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A trajetória do Brasil na estante

Acervo excepcional faz da FBN uma das maiores do mundo / Foto: Daniel Marenco/Folhapress
Acervo excepcional faz da FBN uma das maiores do mundo / Foto: Daniel Marenco/Folhapress

Por: FRANCISCO LUIZ NOEL

O Brasil era uma colônia escravocrata de poucos alfabetizados quando o príncipe regente dom João decretou a instalação de Real Biblioteca no Rio de Janeiro, em 1810. Na volumosa bagagem com que escapara da invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão Bonaparte, a rea­leza trouxe vários caixotes com um lote de peças que faziam parte das coleções de documentos, livros, gravuras, mapas, medalhas e moedas da biblioteca real. No Rio de Janeiro, o acervo foi guardado em salas do Convento da Ordem Terceira do Carmo, perto do Paço Imperial, e ampliado, em 1810, com a chegada do segundo lote, composto por livros, obras iconográficas e cartográficas. A rica coleção foi franqueada ao público quatro anos depois, nos moldes do que a Revolução Francesa fizera com os livros do guilhotinado rei Luís XVI, transformados na primeira biblioteca nacional do mundo. A brasileira ainda conserva a “livraria” joanina, mas, passados dois séculos, soma mais de 9 milhões de peças e exerce papel de destaque no apoio ao mercado editorial e à promoção da leitura.

A história da biblioteca real veio sendo escrita desde a Idade Média. A reunião das primeiras peças foi iniciativa dos reis dom João I e dom Duarte I, pai e filho, que governaram Portugal de 1385 a 1438. A Real Biblioteca da Ajuda, como era chamada, cresceu ao longo de três séculos, mas virou cinzas em novembro de 1755, num incêndio causado pelo terremoto que destruiu Lisboa e matou mais de 10 mil pessoas. Às voltas com a reconstrução da cidade, o rei dom José I iniciou uma nova “livraria” real, que mais tarde incorporou outras coleções. A mais valiosa, com quase 6 mil peças, foi doada pelo abade de Santo Adrião de Sever, Diogo Barbosa Machado, em troca de uma pensão vitalícia.

Pelo tamanho e importância no mundo das letras, não foi sem motivo que a Fundação Biblioteca Nacional (FBN) tornou-se pivô de controvérsia quando a cantora carioca Ana de Hollanda foi substituída pela senadora paulista Marta Suplicy no Ministério da Cultura, em setembro de 2012. Instituída em 1990, abarcando funções do extinto Instituto Nacional do Livro (INL), a FBN havia reforçado a atuação editorial na gestão da ex-ministra, sem ter sanado carências crônicas como a falta de funcionários e de manutenção de seu prédio histórico, no centro carioca. Foi em meio a esses e outros problemas que Ana saiu do cargo, queixando-se do baixo orçamento para a cultura.

A FBN assumiu grande parte de suas atribuições editoriais nos dois anos em que foi presidida pelo escritor paulista Galeno Amorim, na gestão da ex-ministra. As novas frentes, em sintonia com o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), lançado em 2006, incluíram o incentivo à criação de bibliotecas públicas nos municípios e a organização do Circuito Nacional de Feiras de Livro e de caravanas de escritores. Outra iniciativa: a internacionalização da literatura brasileira, com apoio a traduções no exterior e à participação de autores em vitrines como a Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, que contou com numerosa comitiva do Brasil em 2013.

Sem manutenção

Desde 2012, quando incorporou a Diretoria de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do Ministério da Cultura, a FBN também encabeça o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP). Em junho, elas eram 6.082 em todo o país, contadas as municipais e estaduais, comunitárias, escolares, universitárias e especializadas, pontos e salas de leitura. De 2004 a 2011, o SNBP havia fomentado a instalação de bibliotecas em 1.705 municípios e a modernização de outras 682. Pela função à frente do SNBP, a FBN aplicou, no ano passado, R$ 1,3 milhão na melhoria de 82 bibliotecas.

Em contrapartida, a Biblioteca Nacional manteve o número de servidores e contratados – 700, que estão recebendo o reforço de 44 novos concursados – e teve agravados alguns velhos problemas de conservação de seu prédio, erguido em 1910 na Avenida Rio Branco, na área do centro conhecida como Cinelândia. As deficiências de manutenção tornaram-se flagrantes tanto no exterior quanto no interior da construção – um palacete de estilo eclético com cinco andares. Por fora, quedas do reboco levaram à montagem paliativa de coberturas de metal para proteção da passagem de servidores e visitantes; dentro, em abril, um vazamento no circuito de ar-condicionado obrigou ao desligamento do sistema que refrigera o acerco de periódicos e outras dependências.

A reforma da Biblioteca Nacional está orçada em R$ 70 milhões, anunciados por Marta Suplicy em visita à instituição dias depois da posse. Ao aporte de R$ 30 milhões do PAC Cidades Históricas somam-se dotações do ministério e da FBN e verbas do Fundo Nacional de Cultura e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A empreitada, com término previsto para 2015, inclui a restauração da fachada, do telhado e de vitrais, obras no saguão e outros andares, troca de elevadores, recuperação do ar-condicionado e das instalações hidráulica e elétrica, higienização, catalogação e preservação de acervos.

Em maio, a FBN passou a ser presidida pelo cientista político Renato Lessa, carioca, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Uma de suas missões é restituir à estrutura do ministério as atribuições relacionadas à política para o livro e a leitura, acumuladas pela Biblioteca Nacional. Lessa divide essa tarefa com o professor de filosofia José Castilho Marques Neto, reconduzido ao posto de secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL). Presidente da Editora Unesp, o paulista Marques esteve à frente do PNLL entre 2006 e 2011. O programa deverá, no processo atual, ser alçado à condição de política de Estado por força de lei aprovada pelo Congresso.

Relíquia arquitetônica

O acervo trazido para o Brasil em 1808 e 1810 girava em torno de 60 mil itens. No Rio, os livros, documentos, estampas, mapas e outras peças passaram a ser cuidados pelo bibliotecário real Luís Joaquim dos Santos Marrocos, que cruzou o Atlântico um ano após o segundo lote de peças, que fora transportado em mais de 200 caixotes. O restante da Real Biblioteca, que formaria o terceiro lote, nunca saiu de Portugal. Quando voltou a Lisboa, na condição de rei, em 1821, dom João VI levou de volta grande quantidade de manuscritos. No ano seguinte, dias depois da Independência, o acervo remanescente no Brasil foi denominado Biblioteca Imperial e Pública, mas só se tornaria patrimônio nacional em 1825, comprado em meio às negociações do Tratado de Paz e Amizade com Portugal.

O crescimento das coleções levou dom Pedro II a transferir a biblioteca, em 1848, para um prédio recém-adquirido na Rua do Passeio. Batizada em 1876 de Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, ela ficou 62 anos nesse endereço, onde funciona atualmente a Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 29 de outubro de 1910, já no período republicano, a instituição foi instalada em definitivo na imponente sede nos números 219 a 239 da Rio Branco – na época, Avenida Central. O prédio, projetado pelo engenheiro e general Francisco Marcelino de Sousa Aguiar, é um dos símbolos da reforma urbanística do centro carioca no começo do século 20.

A fachada da biblioteca é caracterizada por um pórtico com seis colunas neoclássicas, sob frontão com relevos de bronze. No saguão, sob claraboias de vitrais coloridos, destacam-se pinturas em painéis, esculturas e escadas de mármore com gradis de frisos dourados. Nos andares superiores, os armazéns de livros e periódicos contam com pisos de vidro nos salões, em meio a grandes estantes de aço, abarrotadas de publicações, e também são cobertos por claraboias com vitrais, assim como o salão de obras raras.

A imponência da fachada e dos interiores, aliada ao fascínio exercido pelo mundo dos livros, faz da Biblioteca Nacional uma das atrações turísticas mais visitadas no centro do Rio. “Nas segundas-feiras em que chove, a biblioteca fica cheia. Os turistas a quem a chuva atrapalha vêm para cá, até porque nesse dia da semana os museus ficam fechados”, diz a diretora do Centro de Referência e Difusão da FBN, Mônica Rizzo. Nas visitas guiadas promovidas de hora em hora, 66.936 pessoas percorreram a biblioteca em 2012. No ano, foram realizadas mais de 51 mil consultas no acervo, incluídas 8,4 mil encomendadas por pesquisadores não residentes na cidade.

Por conta da dimensão e da atuação, a Biblioteca Nacional desfruta de notável reconhecimento fora do país, como uma das dez maiores do gênero no mundo, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). “Somos seguramente a biblioteca nacional com o maior acervo da América Latina e uma instituição muito respeitada no panorama internacional”, garante Mônica. A Biblioteca Nacional tem participação ativa em entidades como a Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (Ifla, na sigla em inglês) e a Associação de Estados Ibero-Americanos para o Desenvolvimento das Bibliotecas Nacionais (Abinia).

Preciosidades

Os mais de 9 milhões de peças da Biblioteca Nacional estão divididos em três grupos: obras gerais, publicações seriadas e acervo especial, formado pelas seções de manuscritos, iconografia, cartografia, obras raras e música. O grupo mais numeroso é o das publicações seriadas: 3,5 milhões de exemplares de 60 mil títulos de jornais e revistas, que ocupam um armazém de seis níveis, aonde chegam quase 5 mil novas edições por mês. Em outro depósito, do mesmo tamanho, as obras gerais somam a maior quantidade de títulos, alcançando 3 milhões de exemplares.

O carro-chefe entre as obras gerais é a “Coleção Memória Nacional”, ampliada diariamente pela entrada de novos títulos, que chegam a 100 mil por ano. Prova da vitalidade alcançada pelo mercado editorial do país, a remessa dessas obras à Biblioteca Nacional atende às regras do depósito legal, prescritas pelas leis 10.994, de 2004, e 12.192, de 2010. Pela legislação, as editoras são obrigadas a destinar pelo menos um exemplar de suas publicações bibliográficas e musicais ao acervo da FBN, como forma de contribuir para a preservação da memória documental do país.

No acervo especial, as partituras, gravações e livros de música formam o conjunto mais volumoso, com 1,7 milhão de peças. Em grande parte, elas são conservadas na Divisão de Música e Arquivo Sonoro, no Palácio Gustavo Capanema, edifício modernista que foi sede do Ministério da Educação e Cultura (MEC), na Avenida Graça Aranha, a menos de 100 metros da FBN. Cerca de 800 mil manuscritos e 60 mil obras raras, no prédio da Rio Branco, completam o acervo especial. Livros antigos também são mantidos num edifício de quatro andares na Zona Portuária, onde é guardada ainda parte do material em microfilme.

As preciosidades avultam no acervo especial. Entre os manuscritos estão nove livros de horas (guias de ofícios litúrgicos da Igreja) dos séculos 14 e 15, em pergaminho, ilustrados com iluminuras, e documentos administrativos do tempo colonial. Os impressos raros incluem um exemplar da Bíblia de Mogúncia, confeccionada em 1462; a primeira obra impressa no Brasil, um folheto de 1747 composto por Luís Antônio Rosado da Cunha; e a primeira edição do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões, publicada em 1572.

Em meio às obras raras da antiga biblioteca da realeza de Portugal foram salvos vários livros que deveriam ter sido queimados por ordem da Santa Inquisição. Preservados no acervo especial, 20 desses volumes compuseram, em junho, a exposição “É Proibido... mas a Rainha Pode” – uma alusão à mãe de dom João VI, dona Maria, conhecida como “a Louca”. As obras proibidas tinham cunho científico e abordavam temas que eram tabu para a Igreja, como a fisiologia do corpo humano. Numa delas, a enciclopédia Margarita Philosophica Nova Cui Annexa Sunt Sequentia, de Gregor Reisch, uma imagem da figura masculina teve a genitália coberta por roupa feita a pincel.

Na mapoteca e na seção de iconografia, destacam-se mapas como o dos limites das possessões portuguesas e espanholas na América do Sul no século 18, ilustrações da terra e da gente brasileira feitas por visitantes estrangeiros entre os séculos 16 e 19 e a monumental coleção de fotografias de dom Pedro II – a “Collecção D. Thereza Christina Maria”, com 23 mil imagens. No acervo de música, uma preciosidade é a partitura original da ópera O Guarani, de 1870, do compositor Carlos Gomes.

A FBN também possui, no Rio de Janeiro, a Biblioteca Euclides da Cunha, especializada em educação e instalada no Palácio Gustavo Capanema, e a Casa da Leitura, que funciona como sede do Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler), no bairro de Laranjeiras. Em Brasília, a fundação mantém a Biblioteca Demonstrativa Maria da Conceição Moreira Salles, herança do extinto Instituto Nacional do Livro. Modelada como exemplo para prefeitos criarem bibliotecas, a Demonstrativa possui 120 mil peças. Metade pode ser lida em regime de empréstimo, adotado também na carioca Euclides da Cunha. Na sede da Biblioteca Nacional, o acervo é destinado somente a pesquisa no local.

 


 

Biblioteca digital

Guardiã bicentenária da tradição manuscrita e impressa do Brasil, a FBN está presente no mundo digital desde a década passada. Em 2006, a instituição lançou a Biblioteca Nacional Digital, que agregou iniciativas de digitalização de acervos que estavam em curso. “Já digitalizamos 10 milhões de imagens e temos 30 milhões na fila”, diz Mônica Rizzo, do Centro de Referência e Difusão. No site http://bndigital.bn.br, há várias coleções acessíveis – entre elas, a de mapas dos séculos 16 a 18 e a “Collecção D. Thereza Christina Maria”. Na Hemeroteca Digital, os internautas encontram edições de jornais publicados desde o Segundo Reinado.

Além de pôr uma parte do acervo à disposição via internet, a Biblioteca Nacional também atende a distância, acionada por pesquisadores de outros lugares do Brasil. Por meio da página da FBN, os interessados apresentam suas necessidades de pesquisa e recebem levantamento de fontes bibliográficas, para pedido posterior de cópias. Para o serviço, a biblioteca conta com equipe multidisciplinar formada por oito servidores, incluídos profissionais graduados em biblioteconomia, história, letras e arqueologia. O atendimento aos não residentes no Rio de Janeiro oferece também o agendamento de pesquisa, com a separação prévia de material para que o pesquisador já encontre tudo pronto no dia em que estiver na cidade.

A participação da FBN em outras bibliotecas na internet também difunde textos, documentos e imagens do Brasil mundo afora. Um desse acervos é o da Biblioteca Digital Mundial, lançada em 2007 pela Unesco e pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. “Por termos sido um dos primeiros membros dessa biblioteca, ela também está disponibilizada em português, além dos seis idiomas da ONU”, destaca Mônica Rizzo, acrescentando que “a instituição procura se manter em dia com as novas situações que a tecnologia oferece”. Uma coleção de 1,5 mil mapas antigos e álbuns com 1,2 mil fotografias da “Collecção D. Thereza Christina Maria” são destaques na presença brasileira na Biblioteca Digital Mundial.