observar que todos os governos, a partir do fim da ditadura, em alguma medida deram um passo importante no cumprimento dos mencionados deveres. Collor entregou aos estados os arquivos do Dops [Departamento de Ordem Política e Social], que estavam em poder da Polícia Federal. O presidente José Sarney assinou a Convenção Contra a Tortura, que foi uma das solicitações feitas pelo projeto Brasil: Nunca Mais, em 1985. Os arquivos começaram a ser abertos no governo Collor, com os trabalhos das duas comissões, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia. E foi se localizando muita informação sobre os crimes do período, sobretudo por um esforço das próprias vítimas e de seus familiares que correram atrás desses arquivos abertos.

E em 2011, o Congresso aprovou a lei [12.528] que criou a Comissão Nacional da Verdade. No caso do Brasil, o dever de justiça até hoje não foi cumprido pelo Estado, nenhum acusado de tortura foi processado e, demonstrada a responsabilidade, punido. Isso é muito gritante. Até onde sei, há uma ação movida pelo Judiciário italiano em relação a violadores de vários países do Cone Sul, incluindo o Brasil, mas não houve um desdobramento muito significativo e ela já tramita há uns oito anos. E o dever de justiça no Brasil não foi cumprido até hoje.

A Lei dos Mortos e Desaparecidos obedeceu aos padrões dos direitos humanos, mas falhou porque não se preocupou em identificar os violadores. E a lei que criou a Comissão de Anistia preocupou-se apenas com as perdas econômicas.

Em relação ao dever de reforma das instituições, o Brasil avançou. No governo Fernando Henrique foi aprovada a criação do Ministério da Defesa, um poder civil acima dos poderes militares. Numa democracia é assim que tem de ser. Não houve reforma das polícias e das Forças Armadas, mas avanços pontuais, como a inclusão de algumas disciplinas mais ligadas à democracia, mas temos muitos problemas com a polícia ainda hoje, como o noticiário mostra o tempo todo. O Brasil foi condenado pela OEA em 2010 justamente por nunca ter dado uma resposta satisfatória em relação aos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. A OEA enfatiza que uma anistia como a que foi aprovada em 1979 no Brasil não se sustenta, porque o Estado não pode se autoanistiar. Pode perdoar rebeldes e insurrectos, mas não os próprios agentes.

Temos um complexo de subestimar ou menosprezar a América Latina, mas se há uma condição em que somos vanguarda é em relação à jurisprudência da Corte Interamericana dos Direitos Humanos na área de justiça de transição. Nossa região é a que mais avançou institucionalmente ao lidar com esses legados. Temos de reconhecer que muito desse protagonismo vem da Argentina, um país onde é muito claro como o direito à vida e à integridade física deve ser defendido. O exemplo brasileiro é curioso, porque até durante a ditadura o Estado pagou indenizações a vítimas. O primeiro caso de que tenho notícia é o de um médico no Paraná, no final dos anos 1960, que foi torturado e perdeu a visão de um olho. Era cirurgião e naturalmente seu trabalho ficara comprometido. Entrou com uma ação no Judiciário, o Estado foi condenado e pagou indenização.

Por outro lado, até hoje o Estado brasileiro não reconheceu quem cometeu aqueles crimes. Admite os crimes para pagar reparação, mas nunca identifica nem processa os criminosos. Essa é uma das peculiaridades do nosso caso, você fica explicando horas para um estrangeiro que jamais o entende.

A Comissão da Verdade foi criada no Brasil por iniciativa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a presidente Dilma Rousseff sancionou e instalou a Comissão Nacional da Verdade, em 2012. É interessante observar que, para a cerimônia de instalação, Dilma chamou todos os seus antecessores democráticos, após 1985 – só não compareceu Itamar Franco, porque já havia falecido –, e mostrou que isso era um dever do Estado brasileiro. Foi uma sinalização muito feliz em termos de política de Estado. A maioria das pessoas não sabe, mas para mim ficou claro que todos tinham uma razão para estar ali: Sarney por ter assinado a Comissão da Tortura, Collor pela entrega dos arquivos do Dops e por outra iniciativa importante que teve no governo dele, sinalizando que o Brasil não usaria mais o argumento da soberania para impedir a entrada de relatores de órgãos multilaterais, como a ONU e a OEA. Com Fernando Henrique e Lula estavam todos lá num gesto simbólico importantíssimo.

Muito sinteticamente, a Comissão Nacional da Verdade é um órgão estabelecido para investigar determinada história de violações de direitos humanos que aconteceram no passado. Normalmente os mandatos variam de seis meses a dois anos, devem ser curtos, muito da força de uma comissão vem daí. No caso do Brasil, os desaparecimentos forçados e os assassinatos que até hoje permanecem envoltos em sombra exigem uma Comissão da Verdade. O objetivo dessa comissão é descobrir, esclarecer e reconhecer formalmente crimes do passado, restaurar a dignidade das vítimas, facilitar seu direito à verdade, contribuir para a justiça e para a accountability, tornar as instituições e os indivíduos responsáveis, recomendar reformas.

Ao término de suas ações, uma Comissão da Verdade deve entregar ao chefe de Estado um relatório final em que, além de narrar os achados, precisa recomendar reformas, por exemplo, das forças de segurança, no arranjo institucional e no legal. Outro aspecto importante é acentuar a responsabilidade do Estado. Ele detém o uso da força, é responsável pelas questões de segurança, mas também está comprometido.

Outro ponto importante do relatório final de uma Comissão da Verdade é reduzir conflitos na sociedade, com o objetivo de construir uma paz democrática. Por fim, uma Comissão da Verdade por definição não tem os poderes de um tribunal, não processa nem pune ninguém. Não é, por definição, um espaço de punição, pelo contrário, é um fórum de accountability histórico, onde as vítimas têm voz. Naturalmente, se receber informações ou encontrar documentos que indiquem crimes, tem de remeter isso por dever ao Judiciário e ao Ministério Público.

Debate

HUGO NAPOLEÃO – Fui relator na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da proposta de reforma da Lei da Anistia, de autoria da deputada Luíza Erundina, e julguei que deveríamos manter o texto de 1979. Recordo-me bem que na época houve um amplo diálogo com a sociedade civil, empreendido pelo depois ministro Petrônio Portela, então senador, com o líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva e com a CNBB. Houve fóruns, debates e ampla discussão. Dir-se-á que não foi completa, mas foi efetiva. Naquela votação, o deputado Alfredo Sirkis, do Partido Verde do Rio de Janeiro, disse: “Eu vou votar com o relator, porque peguei em armas contra o regime, mas acho que, depois de 40 anos, estamos revolvendo o passado sem pensar no futuro. Temos de olhar para a frente. Queríamos a democracia, a liberdade, o funcionamento das instituições e tudo isso aconteceu, então vamos nos dar por satisfeitos, virar a página e seguir em frente”.

CLÁUDIO CONTADOR – Não existe uma posição dúbia do governo brasileiro apoiando a Comissão da Verdade e ao mesmo tempo sendo omisso em relação aos direitos humanos na África? Estamos inclusive perdoando dívidas. Não é uma contradição?

JOSEF BARAT – Que a solução brasileira foi diferente das que ocorreram na Argentina e no Chile já sabemos, talvez até por causa da nossa própria história. Mas uma questão que sempre me deixou em dúvida é saber se a solução adotada pela África do Sul não teria sido melhor para nós, porque aquele país anistiou os violadores que reconheceram sua culpa, sem necessariamente haver punição. Com isso houve uma pacificação que deu estabilidade a um contexto muito mais conturbado que o brasileiro.

GLENDA – Em relação à Lei da Anistia, em minha interpretação não há necessidade de reformar, revisar ou fazer qualquer coisa. Da mesma maneira que acredito que ela não garante impunidade aos torturadores e aos criminosos do período, penso que não há necessidade de modificá-la. É muito curioso observar que a Lei da Anistia já foi muito modificada, desde sua aprovação vários artigos foram suprimidos e parágrafos alterados. Portanto, ela já não é mais a de 1979 e dizer que não deveria ser mudada não faz muito sentido. Mencionei que houve debate na época, mas uma coisa é a sua existência e outra coisa é ele se refletir no texto da lei. O debate foi importante, a Lei da Anistia é um marco para a redemocratização do país, mas a demanda da sociedade, sobretudo dos familiares dos mortos e desaparecidos, não está refletida no texto. Não há menção a graves violações de direitos humanos nem à tortura, por exemplo. Então, se interpretarmos a lei ao pé da letra, será impossível tirar dali alguma garantia de impunidade aos torturadores.
Outro aspecto importante: hoje as vítimas que querem ser anistiadas têm de solicitar isso à Comissão de Anistia. Até onde se sabe, nenhum torturador reconheceu os crimes que cometeu no período nem se identificou ou solicitou anistia. De modo geral, o crime de tortura não é reconhecido até hoje pelas Forças Armadas, portanto na prática isso não ocorreu. Por que não há necessidade de mexer no texto da lei? O que falta é a lei ser interpretada juridicamente, ela não foi submetida aos tribunais em primeira instância. Percebe-se muito claramente que o que permanece até hoje é a interpretação que os militares quiseram dar à lei e que nessa chave da insegurança e do medo, quando não se quer mexer no passado para garantir a paz atual, a lógica é perversa.
Como mencionei, não vivemos numa sociedade pacífica e nossos níveis de violência são muito altos, certamente pelo fato de o Estado brasileiro não ter lidado com a questão da ditadura e outras questões de violência no passado. Enquanto o Estado e a sociedade não enfrentarem isso de uma maneira madura e aprofundada, será difícil ter claro o tipo de sociedade que queremos e assim conseguir construir essa sociedade.
A Lei da Anistia teve vários parágrafos alterados, porque foi construída de uma maneira muito elíptica, cabe tudo e não cabe nada. Mas um de seus artigos diz: “Esta lei, além dos direitos nela expressos, não gera quaisquer outros, inclusive aqueles relativos a vencimentos, soldos, salários, proventos, restituições, atrasados, indenizações, promoções ou ressarcimentos”. Esse artigo permanece assim até hoje e o que o Estado tem feito é pagar indenização e ressarcimento. Dessa forma, a Lei da Anistia personifica uma ambiguidade e uma dicotomia nacional, ou seja, o texto da lei não corresponde à prática que essa lei emana.
Em relação à posição dúbia do governo brasileiro, os deveres que envolvem a Comissão da Verdade não são do governo, mas do Estado. Naturalmente, governos executam as políticas de Estado, mas o Estado tem o dever de lidar com isso, independente de todas as outras questões. Um dever não anula outro e não pode ser usado como justificativa para se lidar ou não com uma questão. O Brasil avançou bastante no dever de reparar, ainda que de forma equivocada; temos investido agora no dever da verdade e menos nos outros dois. Certamente podem surgir críticas, e as ações de governo podem ser questionadas, consideradas equivocadas, certas ou mesmo ambíguas. A ambiguidade é inerente ao ser humano, portanto, aos governos formados por seres humanos.
A maneira como o governo se comporta em relação às dívidas na África não tem nada a ver com a obrigação de o Estado brasileiro lidar com o legado de violação em massa de direitos humanos.
Quando disse que no Brasil, na Argentina e no Chile foi muito diferente, o que queria explicitar e talvez não tenha ficado muito claro é que se percebe que numa sociedade que se identifica mais com os valores democráticos, como a integridade física, o direito à vida como o bem mais precioso, a questão de que os direitos e deveres são iguais para todos, a maneira pela qual os Estados e as sociedades lidam com esses legados diz muito de sua história e da maneira como está construindo sua democracia. Por outro lado, cada Estado trabalha com esses legados à sua maneira, não existe um modelo adotado na Argentina que pode servir para a África do Sul. Embora as graves violações sejam as mesmas, as motivações são diferentes, às vezes de direita, às vezes de esquerda, com conflitos civis, guerras étnicas, como entre os hutus e os tutsis, em Ruanda.
Em relação à África do Sul, uma das maneiras de o Estado sul-africano lidar com as vítimas do apartheid foi confrontando as vítimas com os violadores que concordassem em narrar suas histórias. As vítimas ou seus familiares ouviam o que eles tinham a dizer e aí era decidido se poderiam ser anistiados ou não. Muitos deles não foram beneficiados, talvez a maioria, pois eram crimes que não podiam ser anistiados. Nesse diálogo, o ponto principal a que a Comissão da Verdade tentava dar conta era que os familiares das vítimas queriam saber o que tinha acontecido com aquelas pessoas. Por isso o relato dos violadores na África do Sul foi tão importante e chamou tanto a atenção. Muitos familiares que ouviam as narrativas dos violadores não conseguiam perdoá-los. Não era o Estado que iria decidir quem poderia ser perdoado, o perdão é uma prerrogativa do ser humano. Se a mãe de uma vítima não perdoa, não há nada que possa ser feito nesse sentido.

LUIZ GORNSTEIN – Você mencionou que o presidente Fernando Henrique criou o Ministério da Defesa com comando civil. E a Justiça Militar, acha pertinente mantê-la?

NEY PRADO – Quero fazer algumas ponderações, que começam com a confusão semântica de sua exposição. Primeiro, a terminologia Estado. Estado é uma categoria jurídica, por isso ele está no mundo da axiologia. Ele não tem dor, não tem vontade, nada mais é do que um documento que denominamos Constituição. O que existe, realmente, e essas pessoas podem e devem ser responsabilizadas, são os governos. O governo é a materialização do Estado.
Outro problema é o conceito de justiça, que é meramente filosófico, subjetivo. Mais do que isso, quando se trata de adjetivar como transição da justiça, de duas uma, ou a justiça é um valor e não pode ser analisada em pedido transacional ou realmente está localizada no mundo da filosofia. E o que é verdade? Verdade também é outro conceito polissêmico, sem falar na própria democracia.
Então a pergunta é se realmente a democracia é um produto de nossa história ou é apenas um momento dela. Costumo dizer, e isso parece um jogo de palavras, mas de certa forma define muito bem o campo em que estamos inseridos, que é o conceito da revolução como um valor histórico e o valor da revolução. Como valor histórico é inquestionável que precisamos investigar. No caso de que estamos tratando, precisamos buscar esse momento histórico que foi atípico e de certa forma censurável. Com o valor da revolução precisamos tomar certo cuidado, porque pode-se cair no subjetivismo. Por exemplo, sobre a legitimidade da Revolução de 1964, um pesquisador se deu ao trabalho de coletar e divulgar na internet uma lista das manchetes dos principais jornais brasileiros a partir de 1
º de abril daquele ano. Todos os jornais brasileiros elogiaram a revolução com a legitimidade originária. É óbvio que houve deformações, torturas etc., mas em que medida podemos colocar isso numa dialética entre os que torturaram e os que estiveram do outro lado e também praticaram desvios de conduta tão sérios quanto.
Por último, eu também queria levantar a questão do indivíduo que obedece a ordens. Não vi nenhum general ser alcançado pela comissão por atos de tortura, mas capitães, majores etc. A questão é se esses oficiais que cumpriam ordens poderiam eventualmente ser punidos como se tivessem praticado crimes hediondos. Eu diria que é a mesma coisa que condenar o Papa por crime de pedofilia.

ZEVI GHIVELDER – Não sei se o Tribunal de Nuremberg poderia ser enquadrado nessa justiça de transição, porque não partiu de um Estado, mas de quatro aliados vitoriosos da Segunda Guerra Mundial. Esse tribunal deixou dois princípios muito claros. Primeiro: “Eu estava apenas cumprindo ordens” não era uma justificativa para os crimes praticados. Segundo: não valia aos acusados recorrer a ações dos Aliados, ou seja, não valia a expressão: “Nós fizemos, mas vocês também fizeram”. Tanto é que um dos réus quis se referir ao bombardeio de Dresden, feito pelos Aliados, em que morreram milhares de civis alemães, e isso foi barrado. Enquadrando tudo nesse conjunto, como é que a nossa Comissão da Verdade interpreta a questão: “Eu estava apenas cumprindo ordens”?

GLENDA – Não posso entrar aqui, e isso também entediaria a maioria dos senhores, nesse debate em que o senhor atribuiu uma confusão semântica entre Estado e governo, justiça, verdade, democracia etc. Os Estados têm obrigações. Os Estados não sentem dor, os governos também não, mas os indivíduos que são vítimas de torturas e de graves violações sentem muitas dores. Então o Estado tem o dever, tem a obrigação e a responsabilidade de lidar com isso por intermédio dos governos, que vão desenvolver essas responsabilidades. A pergunta que imagino que o senhor gostaria que eu respondesse é quando fala da revolução e diz que isso cai no subjetivismo. É claro, cada indivíduo pode julgar tudo o que aconteceu, o que acontece e o que vai acontecer e vai julgar de acordo com seus valores, seu repertório e sua perspectiva. Disso não há dúvida e é assim que tem de ser. O que é importante a gente não perder aqui, para não ficar numa coisa dialética, semântica ou cognitiva, é a questão de que os Estados têm deveres em relação às vítimas. O argumento de cumprir ordens é uma construção que vem a partir sobretudo do final da Segunda Guerra Mundial, desde o julgamento de Nuremberg. Esse tipo de alegação não é considerado satisfatório para efeitos do direito internacional e na temática do direito humanitário. Nuremberg pode ser considerado o embrião do que hoje se conhece como justiça de transição, justamente por ter de dar conta de uma realidade muito dramática, com um universo imenso de violadores e de vítimas. Nuremberg teve falhas, sem dúvida nenhuma, e uma das críticas mais contundentes que se faz é que foi uma justiça dos vencedores. Mas há muito mérito, é um paradigma importante e cumprir ordens não é argumento válido.
O que distingue o ser humano dos seres minerais, vegetais e animais é que temos a capacidade de discernir, raciocinar, utilizar o conhecimento, portanto, em alguma medida temos uma razoável margem de arbítrio. É óbvio que em situações onde não há liberdades democráticas decidir entre cumprir uma ordem ou não pode custar a vida, um preço muito alto, mas, enfim, também não podemos simplesmente desligar o cérebro, anular nossa capacidade de fazer escolhas. Dessa forma, penso que a questão já está respondida. Se a Comissão Nacional da Verdade vai interpretar dessa maneira a questão do cumprimento de ordens, não cabe a ela interpretar isso, porque processar e eventualmente punir, se for demonstrada a responsabilidade, caberá ao Judiciário, outra esfera. Lembro que a interpretação que se tem até hoje é de que a anistia impediria essa responsabilização.
Quanto à Justiça Militar, certamente, será objeto de reflexão da Comissão da Verdade, no sentido de propor reformas. Ainda não tenho nada a dizer sobre isso, mas certamente essas estruturas que lidam com grupos muito específicos têm de ser pensadas, é preciso analisar em que medida se inserem ou não num arcabouço democrático. Certamente o papel do Ministério Público, o papel do Judiciário, o papel das Forças Armadas, o papel da Justiça Militar, isso tudo vai ser objeto de recomendação no relatório final da comissão.

VICENTE MAROTTA RANGEL – Colho de sua exposição minha lembrança de Rubens Paiva, a quem recebi em Paris quando lá estudava. Imagine a perplexidade e a dor ao verificarmos o que lhe ocorreu. Eu era diretor da Escola de Sociologia e Política, na época, e também fui chamado como testemunha em processo criminal a respeito da infringência de direitos humanos perante o Tribunal Penal. Sou também juiz do Tribunal Internacional para o Direito do Mar, no qual se acentua o dever de todos nós de levarmos sempre em conta a temática de proteção dos direitos humanos, acompanhando o que se decide na Corte Internacional de Justiça de Haia. Ao referir-se a tribunais internacionais, a senhora teve ocasião de mencionar alguns, porém omitiu um deles, o Tribunal Penal Internacional, sediado na própria Holanda, em Haia. Minha pergunta é se essa omissão foi voluntária ou entenderia falar dela em outra oportunidade.

LENINA POMERANZ – Esse é um tema complexo, apresentado de forma brilhante, academicamente, introduzindo conceitos importantes para entender o quadro. Como a senhora pôde perceber, isso não foi suficiente para dirimir divergências, e está aí a participação de Ney Prado para comprovar que uma exposição como essa, apoiada em determinada teoria ou posição, não é suficiente para fazer com que as pessoas pensem de maneira igual.

NEY – Ainda bem, não é?

LENINA – Ainda bem. Só que a ditadura não pensava assim.

NEY – Mas eu também acho. Tenho mais de dez livros publicados e escrevo toda hora, e você não vai encontrar uma palavra que seja contra a democracia.

LENINA – Eu simplesmente quis mostrar que existem pessoas que pensam de maneira diferente, apoiadas em argumentos e teorias divergentes. Essa é a grande conquista de nossa democracia. Se estamos a fim de defendê-la, temos de dar a todas as pessoas o direito de ter sua opinião. Posso dizer que isso não aconteceu na democracia porque fui vítima, não porque peguei em armas ou cometi delitos, mas por pensar de maneira diferente. Fui de certa forma despedida do cargo de professora universitária e fiquei fora da universidade até que se fez uma chamada democracia interna na USP, nos anos 1980, e me chamaram de volta. Antes disso, fui trabalhar na Fundação Getúlio Vargas, onde não havia restrições a minha maneira de pensar.
Estou colocando essas questões pessoais porque quero enfatizar que me parece absolutamente fundamental destacar de sua fala a responsabilidade do Estado e aqui me permito divergir. Como disse Ney Prado, não são os governos os responsáveis, mas, sim, as instituições estatais. O Estado não é um papel ou uma Constituição, é uma instituição social que se desenvolveu histórica e culturalmente em todos os países do mundo. Se estamos num regime democrático, esse Estado tem de assumir a responsabilidade por aquilo que acontece sob seus cuidados. Insisto nisso porque estamos vendo que a violência por parte do Estado ou dos funcionários do Estado não afeta somente o pensamento, não se trata apenas de política. Vejam a história do ajudante de pedreiro Amarildo, que está causando manifestações no Rio de Janeiro. Vejam o que se passa em todas as delegacias do país, o pobre, o preto e o jovem não têm direitos. Muda o governo e continuamos na mesma situação horrorosa dos direitos humanos reduzidos para a população pobre. Se não houver uma preocupação da sociedade em cobrar do Estado, vamos continuar sendo um país subdesenvolvido em termos de justiça social.

ISABEL ALEXANDRE – Gostaria de ressaltar um dos temas mais polêmicos de que a palestrante falou: não mexer no passado em nome de uma possível conciliação e paz no presente é uma lógica perversa. Aparece muito na questão o efeito de uma catarse em termos sociais. É um efeito doloroso, como se vê na Argentina, mas é positivo.

MANUEL HENRIQUE FARIAS RAMOS – Como representante universitário, estive com dom Evaristo Arns e ele dizia assim: “Não façam bobagens, mas se as fizerem, procurem-me”. Posso dizer que conheço muito bem o que é abuso de autoridade e nessa discussão ouvi uma frase que para mim é lapidar: “Para entender a vítima, você precisa vestir a pele da vítima”. Eu divirjo do ponto de vista de Ney Prado, mas muita gente pensa como ele, lamentavelmente. Então, quando estou citando aqui Ney Prado e divergindo de seus pontos de vista, é o Ney Prado coletivo, já que muita gente pensa da mesma maneira.
A anistia de algum jeito deu solução para os que violentaram os direitos humanos, mas as vítimas estavam precisando falar. A Comissão da Verdade existe para dar a palavra a elas, era preciso vestir sua pele para saber o que sentiram. Isso estava faltando. A pior coisa é virar a página e colocar tudo debaixo do tapete. Como a palestrante disse muito bem, é perversidade fazer isso, não podemos banalizar o mal a tal ponto.
Gostaria ainda de dizer que esse desdobramento vai levar a uma necessária reforma do Estado, principalmente das instituições. A democracia não está respondendo ao que queremos, é um Estado do século 19. A Comissão da Verdade, creio, vai desencadear um processo, pôr em aberto coisas que aconteceram e não poderiam ter acontecido. Sem me alongar, digo apenas que assino embaixo do que a palestrante disse e eu gostaria de tê-lo dito.

GLENDA – Em relação à omissão mencionada pelo professor Marotta Rangel, fui totalmente omissa mesmo, não foi deliberadamente. Poderia citar vários outros tribunais, todos exercem um papel importante. De fato cabe, sim, nessa reflexão. A fala emocionada da professora Lenina também me comoveu.
Sem dúvida nenhuma, o Estado tem responsabilidades. Agora, como bem mencionado, ele é uma construção social onde os direitos são garantidos. Tanto que uma grande questão, quando acontecem períodos de conflito, são as pessoas que perdem a cidadania, como os refugiados, por exemplo, da Síria ou do Egito. Se o indivíduo não tem uma cidadania, não pertence ao Estado, está num limbo em que ninguém pode lhe assegurar direitos e deveres.
Até agora não há um arranjo que substitua o Estado e, como mencionei, os governantes herdam a responsabilidade legal de seus antecessores. É exatamente aí que o passado se encontra com o presente e com o futuro. No caso do Amarildo, por exemplo, a população da periferia parece descartável, considerada um contingente passível de desaparecer sem deixar vestígios. É vista como uma esfera distinta de cidadania; isso não pode jamais ser tolerado ou permitido numa democracia, não há seres humanos descartáveis. Naturalmente, isso tem tudo a ver com a impunidade, porque também está muito claro, para os organismos da ONU, que a impunidade é o motor que em grande medida impulsiona esse tipo de crime.
Concordo com a Isabel, esquecer o passado é uma lógica perversa, que infelizmente se sustenta. Uma prova clara de que não se pode negar o passado é que se insiste na manutenção da Lei da Anistia ou em dizer que ela assegura a impunidade. Quem cometeu crimes claramente não consegue enfrentar o passado, e se não consegue é porque não esqueceu. As vítimas não esqueceram porque também a elas não foi facultado o direito de lidar com o passado.
Certamente a maioria da população não tem grande interesse pelo tema, imagino que por não perceber as implicações que tem para o presente ou para a democracia que está sendo construída no país. O principal de tudo isso é a democracia que queremos ter.
O mal pode ser cometido por qualquer um de nós. Todas as pessoas têm o potencial para cometer crimes, portanto tem de haver um arranjo institucional e uma estrutura social que possibilitem que, em momentos de ruptura ou em eventuais situações em que precisamos fazer uma escolha, que a escolha seja feita pela vida, pelo respeito à dignidade humana e à alteridade, ao outro ou à maneira do outro de ver o mundo.
Só para finalizar, doutor Ney Prado, quando houve seu aparte na intervenção da professora Lenina, o senhor disse que sempre defendeu a democracia, mas eu também não conheço nenhum ditador que não tenha defendido a democracia, todos sempre defendem a democracia.

NEY – Tenho todos os motivos para elogiar sua explanação, já o fiz. Apenas quis dar uma colaboração a alguns aspectos que sua tese pode oferecer. Agora, não me rotule, nem de brincadeira diga que sou um autoritário, porque sou o contrário disso.

GLENDA – Um pequeno lembrete: se os senhores conhecerem vítimas, sobreviventes e testemunhas de graves violações que queiram relatar suas histórias na Comissão da Verdade, por favor, entrem em contato. As pessoas podem contar em sigilo. É muito importante para a reconstrução desse período.