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Viver no agreste

Paisagem sertaneja: o chão seco e arenoso da caatinga / Foto: José Paulo Borges
Paisagem sertaneja: o chão seco e arenoso da caatinga / Foto: José Paulo Borges

Por: JOSÉ PAULO BORGES

Manhã do último sábado de julho na comunidade rural de Areia Grande, em Casa Nova, município do sertão da Bahia nas proximidades da Barragem de Sobradinho. Mulheres, homens e algumas crianças sertanejas, rostos curtidos pelo sol, vão chegando. Alguns vieram no lombo de cavalos, outros em carros de fabricação antiga e, boa parte, pendurada na carroceria de uma velha caminhonete. Cumprimentam-se, conversam animadamente e, à sombra de um juazeiro de mais de seis metros de altura, vão logo juntando alguns gravetos secos e atiçando o fogo para o almoço que será servido mais tarde. Bastante arroz, farinha e feijão de corda à vontade, e pedaços bem temperados de um porco de mais de 20 quilos, abatido na véspera. De repente, alguém percebe uma jiboia de quase dois metros de comprimento estirada num galho do juazeiro. Com muito jeito, usando pedaços de pau, a serpente – que não é venenosa – é retirada da árvore. No chão, desliza sem pressa e desaparece numa touceira.

Apesar do ar descontraído dessa gente, não se trata de nenhuma celebração de fim de semana no meio da caatinga. Num alpendre espaçoso, onde o vento circula solto, acontece mais uma reunião mensal de representantes das 366 famílias que vivem na região de Areia Grande, uma extensa área de terras devolutas, muito seca e arenosa – daí o nome –, formada pelas comunidades de Jurema, Melancia, Salina da Brinca e Riacho Grande. Na pauta, a luta pela sobrevivência, em meio a conflitos por terras que se estendem há dezenas de anos, de um jeito muito especial de viver no sertão: o fundo de pasto.

Antes de iniciar a reunião, Zacarias Rocha, presidente da União das Associações de Fundo de Pasto de Casa Nova (Unasfp), explica: “Lá no sul pouca gente sabe que fundo de pasto é uma maneira muito antiga de produzir e viver no sertão da Bahia. Para se ter uma ideia, o fundo de pasto de Areia Grande, garantem moradores mais velhos, existe desde 1850”. Mulato, forte, conversa fácil, segundo Zacarias, a marca registrada do sistema de fundo de pasto são as grandes áreas de terra de uso coletivo, caatinga adentro, sem demarcações. Nesses espaços, bodes, cabras e algumas cabeças de gado mestiço, pertencentes às famílias da comunidade, são criados soltos. “Na caatinga, como a alimentação e a água são escassas, a criação precisa andar quilômetros, todos os dias, para comer e matar a sede. E como no fundo de pasto existe espaço à vontade, os bodes e as cabras sobrevivem sem precisar de muito cuidado da gente”, prossegue o agricultor.

Zacarias relata que cada morador tem sua casa e o seu roçado para criar galinhas, plantar milho, feijão, coentro, mandioca, culturas da alimentação do dia a dia, além de um curral para recolher as cabras e os bodes. Esses bichos, segundo Zacarias, trazem, cada um, marcas nas orelhas que facilitam a identificação pelos donos. “De manhãzinha, eles são soltos para se alimentarem na caatinga, que fica logo atrás das casas (daí o nome, fundo de pasto). De tardezinha, estão todos de volta. Cada bode, cada cabra sabe direitinho como voltar para o seu curral”, esclarece.

Os moradores que usam as terras de pastoreio coletivo, de acordo com o agricultor, levam a sério a tarefa de zelar pela conservação das aguadas (fontes de água) e da vegetação nativa da caa­tinga que alimenta a criação. Por isso, ninguém sequer sonha em se apropriar dessas áreas, que são de todos. “Como num fundo de pasto praticamente todo mundo é parente ou compadre de todo mundo, isso só facilita a convivência”, acrescenta Zacarias.

Fortes abalos

Na realidade, fundo de pasto é uma tradição sertaneja que se formou aos poucos, e suas origens estão fincadas na época colonial. Naquele tempo, quem cuidava das grandes porções de terra, nos confins do nordeste brasileiro, pertencentes a poderosos senhores, criadores de gado, eram os vaqueiros – homens rudes, perfeitamente adaptados à vida dura do sertão, uma mistura de aventureiros, índios, mestiços, foragidos da justiça e escravos evadidos das senzalas. Os patrões também eram donos dos engenhos de cana-de-açúcar do litoral. Essa gente raramente deixava o conforto à beira-mar para se aventurar ao desconforto do sertão seco e espinhento, a fim de verificar a situação de suas imensas propriedades. As terras, embora não servissem para o cultivo eram boas para a criação do gado que fornecia carne à população do litoral, couro para o comércio e bois para movimentar os engenhos. Não se usavam cercas e o gado, tangido pelos vaqueiros, pastava solto pelas caatingas e matos. Entre uma fazenda e outra havia uma larga porção de terras vazias. Era a “fronteira do gado solto”, território de ninguém que, respeitado por todos, servia de divisa natural, evitando misturas entre os rebanhos, além de prevenir conflitos de propriedade.

No sertão do rio São Francisco, o sistema atingiu seu apogeu com a instalação de dois verdadeiros impérios: a Casa da Torre, da família Garcia d’Ávila, e a Casa da Ponte, de Antônio Guedes de Brito. Juntas, essas duas famílias dominavam uma área imensa ocupada por grandes rebanhos de gado. Com a decadência da cana-de-açúcar, o início do ciclo do ouro e também por causa da ausência dos donos das terras, que preferiram ficar no litoral, a fronteira do gado solto foi perdendo o alento e começou a desmoronar. Os feudos dos Garcia d’Ávila e dos Guedes de Brito foram desmembrados, e o mesmo aconteceu com propriedades menores. Muitos desses territórios, sem donos ou proprietários conhecidos, acabaram por se tornar “terras devolutas”, isto é, “terras devolvidas à Coroa de Portugal”. Surgiram, então, outras fazendas, sem limites exatos e à margem de qualquer lei que assegurasse a legitimidade da posse.

Em 1889, com a Proclamação da República, as terras devolutas passaram a pertencer ao Estado brasileiro, e muitos dos antigos proprietários, agora ostentando o título de “coronéis”, conseguiram obter a posse das propriedades. Uma boa parte das terras de gado, porém, nunca foi legalmente regulamentada. Essas terras terminaram entregues, embora sem “papel passado”, aos moradores originais – descendentes dos vaqueiros pioneiros –, que há tempos se dedicavam à criação de pequenos animais em áreas coletivas na caatinga. Foi essa a origem do atual sistema de fundo de pasto.

O tempo passou e a partir dos anos 1960 e 1970, o sistema de fundo de pasto passou a sofrer fortes abalos. O principal motivo foi a valorização de terras das áreas comunitárias do sertão da Bahia devido à instalação de grandes projetos de infraestrutura, tocados com ufanismo e arroubo pelo regime militar, como a Barragem de Sobradinho e os perímetros irrigados destinados ao plantio de manga e uva, contemplando o mercado externo, principalmente. Isso, é claro, atraiu a cobiça de muitos aventureiros que, de repente, se apresentaram como proprietários “legítimos”, requereram a posse ao Estado e passaram a demarcar e a cercar as áreas de pastoreio coletivo. Sem pasto e sem fontes de água, a criação definhou. As agruras obrigaram parte significativa da população sertaneja a vender as terras que ocupavam há séculos para viver nas beiradas das cidades.

Escândalo da mandioca

Com a conclusão das obras da Barragem de Sobradinho, o sertão não virou mar, mas se transformou num verdadeiro inferno para milhares de camponeses. Eles tiveram suas casas inundadas e, por determinação do governo, foram deslocados para agrovilas como aquelas construídas no município de Bom Jesus da Lapa (distante 700 quilômetros das margens do rio São Francisco) e Serra do Ramalho, ambos na Bahia. Mesmo assim, muitos moradores das comunidades de Areia Grande resistiram à mudança forçada e até hoje vivem nas proximidades das terras que foram parar debaixo de água.

Em 1979, outro golpe duro. Uma empresa agroindustrial, com o apoio de políticos locais, adquiriu, usando documentos suspeitos, terras pertencentes à comunidade de fundo de pasto de Riacho Grande, para a instalação, com dinheiro público, de um empreendimento visando a produção de álcool a partir da mandioca. A companhia tentou, inclusive, empurrar moradores para fora de suas propriedades tradicionais, usando tratores e caminhões, mas esbarrou numa forte resistência. Um dia, manchetes estouraram e o projeto acabou conhecido nacionalmente como “o escândalo da mandioca”. O esquema consistia na obtenção de documentos falsos para conseguir crédito agrícola no Banco do Brasil. Mais um rumoroso caso de desvio de recursos públicos. A empresa chegou a entrar na justiça contra os camponeses, mas o pedido de reintegração de posse foi negado pelo juiz da Comarca de Casa Nova.

Os conflitos resultaram numa história trágica, que até hoje não foi devidamente esclarecida, permanecendo viva na memória das quatro comunidades que integram o território de fundo de pasto de Areia Grande: o assassinato do agricultor José Campos Braga. No dia 31 de janeiro de 2009, Zé do Antero, como era conhecido, voltava para casa depois de ter ido à feira em Casa Nova. Cinco dias depois, o agricultor foi encontrado morto em casa com um tiro na nuca e outro perto da orelha, segundo dados da polícia técnica. Zé do Antero era respeitado na comunidade pela combatividade e por não se curvar às ameaças de posse de sua terra. Alguns meses antes do crime, uma milícia suspeita de atuar a mando de grileiros entrou na comunidade destruindo casas, currais e ameaçando as famílias com armas de fogo. Zé não se intimidou. O inquérito ainda não foi concluído. Recentemente, em janeiro deste ano, homens armados apareceram de repente e perfuraram com vários tiros uma cisterna nas proximidades do local onde o agricultor foi assassinado.

Por isso, apesar do ar descontraído, o clima na reunião mensal das comunidades de fundo de pasto de Areia Grande era tenso. Bem que havia motivos. Os primeiros a chegar, de manhã bem cedo, encontraram o cadeado da porteira de acesso ao local arrombado. Moradores mais próximos disseram ter visto “gente suspeita” rodando de carro a região. “Eles não tinham autorização para entrar na área”, afirma José Oliveira. Mas o que deixa todo mundo preocupado está ali mesmo, nos fundos do espaço de convivência: cercas queimadas e marcas de perfurações à bala em vários locais.

Energia eólica

O temor atual dos moradores da comunidade de fundo de pasto de Areia Grande, literalmente, paira no ar. É a energia dos ventos. O potencial de energia eólica da Bahia é imenso. Diferentemente dos outros estados da região, que têm maior incidência de ventos no litoral, a Bahia tem seu potencial eólico concentrado no interior, ao longo de toda a margem direita do rio São Francisco, desde a Serra do Espinhaço até Juazeiro, atravessando a Chapada Diamantina e o Vale do São Francisco. Quando os mais de 57 projetos previstos ou já instalados estiverem funcionando, vão acrescentar aproximadamente 1.560 MW (megawatt) à rede elétrica do estado. Com o argumento de levar desenvolvimento ao semiárido, onde está mapeada a maior parte do potencial dos ventos do interior baiano, o governo do estado vem atraindo e facilitando a instalação desses empreendimentos.

A chegada das usinas para a produção de energia eólica na região, porém, trouxe um preço aos moradores tradicionais. Zacarias Rocha conta que a vida na comunidade camponesa de São Gonçalo da Serra, no município de Sobradinho, não é mais a mesma. Formada por uma população que vive há mais de 200 anos no local, São Gonçalo teme os impactos dos parques eólicos. “Terras legalizadas, com registro em cartório e tudo, estão sendo griladas por gente que quer facilitar a entrada das usinas”, afirma Zacarias. E não são apenas os ventos de Sobradinho que estão atraindo a cobiça de grileiros em direção às comunidades de fundo de pasto.

Nos municípios de Casa Nova e Sento Sé, onde esse tipo de vida sobrevive há dezenas de anos, os projetos para a geração de energia a partir do vento ganham força e preocupam os posseiros: “A grilagem chegou com tudo em nossa região”, destaca o agricultor. “Um grupo de grileiros conseguiu a demarcação de uma área de fundo de pasto com mais de mil hectares em Sento Sé”, prossegue. Outra queixa é em relação ao que os posseiros tradicionais chamam de “contratos abusivos” de arrendamento para a instalação de torres de energia eólica em suas terras. “Uma das empresas que mais investe na Bahia exige cláusulas que permitem que ela continue na propriedade mesmo que a terra seja vendida ou herdada por terceiros.”

Principal interessado no desenvolvimento e implantação dos projetos de geração de energia eólica, o governo da Bahia se apressa em serenar os ânimos dos moradores em áreas de fundo de pasto. “Quinze mil famílias camponesas estão sendo beneficiadas com a instalação de torres em suas propriedades, com rendimentos por volta de R$ 600 mensais, com o arrendamento. Temos notícia de que em alguns casos esse rendimento chega a R$ 1.300 mensais”, destaca Rafael Valverde, superintendente de Indústria e Mineração da Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração (SICM), órgão responsável pelo programa baiano de geração de energia através dos ventos. “As famílias de fundo de pasto podem ficar tranquilas porque todos os seus direitos pelas terras que forem ocupadas serão respeitados”, garante Valverde. Segundo ele, “até 2014, estão previstos investimentos de cerca de R$ 6,5 bilhões no setor, que irão gerar cinco mil empregos na implantação e quinhentos na operação dos projetos”.

Areia Grande segue intranquila, entretanto. “Saindo daqui, onde é que a gente vai viver? Levar nossos filhos e netos para ficar sem emprego na periferia das cidades, como já aconteceu com muitos companheiros que deixaram tudo para trás e foram embora?”, indaga Vivaldo Dias da Silva, 77 anos, um dos mais antigos participantes da reunião realizada em julho. “Meu avô chegou aqui solteiro e aqui morreu com 80 anos. Meu pai nasceu e se criou aqui. Nossa família tem mais de 140 anos vivendo nessa área”, afirma. Ao lado dele, outro antigo morador, Ivo Castro dos Santos, 61 anos, concorda. “Quiseram nos mandar embora na época da construção da Barragem de Sobradinho, mas não conseguiram. Não vai ser agora que irão conseguir.”

O sentimento geral é de indignação, que não sufoca a esperança. “Não vamos sair daqui para lugar nenhum”, conclama Vivaldo. Todos concordam. Já passa do meio-dia. O sol sertanejo não dá trégua, mas o vento que não para de soprar ameniza um pouco o calor. Uma voz feminina chama: “o almoço está pronto, pessoal”. Alguém parte pedaços generosos de melancias e distribui para todo mundo. O cheiro bom de porco cozido, bem temperado, enche o ar. Dois cachorros vira-latas rosnam ameaçadores, um para o outro, na disputa por um naco de carne.

Católico fervoroso e exímio dançarino nos forrós pé de serra, que são realizados na comunidade de fundo de pasto de Melancia, onde vive, Joaquim Ferreira da Rocha, o Quinquim, 65 anos, abre um exemplar surrado da Bíblia Sagrada e lê no livro Levítico, capítulo 25, versículo 23: “As terras não se venderão a título definitivo, porque a terra é minha, e vós sois estrangeiros e meus agregados”. Para Quinquim, e todos os presentes, as palavras do Livro Sagrado representam a senha perfeita confirmando o direito deles à terra que ocupam há muito tempo. “Essa terra nos pertence e vamos continuar lutando por ela. Ninguém vai nos tirar daqui”, dispara, convicto, o velho sertanejo, começando, logo em seguida, um Pai Nosso. Chapéu na mão e olhar no chão, todos rezam contritos.