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Montadoras pisam no acelerador

Pátio em São Bernardo / Foto: Anderson Gores/ABC Digipress/Folhapress
Pátio em São Bernardo / Foto: Anderson Gores/ABC Digipress/Folhapress

Por: ALBERTO MAWAKDIYE

O novo regime automotivo, que atende pelo nome Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto) – a “joia da coroa” do Plano Brasil Maior e em vigor desde 1o de janeiro deste ano – está se revelando um sucesso. Criado com o objetivo de atrair investimentos para o setor dentro de parâmetros de desenvolvimento tecnológico, nacionalização de componentes, segurança e eficiência energética e ambiental, tem rendido muito mais frutos que o esperado.

Na época do anúncio oficial do pacote, em outubro de 2012, depois de um longo período de maturação, a estimativa da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) era de que os investimentos da indústria automotiva brasileira alcançassem R$ 60 bilhões até 2017, em boa parte devido justamente aos benefícios fiscais oferecidos às empresas do ramo participantes do programa, e que valerão até 31 de dezembro daquele ano. No dia 8 de maio, todavia, o novo presidente da entidade, Luiz Moan, informou aos ministros da Fazenda, Guido Mantega, e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Fernando Pimentel, que aquele montante poderá chegar a R$ 71 bilhões.

“Essa diferença de R$ 11 bilhões refere-se a notificações de novos aportes recebidas pela Anfavea”, explicou Moan, que, embora satisfeito, não deixou de pedir aos ministros outro pacote, desta vez para estimular a exportação de veículos – uma área em que as montadoras brasileiras têm cada vez menos o que comemorar. O Brasil vende poucos automóveis ao exterior, algo como 15% da produção nos anos bons, e ainda assim mais de três quartos deles vão para a Argentina (principalmente) e o México, países com os quais os brasileiros mantêm acordos de exportação. Livres de sobretaxas, esses entendimentos favorecem especialmente as montadoras com fábricas locais, como Volkswagen, General Motors, Ford, Fiat e Honda, que podem produzir modelos para aqueles mercados de maneira complementar, evitando a duplicação de instalações e ferramentais.

Fora desse universo, os carros brasileiros não têm nenhum outro mercado relevante, muito por conta do perfil da maioria dos automóveis que o país fabrica, mais da metade deles de mil cilindradas, para atender o segmento popular. Já os veículos de maior valor agregado são tecnologicamente inferiores aos estrangeiros e, quase sempre, mais caros. A perda de mercados, por isso, tem sido crescente. Em 2005, a indústria automotiva brasileira exportou 900 mil unidades, e espera embarcar apenas 420 mil este ano. É um cenário que os fabricantes querem agora reverter, com a ajuda governamental, elevando as vendas externas para o patamar de 1 milhão de unidades anuais até 2017.

Por enquanto, contudo, Brasília não vê a necessidade de estender mais uma vez a mão às montadoras. “Com o Inovar-Auto já será possível dar aos carros brasileiros um grande upgrade tecnológico, que certamente os tornará mais competitivos no mercado internacional”, observou o ministro Fernando Pimentel, que está muito mais atento, compreensivelmente, aos impactos positivos que a montanha de investimentos na indústria automobilística provocará no conjunto da economia. O setor já representa 22% do Produto Interno Bruto (PIB) do país e praticamente sustenta a indústria de bens de capital brasileira e parte das fábricas de aço, vidro, plástico e alumínio. Assim, se as montadoras expandirem suas atividades, toda a economia industrial crescerá junto com elas.

Mais de 50 projetos

E, a julgar pelo andar da carruagem, é isso mesmo o que vai acontecer. Agruras do mercado externo à parte, a boa notícia dada ao governo por Luiz Moan torna perfeitamente factível uma projeção da respeitada Fundação Vanzolini, de São Paulo, de que a produção brasileira de veículos leves, a mais importante do setor, saltará dos atuais 3,6 milhões de unidades anuais para 6,2 milhões até 2025, turbinando todos os setores que gravitam em torno das montadoras.

Caso a previsão se confirme, o Brasil poderá ultrapassar o Japão, assumindo a terceira posição no ranking dos maiores produtores mundiais do setor automotivo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. No exterior as avaliações são ainda mais otimistas: a consultoria europeia Roland Berger – especializada no segmento – acredita que a produção de veículos no país ultrapassará a casa dos 6 milhões já na virada da década de 2020.

Atualmente, a nação do carro flex ocupa o quarto posto no ranking do setor e seu parque automotivo, ainda que não seja muito competitivo, desponta como um dos mais vigorosos quando analisado isoladamente. Ele é constituído, no momento, por 28 montadoras – entre fabricantes de carros de passeio e comerciais leves, ônibus, caminhões e máquinas agrícolas – e 57 linhas de produção, empregando um contingente de mão de obra direta de cerca de 120 mil trabalhadores. Em toda a cadeia produtiva – incluindo o setor de autopeças – o total de empregos diretos e indiretos é de quase 1,3 milhão.

A história da indústria automobilística brasileira data da primeira metade do século passado; todavia, esse portfólio imenso só foi conquistado, surpreendentemente, nos últimos 20 anos. No início da década de 1990, tirando as fábricas de veí­culos pesados e implementos agrícolas, apenas quatro montadoras de carros de passeio produziam diretamente no país: a italiana Fiat, a alemã Volkswagen e as americanas Ford e General Motors. Uma sequencia de bem-sucedidos regimes automotivos de cunho desenvolvimentista, iniciada pelo então presidente Itamar Franco (1992-1995) e quase sempre também ancorada em benefícios fiscais diretos ou indiretos, acabaria, com o tempo, por levar à instalação de outras oito montadoras: as francesas Renault e Peugeot Citroën; as japonesas Honda, Toyota e Mitsubishi; a sul-coreana Hyundai; a indiana Mahindra e a brasileira TAC Motors. Carros de algumas dessas marcas são fabricados por empresas locais licenciadas, como é o caso da Hyundai, Mahindra e Mitsubishi. E há muitas outras em gestação: o fortalecimento do mercado de modelos populares e o aumento de renda do brasileiro vêm despertando o interesse de uma legião de montadoras dispostas a investir no país, além de estar estimulando algumas indústrias já instaladas localmente a desenvolver projetos de expansão.

Um levantamento realizado pela consultoria Tendências, no final do ano passado, apurou a existência de mais de 50 projetos de novas fábricas e ampliações no setor automotivo (incluindo autopeças e caminhões), vários deles anunciados ou mesmo iniciados antes do Inovar-Auto. E alguns investimentos foram comunicados somente neste ano, já a reboque do programa. “O Brasil é realmente a bola da vez para a indústria automotiva mundial”, afirma Stephan Keese, sócio responsável pelo segmento automotivo da Roland Berger. “E isso não apenas devido aos programas de incentivo. Outras razões são a forte desaceleração econômica da Europa e dos Estados Unidos e o próprio tamanho do mercado brasileiro, que é imenso, de proporções continentais, e que está longe de ser totalmente atendido pelos fabricantes de automóveis.”

Etapas produtivas

De fato, o índice de motorização no país é pouco condizente com seu porte e nível de desenvolvimento econômico. Enquanto nas nações da Europa ocidental e no Japão a relação gira em torno de um veículo para cada dois habitantes e, nos Estados Unidos, de um para um, no Brasil a taxa é da ordem de um auto para cada 6,5 moradores. É um índice distante até do apresentado pela Argentina (de um veículo para quatro habitantes) e do México (de um para 3,6). Para alcançar apenas a taxa desses dois países latino-americanos, o Brasil precisaria ter 50 milhões de automóveis em circulação – ou seja, 15 milhões a mais que a frota atual.

Muitos dos projetos anunciados antes da promulgação do Inovar-Auto foram inseridos dentro desse programa – até porque ele cria obstáculos não só para os importadores (que em 2011 chegaram a ocupar 6% do mercado brasileiro) como para as montadoras que gostariam de implantar no Brasil apenas operações de montagem de componentes importados, e não fábricas completas, com maior conteúdo de peças nacionais.

O principal indutor do programa é a redução do salgado Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), hoje de 30%, para as montadoras que estiverem dispostas a realizar dentro do país as chamadas “etapas produtivas”. Assim, as fábricas de automóveis e comerciais leves deverão cumprir, ainda este ano, 8 etapas produtivas de 12 possíveis; as de caminhões, 9 de 14; e as fabricantes de chassis com motor, 7 de 11. O número de etapas fabris exigidas irá aumentar gradativamente até o final da vigência do Inovar-Auto e, em caso de descumprimento, a empresa poderá ser excluída do regime automotivo.

Entre as etapas previstas estão, por exemplo, as operações de soldagem, fabricação de motor, montagem de sistema elétrico, tratamento anticorrosivo e pintura, fabricação de caixa de câmbio e transmissão, e montagem de sistemas de direção e suspensão, dentre outros. O incentivo fiscal também será concedido de acordo com o nível de investimento em pesquisa e desenvolvimento, engenharia e compras regionais de componentes e ferramentas, cuja cota mínima passou a ser de 70%.

No caso de empresas estrangeiras ainda não presentes no Brasil, as exigências serão escalonadas, com os índices sendo cumpridos num prazo maior do que aquele determinado para as companhias já em solo brasileiro. Esse relaxamento deve-se à clássica dificuldade que os novos fabricantes encontram para montar sua cadeia de fornecedores e de suprimentos. Obviamente, nem todos os projetos anunciados em anos recentes – ou mesmo a totalidade daqueles já incluídos no novo programa de incentivo – sairão do papel, algo comum em um setor tão susceptível a mudanças econômicas e conjunturais como o automotivo. Apesar disso, só os investimentos já iniciados ou tidos como “firmes” pelo mercado são suficientes para garantir o sucesso da estratégia do governo de utilizar o setor como a âncora de sua política industrial – ainda mais porque há projetos previstos para praticamente todos os quadrantes do país, contribuindo para a também sonhada descentralização industrial. Mesmo agora, estados que há duas décadas não abrigavam montadoras ou tinham apenas uma discreta presença no setor automotivo – como Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia e Goiás – já respondem por mais de 30% da produção nacional de veículos. São Paulo, que em 1990 concentrava 74,8% da montagem, viu essa participação cair para 41,5% (e a tendência é que essa fatia se reduza ainda mais em benefício de outras regiões).

Fábricas asiáticas

Os novos investimentos incluem as “quatro grandes” – Volkswagen, Fiat, General Motors e Ford, que, juntas, detêm cerca de 70% do mercado. A GM, por exemplo, que investiu pesado nos últimos anos na ampliação de suas linhas de montagem, inaugurou recentemente uma nova fábrica em Joinville (SC), que, quando estiver em plena capacidade de produção, poderá entregar 200 mil cabeçotes e 150 mil motores por ano. Volkswagen e Ford também expandiram sua produção de motores, devendo ser acompanhadas nesse processo pela Renault. A Fiat está, por seu turno, investindo entre R$ 3 bilhões e R$ 3,5 bilhões em uma segunda fábrica, que deverá entrar em funcionamento no início de 2014, com produção prevista de 250 mil veículos por ano. Localizada no município de Goiana (PE), a nova planta da montadora italiana “será um verdadeiro polo automotivo”, conforme entendimento de Cledorvino Belini, presidente da Fiat no Brasil. “Ela reunirá fornecedores de peças e sistemas, centro de capacitação, núcleo de pesquisa e desenvolvimento, pista de testes e campo de provas”, ele informa.

Já o grupo francês PSA Peugeot Citroën vai desembolsar R$ 3,7 bilhões, de modo a dobrar sua capacidade de produção em Porto Real (RJ), alcançando 300 mil unidades. Outras montadoras europeias também devem passar a produzir no Brasil. A alemã BMW, por exemplo, começará a construir uma fábrica em Araquari (SC) no mês de novembro, a um custo aproximado de R$ 600 milhões. “O Brasil é um mercado com tremendo potencial para carros de luxo ou de alto padrão”, justificou o diretor de vendas da BMW, Ian Robertson, quando a iniciativa foi anunciada, meses atrás. A empresa deve em breve sofrer a concorrência, nesse segmento, da sueca Volvo, da britânica Land Rover (hoje controlada pela indiana Tata Motors) e da alemã Mercedes-Benz – que já produziu o modelo Classe A no Brasil, alguns anos atrás, e faz planos para voltar. Enquanto isso, a brasileira JAC Motors começou a instalar uma fábrica em Camaçari (BA), município onde já opera uma unidade da Ford.

A maior movimentação, porém, está sendo conduzida pelas montadoras asiáticas. No ano passado, entraram em operação fábricas da sul-coreana Hyundai, em Piracicaba (SP), mediante investimentos de US$ 600 milhões e capacidade de produção da ordem de 150 mil unidades/ano, e da japonesa Toyota, em Sorocaba, também em São Paulo, que aplicou US$ 600 milhões numa unidade junto à rodovia Castello Branco apta a montar 70 mil veículos por ano. Outras montadoras japonesas que logo também devem passar a produzir no Brasil são a Suzuki, que tem planos para Itumbiara (GO), e a Nissan, que anunciou investimentos de R$ 2,6 bilhões em uma unidade em Resende (RJ).

Enquanto isso, a chinesa Chery deu partida às obras de sua linha de montagem em Jacareí, cidade situada igualmente no interior paulista, no vale do Paraíba. E, segundo a Câmara de Comércio Brasil-China, outras seis montadoras do gigante asiático poderão desembarcar no Brasil nos próximos meses. São elas: BYD, Beijing Automobile Group, Changan, Jingbei, FAW e YTO.

Até a Arábia Saudita, que não desponta como grande produtora de automóveis, tem planos para o mercado brasileiro. A Amsia Motors, empresa de capital saudita, mas que opera na China, assinou há alguns meses um protocolo de intenções com o governo de Sergipe visando a instalação de uma fábrica de veículos no estado, também sob o guarda-chuva do Inovar-Auto. O investimento previsto é de cerca de R$ 1 bilhão, com a expectativa de gerar 4 mil postos de trabalho. A planta industrial deverá ser instalada no município de Barra dos Coqueiros, nas cercanias da capital, Aracaju, e deverá entrar em atividade daqui a dois anos. “A produção será destinada aos mercados da América do Sul e parte da América Central”, disse Mustafa Ahmed, presidente da Amsia Motors, que cogita inclusive transferir a sede da empresa da China para o Brasil.

A fábrica deverá montar veículos leves, SUVs e pickups, além de carros híbridos e elétricos, mas está nos planos também a fabricação de ônibus e talvez caminhões – segmento que vem recebendo polpudos investimentos de montadoras chinesas, como a Foton, Shaanxi, Shiyan e Sinotruk, além das americanas Paccar/DAF e Navistar, esta última proprietária da marca International. São projetos que estão espalhados por todo o país.

 


 

As ruas vão ficar entupidas

Tudo parece que está correndo bem tanto para o governo brasileiro quanto para a indústria automotiva. Cabe aqui, porém, uma pergunta: o volume assombroso de novos carros que deverão chegar ao mercado nos próximos anos encontrará ruas suficientes nas congestionadas metrópoles do país? Muitos acreditam que não e preveem um futuro nebuloso para o trânsito das grandes cidades.

“A verdade é que ancorar a política industrial na indústria automotiva – ou seja, no estímulo ao transporte individual – é uma má ideia no longo prazo se ela não for compensada com fortes investimentos em transporte público”, observa Mário Pascarelli, coordenador do curso de Gestão de Cidades da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), de São Paulo. “E, quando o povo sai às ruas para reclamar do preço das passagens e das péssimas condições do transporte público, o governo ainda se surpreende, porque não percebe que as duas coisas estão ligadas.”

Pascarelli também critica o fato de a política automotiva do governo ser parcialmente subvencionada por benefícios fiscais que poderiam ser revertidos para investimentos em transporte de massa. Realmente, as isenções de impostos para carro e gasolina desde 2003 deixaram de arrecadar R$ 32,5 bilhões, segundo dados da Receita Federal, soma que poderia ter sido aplicada na ampliação e modernização do transporte público. Essa montanha de dinheiro daria para construir, por exemplo, 1,5 mil quilômetros de corredores de ônibus ou 150 quilômetros de novas linhas de metrô.