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Louvação à boa literatura

Foto: Arquivo PB
Foto: Arquivo PB

Por: HERBERT CARVALHO

A busca pela glória, pelo dinheiro e pela projeção pessoal dos tempos atuais transformou uma atividade outrora caracterizada por introspecção em objeto de intensa badalação em feiras e bienais. Na civilização do espetáculo, que privilegia cada vez mais a banalidade em detrimento da profundidade, o escritor de sucesso é tratado como pop star, fabricado pela mídia e pelo marketing. Seus best-sellers sequenciados por lógica industrial abarrotam as prateleiras até de supermercados, em abundante oferta de textos superficiais no conteúdo e indigentes na forma, produzidos para consumo imediato e posterior descarte.

No passado não muito remoto, porém, escrever livros criativos, saboreados pelos leitores palavra por palavra e jamais esquecidos, comparados às obras-primas da música e da pintura, era trabalho desenvolvido por homens e mulheres em meio a grandes sacrifícios pessoais. Uma visão panorâmica da vida e da obra de uma vintena desses atualmente chamados de “escritores literários” é o que nos proporciona Profissionais da Solidão, da Editora Senac São Paulo, oportuna coletânea de artigos da jornalista Cecilia Prada, ela própria uma escritora que se confessa nos estertores da extinção “em meio à enxurrada editorial quantitativa despejada cotidianamente”.

“Nenhuma obra artística requer tanto esforço concentrado, tanta necessidade de isolamento, tanto esforço de introspecção como o que tem sido empenhado através dos tempos na elaboração do grande patrimônio literário de que atualmente dispõe a humanidade”, garante a autora na apresentação do livro que contempla suas investigações e reflexões como jornalista literária desde 1995. Ela sabe do que fala. Primeira mulher a receber o Prêmio Esso de Reportagem, em 1980, suas incursões pela literatura resultaram em títulos como O Caos na Sala de Jantar, Faróis Estrábicos na Noite, Estudos de Interiores para uma Arquitetura da Solidão e A Pena e o Espartilho.

Ativa nos círculos intelectuais desde 1950, Cecilia acrescenta ao vasto conhecimento sobre literatura brasileira o contato pessoal com alguns dos personagens retratados, permitindo-lhe relatar como testemunha fatos que presenciou. Esta soma de informação acadêmica com experiências de vida faz de Profissionais da Solidão um precioso guia para o leitor interessado em conhecer o que de melhor a literatura brasileira produziu nos séculos 19 e 20 por ícones consagrados e por autores que, apesar da qualidade de suas obras, não chegaram a atingir o grande público.

No primeiro time, a escolha para encabeçar o elenco recaiu sobre Mário de Andrade (1893-1945), seguido por Guimarães Rosa (1908-1967), revolucionários do conteúdo e da forma da literatura brasileira por meio de duas obras polêmicas, Macunaíma e Grande Sertão: Veredas, respectivamente. A criação do anti-herói que se tornou símbolo do modernismo é descrita como “uma grande gargalhada, provocadora, instigante”, que repercute até hoje e nos anima “a continuar a eterna luta pela integridade de uma consciência nacional”. Já o uso insólito da língua portuguesa por Rosa, mineiro de Cordisburgo, diplomata de carreira, é saudado como fruto do “isolamento em que se manteve, no Brasil e no exterior, alheio a modismos, críticas ou incensamentos precoces”.

A prosa regional também é analisada por meio de dois outros perfis, de José Lins do Rego (1901-1957) e Graciliano Ramos (1892-1953), cujos romances possibilitaram ao Brasil e ao mundo conhecer as agruras dos nordestinos assolados pela natureza inclemente e por estruturas socioeconômicas arcaicas e perversas. Fatores denunciados pioneiramente, aliás, por Euclides da Cunha (1866-1909), que não hesitou em financiar do próprio bolso sua obra Os Sertões: Campanha de Canudos, que representaria “o juízo implacável do futuro” sobre o massacre de sertanejos pelo exército brasileiro.

Ainda entre os nomes mais conhecidos do público, a poesia comparece com três expoentes: Cecília Meireles (1901-1964), João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e Vinicius de Moraes (1913-1980). Clarice Lispector (1920-1977) e Lima Barreto (1881-1922) são exemplos de vidas e carreiras literárias marcadas pelo preconceito que ela sofreu como mulher, estrangeira e judia, e ele por ser negro. E para quem estranhar a inclusão de um “príncipe”, apelido de Joaquim Nabuco (1849-1910), em livro “que se propõe tratar dos escritores que muito penaram na vida e na tarefa literária”, a autora explica: a publicação de seus diários íntimos, que só ocorreu em 2005, revelou “um ser humano que remoeu até o fim da vida mágoas insuperáveis, advindas certamente de um grande sentimento de rejeição dos próprios pais”.

Rodapé da fama

O mérito maior da seleção feita por Cecilia Prada talvez seja, entretanto, o de valorizar personalidades dotadas de grande talento que, por diversas razões, acabaram escondidas no passado literário do país. São autores que nos legaram obras “de feitio subjetivo, sofrido” e que permanecem “no rodapé da fama e da história oficial, esperando que de quando em quando alguém folheie nos sebos seus livros há muito esgotados”.

O caso mais incomum é o de Qorpo-Santo, pseudônimo do mestre-escola gaúcho José Joaquim de Campos Leão (1829-1883), que escreveu, durante cinco meses do ano de 1866, 17 comédias, reconhecidas cem anos depois como precursoras do surrealismo e do Teatro do Absurdo, movimentos teatrais surgidos na Europa no final da década de 1950. “Internado como mentecapto, para seus contemporâneos prova cabal de sua loucura era a mania de afrontar a seu bel-prazer as normas ortográficas, ostentando essa ousadia até mesmo no nome escolhido para assinar suas obras teatrais e seus poemas”. Para protestar contra sua interdição compôs, em 1877, uma autobiografia que intitulou Ensiqlopèdia ou Seis Meses de uma Enfermidade, tornando-se também tipógrafo para imprimi-la.

Também trancada em instituições psiquiátricas esteve a escritora Maura Lopes Cançado (1929-1993), que relataria suas experiências no livro Hospício é Deus. Lançado em 1965 e reeditado em 1979, esse diário de suas internações “ultrapassa o feitio documento para se tornar autêntica obra literária”, avalia Cecilia Prada, que, entretanto, não pode concluir uma adaptação do texto para o teatro porque o filho de Maura, o jornalista Cesarion Praxedes, não autorizou essa forma de divulgação da tragédia de sua mãe.

Trágica acima de tudo foi a vida de Marcos Rey (1925-1999), “o mais paulista dos escritores”, que tinha “o segredo guardado em suas mãos”, de acordo com o capítulo dedicado a este autor de 43 livros de ficção, entre os quais O Enterro da Cafetina. O mistério de que os dedos tortos de Edmundo Donato (seu verdadeiro nome) davam uma pista seria revelado apenas após sua morte. “Nunca suspeitamos, mas ele tivera lepra na juventude e dela guardava sequelas”, diz a autora sobre o confrade, testemunhando também que ele, na impossibilidade de se valer apenas de direitos autorais, sempre fora “obrigado a trabalhar exaustivamente em gêneros nada nobres como roteiros de pornochanchadas, para poder viver”.

Já o carioca Antonio Carlos Villaça (1928-2005) padecia de outro tipo de tragédia. “Era tão gordo que não podia sequer tomar um ônibus, porque não passava pela catraca”, conta Cecilia a respeito do amigo cuja obra principal, O Nariz do Morto, relata as vivências do autor em ambientes enclausurados. “Foi noviço entre os beneditinos e os dominicanos, cortejou jesuítas e franciscanos, mas não se adaptou nunca à servidão do pensamento livre ao dogma”. Egresso do seminário cria dois heterônimos, um que dá conta das peripécias monásticas e outro para descrever seu período de internação no Instituto Philippe Pinel, do Rio de Janeiro.

O último profissional da solidão enfocado é Walter Campos de Carvalho (1916-1998), considerado “o melhor exemplo de escritor autêntico, original e incompreendido”. Seus quatro livros “transbordantes de humor selvagem” lançados entre 1956 e 1964 tornaram-se cult e foram republicados na década de 1990, em volume único da Editora José Olympio: A Lua Vem da Ásia, Vaca de Nariz Sutil, A Chuva Imóvel e O Púcaro Búlgaro. Outrora considerados aberração, “tornaram-se imprescindíveis para nos situarmos diante deste mundo pós-moderno e pós-tudo”, conclui Cecilia Prada.