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O teatro e seus bastidores

Obras clássicas e de vanguarda: um imenso caldeirão cultural / Foto: Águeda Amaral/USP Imagens
Obras clássicas e de vanguarda: um imenso caldeirão cultural / Foto: Águeda Amaral/USP Imagens

Por: REGINA ABREU

“A arte existe porque a vida não basta.” Palavras do poeta Ferreira Gullar. Deve ser por isso que na cidade de São Paulo existem cerca de 150 teatros onde são montados espetáculos de todas as linhas artísticas, desde os grandes musicais da Broadway ao teatro clássico e de vanguarda, com encenação e linguagem pós-modernas. Para se ter uma pequena ideia da quantidade de opções oferecidas por essa estrutura teatral, basta citar que na semana de 8 a 14 de novembro de 2013 o “Guia da Folha de S. Paulo”, roteiro de atrações na cidade, dedicou 11 páginas somente para noticiar algumas peças em cartaz – sem contar outras tantas sobre shows e espetáculos de dança, além de teatro infantil. Realmente, quem mora na capital paulista ou vem para cá a trabalho ou a passeio não pode se queixar de tédio, a menos que queira ficar à parte desse imenso caldeirão cultural em que se transformou a grande metrópole. A primeira grande atração é sem dúvida o histórico Theatro Municipal, um dos mais importantes da cidade e cartão-postal por seu estilo arquitetônico que lembra os mais representativos teatros do mundo – claramente inspirado na Ópera de Paris. De importância histórica, por ter sido o palco da Semana de Arte Moderna de 1922, o marco inicial do modernismo no Brasil, o Municipal, inaugurado em 1911, foi construído pelo escritório técnico de Ramos de Azevedo.

Visava-se, com ele, atender o desejo da elite do começo do século 20, que queria que a cidade estivesse no mesmo patamar dos grandes centros culturais da época. O edifício faz parte do Patrimônio Histórico do estado desde 1981, quando foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). Destinado também a promover, desde o início, a ópera e o concerto, abriga atualmente o Balé da Cidade de São Paulo, o Coral Lírico, o Coral Paulistano, Escolas de Dança e de Música, a Orquestra Experimental de Repertório, a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo e o Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo. De janeiro a novembro de 2013, o Theatro Municipal vendeu 112 mil ingressos, quantidade 83% superior à do ano passado; só a ópera Aida cravou, em agosto, o recorde histórico de 15 mil espectadores.

A luxuosa e excelente Sala São Paulo, abrigada nas instalações onde, no passado, funcionava a estação central da finada Estrada de Ferro Sorocabana, tem o mesmo conceito e dá guarida à Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), uma das mais reconhecidas no mundo. Na mesma linha está o Theatro São Pedro, que sempre recebe musicais, orquestras e peças de renome. Mas há outras importantes salas de espetáculos que também apresentam grandes produções, como o Teatro Abril, que já sediou O Fantasma da Ópera e Miss Saigon, por exemplo, o Teatro Alfa, que recebeu musicais como My Fair Lady, e o Teatro Raul Cortez, inaugurado em 2005, uma homenagem póstuma da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio) ao grande ator paulistano. O teatro já foi palco de peças como Às Favas com os Escrúpulos, de Juca de Oliveira, dirigida por Jô Soares e estrelada por Bibi Ferreira e o próprio Juca; As Centenárias, de Newton Moreno, com as atrizes Andrea Beltrão e Marieta Severo; e, mais recentemente, A Noviça Mais Rebelde, comédia musical escrita pelo americano Dan Goggin. Já para as grandes montagens de comédias, o escolhido é, principalmente, o Teatro Folha. Mas há teatros menores que também apresentam este gênero, como o Teatro Shopping Frei Caneca e a maior parte dos estabelecimentos localizados no entorno da Praça Roosevelt, entre eles o Espaço Parlapatões e o Espaço Satyros 1 e 2. Outros palcos são igualmente clássicos e muito conhecidos dos paulistanos e turistas, como, por exemplo, o Gazeta, o Teatro da Pontifícia Universidade Católica (Tuca), o Teatro Itália, o Núcleo de Artes Cênicas da Fundação Álvares Penteado (Teatro Faap), o Augusta, o Sérgio Cardoso e o Bradesco, para citar apenas os mais badalados. Além disso, vários centros culturais também têm sua própria sala, como é o caso do Centro Cultural São Paulo e do Centro Cultural Banco do Brasil, e até de livrarias, como a Livraria Cultura (Teatro Eva Herz). Já no estilo alternativo, o teatro de arena fez e faz história na capital paulista. Dois excelentes exemplares desse tipo são o Tucarena (instalação teatral da Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP) e o diferente Teat(r)o Oficina, que proporcionam experiências sensoriais muito interessantes.

Curso de interpretação

Sem falsa modéstia, não é possível falar sobre a arte de representar em São Paulo sem focar os teatros do Sesc. Fazem parte do panorama cultural da cidade os palcos do Sesc Pinheiros (Paulo Autran), Consolação (Anchieta), Pompeia, Santana, Vila Mariana e Belenzinho. Como se não bastasse, há ainda a Mostra Sesc de Teatro de Rua, que se apresentou, na última edição, entre os dias 20 e 29 de setembro de 2013, em 11 cidades do estado – capital, Grande São Paulo e interior –, e envolveu 180 profissionais em 68 sessões e 10 atividades. “Aqui no Sesc o teatro está sempre lotado”, ressalta Antunes Filho, que até o começo de dezembro de 2013 encenou a peça Nossa Cidade, do americano Thornton Wilder (ganhador do Prêmio Pulitzer em 1938), no Sesc Consolação. Com linguagem poética que acentua a falsidade, a irrealidade daquela vidinha numa pequena cidade do interior dos Estados Unidos, a peça foi, provavelmente (e aí valeu muito a interpretação de cada ator) um libelo contra as guerras em que se envolveu aquele país, ou mais que isso, contra todas as guerras. Em cada apresentação, o povo aplaudiu de pé.

“O Sesc atende a todos os gostos: tem shows, comédias, tragédias, salas experimentais, tudo feito para o povo e eu colaborei para isso, o que me dá muita alegria”, diz Antunes Filho. Ele conta que foi grande a trilha que o presidente da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo e dos Conselhos Regionais do Sesc e Senac, Abram Szajman, o diretor do Departamento Regional do Sesc, Danilo Santos de Miranda, e ele mesmo, Antunes Filho, tiveram que percorrer, tornando o Sesc SP reconhecido internacionalmente. Tudo começou quando Antunes Filho, já com prestígio consolidado, alcançou projeção internacional, em 1978, com Macunaíma, espetáculo apresentado em cerca de 20 países, sempre com irrestritos elogios da crítica e aplauso do público. Durante a elaboração deste trabalho, Antunes passou a sistematizar recursos técnicos de corpo e voz de sua autoria que buscavam se adequar à realidade cultural e ambiental do ator brasileiro. Surgiu então o Grupo de Teatro Macunaíma, que se transformou em escola de teatro.

Em 1982, o Sesc SP, após estudos objetivando estimular a produção teatral, criou o Centro de Pesquisa Teatral (CPT), entregando sua coordenação e direção a Antunes Filho e abrigando como núcleo principal o Grupo de Teatro Macunaíma. A partir daí as pesquisas sobre técnicas de ator e estéticas cênicas se aprofundaram de modo surpreendente. Antunes Filho buscou recursos em todas as áreas de conhecimento – incluindo a nova física, a nova retórica, as ideias filosóficas orientais – para fundamentar e consolidar seu processo criativo, reconhecido por numerosos prêmios, inclusive internacionais. Ainda assim, suas investigações estéticas continuam, e também seu trabalho prospectivo sobre as técnicas de ator já sistematizadas.

Sempre inquieto e questionador, apesar (ou por causa) de seus 84 anos, ele confessa querer se beneficiar, e aos outros: “Eu me sei através dos outros”, explica Antunes Filho, acrescentando que tem de captar a velocidade, o tempo e o espaço. Foi o que fez com a peça Nossa Cidade – escrita em 1938, mas à qual deu um choque de modernidade. Foi o que fez também com Lamartine, de sua autoria, musical que está em cartaz há quatro anos, sempre com plateia lotada, como informa o ator Emerson Danesi, produtor e diretor da peça. Ele é também professor no “CPTzinho” (onde a peça é apresentada) do curso de interpretação, que é aberto ao público. São turmas de 20 alunos, previamente selecionados, que aprendem com a metodologia do CPT.

Direitos autorais

Mas nem só de peças modernas e de vanguarda vive o teatro paulistano. Pela primeira vez no Brasil, um grupo de artistas se propõe a encenar todas as 39 peças de William Shakespeare (1564-1616). É o Projeto 39, a ser levado durante 10 anos, em comemoração aos 450 anos do nascimento do autor (a serem completados em abril próximo) e também para lembrar os 400 anos de sua morte, em 2016. O projeto recebeu o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2013. A primeira montagem foi Ricardo III, que estreou em outubro de 2013, no teatro João Caetano, com Mayara Magri no papel de Rainha Elizabeth, Chico Carvalho como Ricardo III, e direção de Marcelo Lazzaratto. O apoio institucional é do Ministério da Cultura (Lei Rouanet e Governo Federal) e do Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo (Proac), com apoio da Secretaria de Estado da Cultura (Programa de Ação Cultural 2011-2012).

Desde o século 16, os personagens de Shakespeare se apresentam em praticamente todos os palcos do mundo. Em Ricardo III, o texto percorre a história real da Inglaterra, no final da Guerra das Rosas, retratando o conflito sucessório pelo trono inglês ocorrido entre 1455 e 1485. A peça lança um olhar sobre os bastidores políticos, escancarando a imoralidade e a ambição para chegar ao poder. Traições, complôs e outras perversidades recheiam a obra, refletindo a cobiça de Ricardo III e as ambições humanas de todos os tempos e sociedades. O texto shakespeariano recebeu tradução e adaptação feita exclusivamente para este espetáculo. O trabalho é do dramaturgo português Jorge Louraço, com a proposta de preservar a história original e as características que identificam o autor e a obra. Outras três montagens do Projeto 39 já estão bem encaminhadas para este ano: Romeu e Julieta (com direção de Vladimir Capella), As Alegres Comadres de Windsor (direção de Cacá Rosset) e Troilo e Créssida (com Maria Fernanda Cândido).

Quem vai ao teatro provavelmente nem imagina como é difícil, complicado e caro montar uma peça. A Toca do Coelho, peça de autoria de David Lindsay-Abaire, direção de Dan Stulbach, com Maria Fernanda Cândido, Reynaldo Gianecchini, Selma Egrei, Simone Zucato e Felipe Hintze, é um exemplo disso. A produtora Simone Zucato, que também atua na peça, descreve o que foi uma verdadeira epopeia até dar início à temporada: “Quem produz tem de se preocupar com direitos autorais, leis de incentivo, patrocinadores etc.”, diz. Apaixonada pela peça (“texto maravilhoso que recebeu o Prêmio Pulitzer em 2007”), Simone começou a batalhar pelos direitos autorais em 2009. Em tempo: compra de direitos autorais, para quem não sabe, vale por apenas dois anos – depois, precisa comprar de novo. Desse modo, até montar a peça, Simone precisou adquirir os direitos três vezes, parcelando o pagamento. E a luta continuou para captar recursos. O custo do ingresso mal arranha a despesa da montagem, e a porcentagem da bilheteria vai para os atores, para o diretor, para o autor, para o próprio teatro. Tem mais: o produtor precisa juntar uma poupança para cobrir quaisquer eventualidades. Por isso, acredita Simone, a meia-entrada é injusta, argumentando que nos Estados Unidos ela nem existe (e lá, o ingresso custa US$ 80, o equivalente a R$ 176). Aqui, relata, 60% da bilheteria é composta de ingressos de meia-entrada.

“Trair e coçar”

O elenco já ensaiava há um mês e meio quando, finalmente, Simone conseguiu patrocínio. Mas ela nunca desistiu – muitas vezes, recorda, teve de recorrer à sua segunda profissão, de médica especializada em geriatria: “Cobria plantão de Natal, de réveillon, os quais ninguém quer trabalhar, e utilizava o dinheiro extra para as despesas que jorravam”. Valeu a pena: com casa lotada, Simone se prepara para levar a peça para o Rio de Janeiro, por três meses, a partir de janeiro, e depois mais sete cidades (Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Salvador e Vitória). Há também uma grande probabilidade de encenar em Portugal. Viajar com a peça significa nova inscrição na lei Rouanet e ter de levantar recursos para levar todo mundo: atores, diretor, técnicos de som e iluminação, diretor de palco, contrarregras... É fácil imaginar quanto custa tudo isso. Vai ser outra batalha, mas a produtora de A Toca do Coelho afirma que está feliz e já tem mais três projetos engatilhados.

A despeito de tantas barreiras, há muito a comemorar. Por exemplo, a peça Trair e Coçar É só Começar detém o recorde de a mais longa temporada do teatro brasileiro. Estreou em 1986, no Rio de Janeiro, e veio para São Paulo três anos mais tarde para nunca mais sair de cartaz. Escrita em 1979 pelo ator e dramaturgo Marcos Caruso, já foi vista por mais de 6 milhões de espectadores, em diversas casas teatrais de São Paulo – e, eventualmente, de outras cidades. O livro 25 Anos + Um – A História de Sucesso de Trair e Coçar É só Começar, de João Nunes, conta como esse feito foi possível.

Há mais exemplos de sucesso de público. Em meados de novembro de 2013, três montagens estavam com ingressos esgotados até o final do ano: Gonzagão, a Lenda (Sesc Belenzinho); A Arte e a Maneira de Abordar seu Chefe para Pedir um Aumento (Sesc Vila Mariana) e Contrações (Centro Cultural Banco do Brasil). Mas, naturalmente, não existem apenas teatros cheios. Há peças em que somente meia dúzia de “gatos pingados” (des)prestigiam a apresentação. Esta é uma queixa recorrente no meio teatral: a falta de interesse do público, a pouca afluência. Por quê? Pesquisa sobre hábitos culturais realizada no Rio de Janeiro, mas que vale também para São Paulo, aponta o óbvio: a educação é a base do consumo cultural. Quanto maior o número de anos de estudo, cresce o número de leitores e maior é a frequência a cinemas, teatros e museus. A grande barreira às práticas culturais é o desinteresse, índice influenciado pelos menos escolarizados e não pela falta de dinheiro.

O ator, diretor e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Celso Frateschi, tem uma explicação que complementa o estudo carioca, “é sequela da ditadura”. Para ele, os anos de chumbo (como é chamado o período dos governos militares, que se estendeu de 1964 a 1985) interromperam a evolução do teatro, que ia bem, como nos casos do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), Arena, Teatro Cacilda Becker (TCB). Teatro tem tudo a ver com cultura e com cidadania. Com os militares houve o “cala boca”, a massificação da escola, o sufocamento da arte, e, o pior dos males: a censura. Com a “política de ausências” não se construíam teatros nem espaços públicos. Hoje, ainda sofremos as consequências disso. “Não é uma questão de teatro, é de país”, explica Frateschi, acrescentando que o problema é a falta de educação de qualidade, dizendo que Buenos Aires tem mais livrarias que o Brasil inteiro.

Recursos próprios

Enquanto isso, segundo Frateschi, a lei de incentivo, conhecida como lei Rouanet, “tem um efeito perverso”. Ela funciona assim: a empresa pode destinar até 4% do Imposto de Renda devido a um projeto teatral. Quer dizer: o governo deixa de arrecadar um dinheiro que poderia destinar para a saúde ou para a educação, e quem decide onde ele será aplicado é o gerente de marketing das corporações! Que, por sinal, não faz mais do que seu trabalho ao escolher patrocinar peças que beneficiem a imagem da empresa, e ao querer atores famosos e temporadas curtas (a mídia só noticia lançamentos; depois, vira notícia velha). “Felizmente, algumas empresas, como a Petrobras, e mesmo a Fundação Nacional de Artes (Funarte), abrem edital público e dão chance a outras manifestações artísticas”, observa Frateschi. Mas há uma outra luz no fim do túnel: o Vale-Cultura. O professor da ECA lembra que a lei do vale já foi aprovada e, no momento, está sendo organizada sua logística. Agora, o cidadão é que vai escolher o que quer assistir – e é assim que tem de ser.

Há outras coisas curiosas e algumas inacreditáveis no meio teatral. A presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado de São Paulo (Sated-SP), Ligia de Paula Souza, conta que até 1978 as atrizes precisavam de uma carteirinha, igual à das prostitutas, que era fornecida pela censura, e que era retirada na Polícia Federal. Naquele ano houve uma mobilização, e a profissão foi regulamentada, com lei e decreto que dão garantias para as 57 funções do meio artístico. Ainda assim, só a paixão pelo teatro pode explicar a dedicação dos artistas à atividade. Viver mil vidas, como é o caso do ator, por exemplo, esbarra na dura realidade de trabalhar muito e ganhar pouco, ou pelo menos esperar muito até receber reconhecimento.

Reconhecimento como o da querida e talentosa atriz Maitê Proença, que esteve em temporada popular no Rio de Janeiro com a peça À Beira do Abismo me Cresceram Asas. E, como ela conta, seguirá pelo interior de São Paulo e, posteriormente, todo o Brasil. Há muitos convites. Os cinco meses de temporada em São Paulo, em 2013, foram um sucesso absoluto. Em plena atividade, Maitê lembra que seu início foi ao lado de Armando Bogus: num vaudeville (gênero de entretenimento de variedades, dança, mágica, música, sem relação entre si) chamado Mentiras Alucinantes de um Casal Feliz, de João Bethencourt, no Teatro Ginástico do Rio de Janeiro (atual Teatro Sesc Ginástico), de terça a domingo, com duas sessões aos sábados e domingos. “Era puxado, mas ganhava-se dinheiro e a produção se sustentava com a bilheteria”. Ao contrário de hoje, diz Maitê: “Não teria como montar minhas produções sem o dinheiro das leis de patrocínio. Ou melhor, teria de colocar do próprio bolso, como fiz incontáveis vezes, mas aí, estou pagando para trabalhar, e para amortecer o investimento vão-se muitos meses”. Ela expõe que geralmente não se tem fôlego para isso, ainda mais agora, quando é grande a dificuldade para conseguir o apoio de companhias aéreas para as viagens. Mas destaca que nem tudo são espinhos. “O Antonio Fagundes cotiza todos os artistas e técnicos das produções dele. Como têm um público cativo, em poucos meses amortiza a dívida. Sei que tem dado certo para ele, e pode ser um caminho para todos nós”.

Bruno Fagundes, filho de Antonio Fagundes, explica que, de fato, a peça Tribos, de Nina Raine, com direção de Ulysses Cruz, em que ele trabalha ao lado do pai e de Arieta Correia, Eliete Cigaarini, Guilherme Magon e Maíra Dvorek, foi montada com recursos próprios, sem patrocínio nem apoio de ninguém. Isso foi possível porque se formou uma cooperativa, em que cada um abriu mão de seu salário durante um período e os recursos levantados foram usados com muita racionalidade. O piano do cenário, por exemplo, preenche perfeitamente sua função, apenas decorativa: é um piano “de mentirinha” e saiu por uma fração do preço de um similar de verdade. Mesmo assim, o custo de uma montagem é enorme – tanto que 80% da bilheteria é utilizada para cobrir essa despesa (só o aluguel mensal do teatro fica em torno de R$ 25 mil) e a produção fica com apenas 20%.

A peça Tribos tem um diferencial importante – e inédito: surdos e cegos podem assistir ao espetáculo. Nada mais lógico, já que é de surdos que a peça trata: Nina Raine, autora do texto, usa a figura de um deficiente auditivo para questionar os diversos tipos de limitação do ser humano e, de uma maneira divertida e politicamente incorreta, revive as típicas questões familiares e reforça as dificuldades de convivência, como em toda tribo. No último sábado dos meses de outubro, novembro e dezembro de 2013 fez-se a tradução, durante a peça, utilizando a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Para os surdos que não a conhecem, mas foram alfabetizados em português, foram distribuídos, por ordem de chegada, 20 tablets, com legendas que traduziam a fala dos personagens. Já os cegos também puderam apreciar o espetáculo, que teve audiodescrição nas cenas sem diálogo. Bruno, que também produziu a peça, juntamente com o pai, confessa: “Foi gratificante e emocionante ver a reação do público, que se identifica com a história do espetáculo”. E agora tem mais essa plateia de deficientes visuais e auditivos, até então excluída: “A peça está bombando!”, comemora.

 


 

Maomé vai à montanha

Há muitas desculpas para não ir ao teatro, e o “ingresso caro” é uma delas. Não é o caso da assistente administrativa Erika Pereira de Jesus, 30 anos. Frequenta teatro há oito anos e o começo dessa rotina teve início quase que por acaso, já que a ideia era prestigiar uma amiga atriz. Depois, passou a ir a espetáculos de amigos dessa amiga – e pegou gosto. “No começo, achava difícil, principalmente as peças de Shakespeare, e de Nelson Rodrigues – mas acho que é como música clássica: você vai refinando o gosto, vai aprendendo a apreciar”.

No começo, conta, ia ao teatro mais por amizade, mas sempre gostou de cultura. Certa vez chegou a gastar um décimo do ordenado para comprar um ingresso. Mas, morando sozinha e com salário modesto, ia sempre de preferência a peças gratuitas. Naquela época ela ainda estudava no Senac, e tinha carteirinha do Sesc e de estudante, e isso ajudava muito. Atualmente, Erika trabalha no bairro paulistano Bom Retiro e vai todos os dias ao Sesc para almoçar (“R$ 6, comidinha ótima!”). Aproveita para retirar a programação das Unidades (“ando com ela na bolsa”), assiste a todas as peças e ainda leva a afilhada, de três anos e meio, às apresentações infantis. Mas isso não é tudo: ela frequenta os teatros da Praça Roosevelt e seus circuitos alternativos a preços populares. Erika é como Maomé, que vai à montanha.

Como se sabe, entretanto, a montanha precisa ir a Maomé. É verdade que andar à noite em São Paulo está ficando perigoso, principalmente para as pessoas da terceira idade. Mas já existem empresas, como a Melhor da Vida, cujos clientes estão nessa faixa etária. Mas o que ela faz? Compra o ingresso (cobra 35% a mais), leva a pessoa ao teatro e traz de volta para casa, em qualquer bairro da cidade, cobrando R$ 55 pelo transporte. Ede, uma paulistana, viúva, que mora sozinha, é cliente da Melhor da Vida. Foi assistir à apresentação do cantor italiano Amedeo Minghi no Teatro Alfa e ainda quer assistir também ao grupo de jovens tenores Il Volo, no Teatro Bradesco. “Foi ótimo, o serviço é muito bom e os acompanhantes são atenciosos. Fui e voltei tranquila – e isso não tem preço”. Ela resolveu que agora vai ao teatro pelo menos uma vez por mês, pois não precisa mais depender de filho.

Outra desculpa para não aproveitar as peças, mas que não é desculpa, é a pura verdade, tem a ver com a inexistência desses palcos no bairro onde a pessoa mora. Mais uma vez, a montanha tem de ir a Maomé, por que não? Nilva Luz, gerente adjunta da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc, conta que turmas de alunos de escolas públicas de outros municípios são trazidos periodicamente aos teatros da entidade para assistirem a peças que são depois comentadas e explicadas e, na sequência, há um debate. As peças são apresentadas pelo Sesc e o transporte é garantido pelo estado, proporcionando às crianças e aos adolescentes uma oportunidade única nunca antes vivenciada por muitos deles.

Outra iniciativa que também merece destaque é a do Circuito Cultural Paulista, que tem por objetivo ampliar o acesso da população do interior e do litoral paulista, em turnês gratuitas, a programas culturais de qualidade. A sexta edição do programa contou com o maior número de cidades participantes desde sua criação, em 2007, e levou, até o mês de novembro de 2013, espetáculos de circo, teatro, dança e música para cem cidades paulistas. Foram oito meses de atividades culturais gratuitas, com cerca de 720 atrações ao longo do ano.