Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Uma proposta para a educação

Cristovam Buarque / Foto: Bruno Leite
Cristovam Buarque / Foto: Bruno Leite

Cristovam Buarque é natural do Recife, onde se formou engenheiro, tendo se doutorado em economia na Universidade de Paris. É professor na Universidade de Brasília, onde foi reitor.
Foi também governador do Distrito Federal, ministro da Educação e candidato à presidência da República. Atualmente é senador por Brasília. Escreveu vários livros, nos quais defende a inclusão social e a educação como solução para o país.

Esta palestra de Cristovam Buarque, com o tema “Educação é a Solução”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo no dia 14 de março de 2013.

CRISTOVAM BUARQUE – Fico muito feliz de poder debater uma ideia sobre o que fazer e como fazer para o Brasil dar o salto de que precisa na educação. Não vou perder muito tempo falando de nosso quadro educacional, nossa tragédia. Não é preciso, basta lembrar que temos três Bolívias de analfabetos adultos, uma Argentina de analfabetos funcionais e uma Austrália de pessoas que não terminaram o ensino fundamental. Em vez de ficar falando disso, quero tentar responder a estas perguntas: por que o Brasil é desse jeito, quando tantos países com menor renda não são? Por que é preciso mudar isso? E apresentar uma proposta.

Por que o Brasil ficou tão atrasado em matéria educacional? São três razões, a primeira cultural. A mente brasileira não é de dar muita importância a essa questão. Não faz parte dos valores do brasileiro seu nível de educação. O que os define no imaginário brasileiro é o tamanho do carro, da casa, onde passa férias, a conta bancária. Alguém pode dizer que é assim em todos os países. Não é. Tenho amigos libaneses cuja família vendeu propriedades para que pudessem estudar no exterior, porque o diploma é um símbolo em si, não apenas porque permite galgar posições.

Um amigo me disse estar muito incomodado porque gastou uma fortuna no ensino médio do filho e agora ele quer ser filósofo. Para ele isso é uma tragédia, jogou dinheiro fora. Ninguém é mais culto que um filósofo, nós não colocamos esse valor fundamental na educação. Basta dizer que “professor” não é um título de nobreza, ao contrário, hoje em dia é um nome visto com desconfiança, porque provavelmente essa pessoa não deu para nada mais. Não falo daqueles que têm outra atividade e exercem o magistério, nem do pessoal de nível superior. Refiro-me aos 2 milhões de professores da educação de base.

A segunda razão é sociopolítica. Como desde a origem, com a escravidão, somos um país dividido em dois blocos bem separados na sociedade, ainda que alguns possam subir, não temos uma mistura do povo brasileiro. Resolvemos os problemas da parcela superior e deixamos de lado a de baixo, em termos de habitação, distribuição de água, transporte, renda, saúde e também educação. Para os que estão aqui em cima, criamos mecanismos de escolas particulares, subsídios. Isso não é específico da educação, é da sociedade.

E a terceira razão é histórica. Só agora a educação começa a ser realmente fundamental para a dinâmica do país. Quando o Brasil começou, a única coisa necessária era o braço forte do escravo. Com o passar dos anos, já no século 20, precisamos evoluir do braço para a mão. Era necessário ter habilidade, daí os cursos para formar mão de obra qualificada, mas ainda não era educação. O país não precisava dela, mas de operários com habilidade manual, alguns até quase analfabetos. Isso está mudando, porque a economia hoje requer não só mão de obra qualificada, mas conhecimento. Então saímos do braço para a mão e agora estamos no dedo, já não são mais operários, são operadores. Isso sobretudo porque a economia como um todo não vai crescer por muito tempo se continuarmos com a produção tão limitada de bens de alta tecnologia. Somos a sexta ou sétima economia do mundo, mas importamos quase tudo de alta tecnologia.

Hoje o momento da história econômica exige educação, porque requer ciência e tecnologia, que só vêm para valer se formos capazes de oferecer educação de qualidade para todos os de baixo, para dali escolher os melhores, porque em cima há um grupo de cientistas e tecnólogos. Se dermos educação só para um bloquinho, perdemos a possibilidade de aproveitar os gênios que estão embaixo. Resolvemos isso muito bem no futebol. A bola é redonda para todo mundo, então entre milhões aparecem os melhores, que chegam lá em cima.

Na educação mantemos algumas escolas quadradas, no sentido de degradadas. Estamos jogando fora cérebros. Se no Brasil apenas 40% terminam o ensino médio e desses no máximo a metade é qualificada, isso significa que jogamos fora 80% dos cérebros. Não quer dizer que um analfabeto não seja inteligente, mas ele não desenvolveu seu potencial.

Bens tecnológicos

Precisamos mudar, em primeiro lugar, para que o país como um todo entre na economia dos tempos de hoje, a economia do conhecimento, baseada em ciência e tecnologia, criadora de bens altamente tecnológicos. Somos apenas exportadores de soja, de minério de ferro. A única exceção é a Embraer, que é produto de uma escola de engenharia. Não foi um processo econômico que criou a Embraer, foi a escola de engenharia do ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica].

A economia não vai se manter por muito tempo se continuarmos como exportadores de bens primários ou semiprimários, importando tudo o que é alta tecnologia. Até há pouco era possível evoluir, mas não é mais. Cito sempre o exemplo de um dos homens mais inteligentes que existem por aí, o Lula, que só fez a quarta série primária. Se ele chegasse hoje a São Paulo, com 15 anos, não conseguiria ser nem torneiro mecânico, até porque não existe mais a profissão da maneira antiga. Se conseguisse, não seria líder sindical. Se chegasse a ser líder, não seria um grande líder, porque o tempo mudou. A partir de agora precisamos ter um conhecimento que antes não era necessário.

Recentemente estive em Maragogi, uma cidade praiana de Alagoas. Estava num restaurante simples e o dono me apresentou dois jovens senhores, empresários de Portugal que vieram investir no estado. Vejam o que disseram: “Viemos, mas não vamos investir aqui”. Perguntei por que e eles responderam que não havia mão de obra qualificada. O ramo deles era criação de cavalos. Perguntei, até de forma um tanto grosseira, qual é a formação que os vaqueiros precisariam ter. Ele disse: “Não temos vaqueiros. Nossos cavalos custam R$ 3 milhões, não podemos deixá-los nas mãos de pessoas que não tenham conhecimento de veterinária e não saibam ler bulas em inglês, porque os remédios são importados”. Não encontraram lá dez veterinários que preenchessem essa condição.

O fato de que para montar um haras é preciso ter alta formação é sinal de que o tempo mudou, e fico feliz de debater o que fazer. Uma maneira é continuar essa leve melhoria que temos tido. Costumamos dizer que a educação no Brasil piorou, porque, ao analisar as pessoas que vão para a escola, verificamos que antes tínhamos escolas boas, que hoje ficaram medíocres. Em compensação, temos quase todo mundo na escola, então o grau de educação da geração que está aí com 15 anos não vai ser pior do que há 30 anos, quando os pais eram analfabetos. Hoje esses jovens sabem ler.

O problema é que a gente cresce em certo ritmo, mas as exigências aumentam mais rapidamente, de forma que essa brecha no Brasil está se ampliando. Não estamos conseguindo mudar tanto a educação para que ela supere as necessidades. Não temos mão de obra de alta formação na quantidade necessária para utilizar alta tecnologia no processo produtivo.

Pacto federativo

São duas coisas, uma é a criação de novos produtos e outra é a fabricação desses bens. A criação supõe alta tecnologia, o como fazer, e a produção exige ainda mais, o que fazer. Essa melhoria lenta que temos tido não atende as exigências brasileiras, precisamos dar um salto. Isso não vai acontecer de repente no Brasil todo. Mas como dar um salto sem ser no país inteiro?

Minha proposta tem um nome ruim, “federalização da educação”. Reconheço que não é um bom nome, mas permite um bom debate. A ideia é que a educação, na mão dos municípios e estados, não dará esse salto. Isso porque a política fiscal brasileira é concentradora de recursos e, mesmo que os distribuíssemos igualmente, conforme o estado e o município produzem, somente alguns teriam uma boa educação, os outros ficariam de fora. Além disso, tudo dependeria da vontade do prefeito, porque, enquanto se cria uma dinâmica em termos nacionais, no município a possibilidade de cada prefeito fazer o contrário do que fez o anterior é muito grande. Então, se o ensino continuar municipal, não teremos uma educação de qualidade e igual para todos. Igual não no conteúdo, nisso sou libertário, temos de ter liberdade pedagógica; digo igual nas condições do processo de educação. A escola não será igual se continuar municipal.

O único jeito de ter uma educação igual é ela ser nacional, e uma das provas disso pode ser vista na avaliação das escolas brasileiras com essa grande coisa que foi feita nos últimos anos, o Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica]. No Ideb as melhores escolas não são as particulares, são as federais, que somam 451, entre elas o Colégio Pedro II, o Colégio de Aplicação, escolas técnicas e colégios militares. É a melhor média, seguida pela das particulares, depois pela das municipais e por último pela das estaduais. É claro que se formos escolher a melhor de todas certamente será uma particular, é possível que as dez melhores sejam particulares, mas a melhor média é a das federais.

Precisamos de um pacto federativo que se baseie na ideia de que a criança não é partida federalmente, não é paulista ou mineira, é brasileira, primeiramente. Essa é uma base moral, sem a qual nossa conversa não vai avançar. Parto da ideia de que é do interesse nacional que a criança seja brasileira e que seja criança. Ser criança é não precisar trabalhar em vez de estudar, é ter uma escola da maior qualidade à disposição. E ser brasileira significa que isso aconteça em todo o país, não aqui ou acolá.

Sou mais que fã, sou fanático pela escola do Sesc [Serviço Social do Comércio] do Rio de Janeiro, que vi ser construída. Todo ano vou lá uma ou duas vezes, na aula inaugural ou na final e às vezes nas duas. Temos de espalhar isso pelo Brasil inteiro. Só que isso não é possível, o padrão que tenho de uma boa escola não é como a do Sesc. A do Sesc é uma escola utópica, e temos de incentivar mais umas 20 ou 30 iguais pelo Brasil, não será possível mais do que isso. Estamos falando de 200 mil escolas. Como fazer com que todas fiquem boas?

A primeira coisa é criar uma carreira nacional do magistério. Enquanto a carreira for municipal, não vamos ter os professores com a competência, a qualidade, a dedicação e a vocação necessárias para uma boa escola. A ideia é pegar a carreira federal, que já existe naquelas 451 escolas, e colocá-la nas 200 mil, num horizonte de tempo que adiante vou dizer qual seria e num processo de implantação que vou sugerir.

Estou falando de uma carreira nacional de magistério e escolas bonitas, confortáveis e com os mais modernos equipamentos pedagógicos. Temos de fixar uma data para atear fogo no último quadro-negro. Para uma criança o quadro-negro é um instrumento de tortura. Ela nasceu vendo computador, televisão e movimento. Aí o professor pega o giz, faz um pontinho e diz que é o Sol, outro pontinho é a Terra, que gira ao redor do Sol. As crianças não aguentam mais isso, porque veem essas simulações em movimento. Hoje existem técnicas que fazem a escola ser boa. Todos lamentam que as crianças ficaram violentas. Elas não são, a escola é que é violenta. O assento é desconfortável, há goteiras, os equipamentos são antiquados, os professores são despreparados e desmotivados. Precisamos resolver essa equação com um professor bem preparado, dedicado, motivado – cabeça, coração e bolso. Ao mesmo tempo, com uma escola adaptada às exigências e às potencialidades das novas técnicas – computador, televisão, os diversos softwares que podem ser usados para melhorar a pedagogia. Pelo menos até inventarem a implantação de chips para substituir o professor, serão a televisão e o computador.

Aqui começam os problemas. Primeiro o menos difícil: para atrair bons quadros da sociedade, o professor tem de ganhar R$ 9,5 mil por mês, que é o que paga o Sesc. Então haverá uma dificuldade séria, pois muita gente que não gosta de ser professor e não tem vocação vai querer o emprego para ganhar esse salário. A seleção terá de ser um processo muito cuidadoso, com exames, seguidos de uma avaliação psicológica. Perguntei no Sesc qual o critério de escolha do professor, além de provas ou exames, e a diretora, figura maravilhosa, me disse: “Contratamos quem arrepia a gente”. Ou seja, existem profissionais que sabemos que vão funcionar. Então, pagamos R$ 9,5 mil, com uma seleção muito cuidadosa, e finalmente acabamos com a estabilidade plena no emprego, substituída pela estabilidade responsável. A diferença é que na plena ninguém demite, na responsável o governador não demite, nem o prefeito, nem os pais, mas uma avaliação pode levar à demissão.

Com esse salário e essas condições, se fizermos um concurso hoje, conseguiremos 30 mil profissionais. Num prazo de 20 anos para executar tudo, começamos contratando 30 mil, depois chegamos a 50 mil, 70 mil, 120 mil, 130 mil por ano, e no final de 20 anos todos os professores do Brasil serão federais, com esse salário, essas qualidades e esse regime de trabalho. Ao mesmo tempo, fazemos escolas de outro tipo, como fez o Sesc, como o Colégio Pedro II, as escolas técnicas, os colégios militares, que ganham as olimpíadas de matemática por aí. Esse é o processo que chamo de federalização.

Concurso

Como fazer isso? Há duas maneiras. Uma é começar a pipocar escolas federais pelo Brasil, como o governo vem fazendo com as escolas técnicas, como Leonel Brizola fez com os Cieps [Centros Integrados de Educação Pública], como o presidente Fernando Collor fez com os Ciacs [Centros Integrados de Apoio à Criança]. Collor fez os 500 Ciacs. Penso que isso não vai funcionar, porque ter uma boa escola no meio de escolas ruins cria dois problemas. Primeiro: como escolher os alunos que vão para a escola boa, se os outros vão ficar nas ruins? Acabam fazendo como o Colégio Pedro II: um exame, e só entram os filhos das classes que já são educadas ou, pior ainda, por influência.

A proposta que faço é de que essas escolas sejam implantadas por cidade, onde todas elas passariam a ser federais em dois anos. Teríamos uns dois anos para fazer o concurso, construir e equipar as escolas. Os professores nesse sistema serão escolhidos, mas não ficarão onde quiserem, terão de passar pelo mesmo que os funcionários do Banco do Brasil, da Caixa Econômica, ou os militares, que vão para onde for preciso, assim como os promotores, os procuradores, os juízes. Embora seja preciso começar por poucas cidades, se trabalharmos com as de tamanho médio – o ritmo não seria esse, mas considerando 250 municípios por ano –, precisaríamos de 20 anos para chegar aos 5.565 municípios.

Essas 250 cidades de tamanho médio necessitam de 100 mil professores, atendendo 3 milhões de alunos em 10 mil escolas. Para 5.565 cidades seriam 2 milhões de professores. O custo disso é de 6,4% do PIB [Produto Interno Bruto]. O PNE [Plano Nacional de Educação] está propondo 10%, ainda sobram 3,6%. Por isso me preocupo com a ideia dos 10%. Jamais vou ficar contra colocar mais dinheiro na educação, mas hoje, se cair dinheiro do céu no pátio da escola, vira lama na primeira chuva. Essa é uma parte da estratégia, não é melhorar a escola, é criar outro sistema. Isso é fundamental para sabermos se esse é o caminho certo ou errado. A solução será essa lenta melhora ou um novo sistema enquanto vamos aposentando o atual?

Aqui cabe uma pergunta: o que fazer com os professores atuais? Primeiro, eles terão a chance de fazer o concurso, da mesma forma que hoje não se entra no Pedro II sem fazer um concurso e ninguém reclama. Poucos passarão. Seria o mesmo, com uma diferença: nas cidades em que fizéssemos essa revolução, haveria os professores da carreira federal, mas absorveríamos os demais pagando R$ 4 mil por mês, o que significa, na média, mais que dobrar o que ganham. Eles teriam assim uma ascensão e iriam colaborando até se aposentar. Não sou favorável a aposentar os que estão aí. Os 6,4% do PIB incluem esses R$ 4 mil dos professores tradicionais. É claro que no final de 20 anos não restará quase nenhum, porque se aposentam muito cedo.

Dificuldades

Quais são as dificuldades para fazer isso? Primeiro, uma política. Como as pessoas vão receber a existência de duas carreiras? Como os sindicatos vão aceitar a estabilidade responsável em vez da plena? Segundo, como escolher as cidades? As outras continuariam melhorando na mesma velocidade, não estou propondo que fiquem abandonadas.

No caso da primeira dificuldade, a política, tenho certa frustração com o presidente Lula. Ele era a pessoa certa para liderar essa revolução e, quando fui ministro por 12 meses, tentei isso em 28 cidades, sem nenhum apoio do resto do governo. Escolhemos cidades de 10 mil habitantes apenas e tudo foi feito com dinheiro do próprio MEC [Ministério da Educação]. Tirei dinheiro até daquilo que considerava minha filha, a Bolsa Escola, porque tinha mais recursos do que famílias recebendo.

No primeiro ano o orçamento é herdado da administração anterior, é preciso reformá-lo. Conseguimos isso somente em outubro, transferimos o dinheiro no final de dezembro, mas em janeiro saí e tudo parou. Lula era o cara para negociar com os sindicatos, prefeitos e governadores, pelo carisma que tem.

Lamentavelmente, preferiu-se investir em algo que é importante, mas muito mais eleitoral do que a educação de base, o ensino superior. Se colocamos uma faculdade numa cidade onde todos são analfabetos, eles vão ficar muito contentes. Se colocamos uma escola de base num lugar em que todos são analfabetos, eles acham que você fez sua obrigação, não se eleva a autoestima.

Investir no ensino superior foi positivo, porque o jovem já pensa em ir para a faculdade, e isso é muito bom. Só que ele está entrando no ensino superior absolutamente despreparado. É um equívoco acreditar que o aumento de universitários vai trazer um bom resultado no final para o Brasil, a não ser no nível de consciência de ser universitário.

No Todos pela Educação, esse movimento formidável, fizeram uma avaliação das metas que o governo tem para 2022. Primeiro, são metas ridículas, comparando com o que precisamos. Um dos dados que mais choca é o de que, em cada dez alunos no final do ensino médio, apenas um tem conhecimento razoável de matemática. A Universidade de Brasília fez um concurso para a área de informática e não conseguiu preencher as vagas. Hoje há mais vagas no ensino superior do que jovens no final do ensino médio, e as pessoas que entram são absolutamente despreparadas.

Na Universidade de Brasília, onde continuo lecionando, os professores de engenharia são obrigados a dar, durante o curso, a formação que os jovens precisavam ter recebido na educação de base. Lembro-me de que, quando entrei na escola de engenharia, em 1962, sabia cálculo diferencial, derivadas, a teoria dos limites. Hoje não sabem regra de três. Então a dificuldade política é muito grande, por isso talvez a ideia seja impossível.

Mas não se deve propor só o que é possível, devemos apresentar o que é necessário da maneira que consideramos a melhor. Tenho certo otimismo, porque a educação vai ficar tão necessária que os políticos começarão a defender não essa simples evolução, mas uma revolução, como outros países fizeram. Os políticos também começam a mudar, e nisso vejo um mérito do governo Fernando Henrique Cardoso, com a Bolsa Escola, que seguiu depois com Lula e Dilma. A preocupação com a pobreza é positiva, o slogan da presidente Dilma, de que país rico é país sem miséria, se entrar na cabeça dos brasileiros, começará a quebrar aquele segundo impedimento, ao mostrar que miséria é não ter educação. Isso é miséria, até porque o resto vai ser resolvido.

Outro problema, ainda no nível político, é que não conseguimos uma base eleitoral para apoiar uma proposta como esta. A população pobre brasileira não se considera no direito de ter uma boa educação, que ainda não faz parte de sua cesta de bens. O trabalhador que anda de ônibus olha para um lado e vê uma escola bonita, olha para o outro e vê um carro último tipo, tem mais inveja do carro do que da escola. Isso todos os estudos mostram, ele não se sente no direito de ser bem educado, é como se a educação de nível existisse para uma minoria privilegiada, da qual os filhos dele não são parte.

Ministério específico

Outro problema, fácil de resolver, é gerencial. A mudança não ocorrerá enquanto o MEC for ministério também do ensino superior. Enquanto não tivermos o ministério da educação de base, em que a presidência da República tenha sob controle a educação dos meninos e meninas do Brasil, não vamos ter bons resultados, porque tudo fica na mão dos prefeitos. Não sou, porém, favorável a mais um ministério, já são 39. É simples, fazemos como outros países: o ensino superior vai para a pasta da Ciência e Tecnologia, embora preferisse um ministério do ensino superior e o fechamento de dez ou 20 dos que estão aí.

Precisamos de um agente político no nível ministerial, em cuja cabeça todos os dias esteja a questão da educação das crianças, sem que precise se distrair com o ensino superior e sem se submeter às pressões das universidades, que são muito fortes. Um reitor entra no gabinete do ministro quase sem pedir licença, enquanto um secretário da Educação não consegue atenção.

Precisamos também de uma secretaria para cuidar dos assuntos das crianças e dos adolescentes. Já temos a secretaria das mulheres e a dos negros, a Funai para os índios, mas nada relacionado a crianças e adolescentes junto à presidência da República. Se a presidente vê no noticiário que aumentou o número de meninas prostitutas no Brasil, ela não sabe para quem ligar, se para o ministro do Trabalho, para o de Direitos Humanos ou para a Polícia Federal. Não temos um xerife para saber onde estão as crianças que não vão à escola. Então temos um problema gerencial, que é esse do ministério específico, e a questão de como implantar, ao longo de 20 anos, a equação de mais professores e melhores escolas, tudo em horário integral.

Concluo com o problema menor, o financeiro, porque 6,4% do PIB não é um valor alto. Estou falando em 6,4% daqui a 20 anos, supondo um crescimento de 3% ao ano. Se o crescimento continuar no “pibinho”, em vez de 20, serão 30 anos, é possível se adaptar. Não vejo, portanto, problema financeiro, mas apenas político e gerencial.

Antes de tudo, porém, é preciso convencer as pessoas, mudar o imaginário. Como convencer os quadros políticos? Como convencer os candidatos de que têm de partir para essa revolução? Como convencer a opinião pública?

Esse é o desafio e esse é o caminho que vejo para o Brasil. Na minha idade não se têm muitas outras razões para usar a energia, então ando por aí falando sobre isso para as pessoas e faço isso com um prazer enorme.

Debate

VAMIREH CHACON – Como enfrentar o semianalfabetismo no Brasil? Sei que ele também existe no resto do mundo, mas nosso índice diminui muito lentamente, isso já poderia ter sido superado há bastante tempo. Como melhorar a qualidade das escolas públicas e também das privadas, como enfrentar essa fábrica de semianalfabetos que é a escola secundária?

CRISTOVAM BUARQUE – Há duas maneiras de lidar com isso: ou minorando o problema hoje ou resolvendo-o para o futuro. A primeira coisa que proponho é cuidar das crianças que estão entrando na escola agora. Não criemos ilusões, por mais que se invista num menino de 15 anos que fez um péssimo ensino fundamental, ele não será um grande intelectual ou profissional. Defendo que o programa de alfabetização saia do Ministério da Educação e vá para o de Direitos Humanos. E temos de alfabetizar até os mais velhinhos, se quiserem. Não se faz um menino virar jogador de futebol aos 15 anos se ele nunca viu uma bola. Não se faz um grande escritor ou um grande cientista, salvo exceções, se ele começou a estudar mais seriamente somente aos 15 anos. Mesmo assim, temos de cuidar deles.
Outra coisa é mudar o conceito de alfabetização. Semianalfabeto em nosso tempo era quem não lia os clássicos, não era capaz de entender o mundo cultural. Antes de nós era quem não soubesse grego e latim. Pois bem, a alfabetização dos clássicos, do aprofundamento em leitura, vai sumir. Estamos entrando num mundo que dá mais importância à informação. Um aluno que não tenha lido grandes livros, mas que seja capaz de estar ligado no mundo, temos de considerá-lo alfabetizado. Temos de aceitar que daqui para a frente, salvo exceções, a alfabetização não será nos moldes das décadas até os anos 1980.
Como fazer então com que os jovens sejam alfabetizados nesse novo mundo? Melhorando a escola. E fazer isso no EJA, que é a Educação de Jovens e Adultos, consiste em pagar melhor os docentes. Se oferecemos boas escolas com bons professores, as crianças vão se dedicar um pouco mais, serão mais que semialfabetizadas, embora não sejam plenamente alfabetizadas.
Precisamos perseguir a ideia de que não se trata só de alfabetizar, mas de antenar. Antenar os jovens já é um grande salto. E investir nas crianças. Então, professor Vamireh, a saída mesmo, se quisermos mudar, é o ensino fundamental. Mas não podemos abandonar esses jovens, é preciso antená-los. Isso exige professores, equipamentos e o incentivo monetário para que eles fiquem na escola; há muitos atrativos fora dela.

ISABEL ALEXANDRE – Senador, o senhor falou do analfabeto tardio. Florestan Fernandes foi alfabetizado tardiamente em escola pública e essa educação o antenou. Mas os Florestans são cada vez mais exceções. Trabalho com textos de pessoas que pretendem lançar livros, que passaram por mestrado e doutorado, e vejo que o analfabetismo funcional atinge hoje até o nível universitário. Os textos que nos chegam às mãos precisam de um ghost writer, alguém que os reescreva. Não se trata só de uma questão de estilo, é preciso colocar as ideias no lugar, porque as pessoas não sabem se expressar e são contraditórias.

CRISTOVAM – Marina Silva também foi alfabetizada tardiamente. Mas dificilmente alguém vira leitor tardiamente, no sentido de que se alfabetiza e já começa a ler. Florestan e Marina são pessoas geniais.

PAULO NATHANAEL – O senhor disse que é melhor ter uma má escola do que não ter nenhuma. Estou com o senhor nisso, mas o país não vai realizar suas aspirações com uma escola ruim. Ela teria de encontrar qualidade, ou pertinência, como diz a Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] em relação a políticas de qualificação escolar. Tem pertinência a escola que consegue dar o mínimo necessário ao preparo do aluno para competir e ao mesmo tempo é moderna tanto em organização como em comunicação. Nossa escola é antiquadíssima e, evidentemente, nossos alunos não saem dela capazes de competir numa civilização da informação.
A questão do ensino básico é realmente a chave. A universidade está numa situação difícil porque atende a uma população de analfabetos funcionais. Parece mesmo que, se conseguirmos corrigir o ensino básico, a universidade terá talvez a metade dos seus problemas superados. Costumo dizer que o Brasil tem a pretensão de conduzir sua educação através da lei dos comboios, que determina que a velocidade dos navios numa composição é sempre a do mais lento.
Concordo que não bastam melhorias cosméticas nos currículos escolares, na construção de prédios ou nos equipamentos. Na Coreia do Sul os professores são todos treinados e aprendem a elaborar didáticas que aproveitem a comunicação tecnológica, somando-a à pedagogia. Nossos professores não têm como atender a essa necessidade.
Fui durante muitos anos curador da TV educativa de São Paulo, da Fundação Padre Anchieta, e vi o fracasso de todas as emissoras desse tipo, exatamente porque não conseguiram equacionar a linguagem que deve ser levada à sala de aula. Passaram a ser pura e simplesmente culturais, porque falharam na principal finalidade. Isso porque nas universidades não se fizeram as pesquisas necessárias para encontrar a linguagem capaz de fazer da comunicação avançada ou da tecnologia um grande instrumento de qualificação da educação.
A qualificação do professor deve ser o primeiro passo para buscar a revolução da educação e a saída da crise, mas isso está difícil de conseguir. Toda mudança educacional leva pelo menos uma geração para amadurecer e parece que o governo está muito alheio à necessidade de apressar as medidas corretivas. Com isso me vem à mente uma dúvida sobre federalização, porque não vejo o governo federal priorizar a educação. Então não sei até que ponto a revolução proposta pelo senhor poderá encontrar eco. Outro pré-requisito seria que as empresas de comunicação aderissem e tentassem mudar a cabeça do povo brasileiro, já que detêm um poder extraordinário para aculturar o povo.

CRISTOVAM – Também não acredito que o governo queira fazer a revolução, vai continuar com melhoras lentas. Mas vamos ter eleição presidencial daqui a dois anos e creio que o tema da educação virá. A própria Dilma Rousseff já andou dizendo que a educação deve ser o tema central. O que temo é que tenha dito isso por influência dos marqueteiros, que o povo começa a descartar.
Outra coisa é o computador, que sem um professor preparado é uma máquina morta. No mundo de hoje, um professor sem computador é um caminhante a pé, não está fazendo uso do carro que poderia utilizar. Isso é tão importante que em minha proposta, além da seleção rigorosa do professor, coloco que cada escola tenha dois profissionais, um capaz de antenar o professor no mundo da computação e outro especialista para colocar as aulas na rede, para que os alunos possam assisti-las outra vez em casa.

CLÁUDIO CONTADOR – Sua palestra reforçou nosso convencimento de que o grande tema dos próximos governos será a educação. Revendo a história do Brasil, lembro as épocas de crises cambiais, inflação louca e todos os problemas que são superados quando o povo quer. A democracia não foi dada pelos militares, eles perceberam que estava na hora. E a educação pulou uma porção de posições na agenda nacional, independentemente de governos. Faço, no entanto, uma provocação: a educação sozinha não vai resolver o problema. Vejam o caso dos argentinos, um povo educado que parece ter uma tendência a se destruir. Por outro lado, temos até uma vantagem, que é o fato de estarmos passando por um período de bônus demográfico, que vai permitir que se construam menos escolas, deslocando esses recursos para a qualificação de professores.
E aquela proposta do senador Eduardo Suplicy, do voucher ou cheque educação, morreu? Outra questão é a das cotas, mas vou parar por aqui.

CRISTOVAM – O voucher, ou seja, dar dinheiro aos pais para que eles ponham a criança na escola que quiserem, como regra acho ruim. Agora, comprar vagas em algumas escolas particulares acho certo. Minha proposta permite isso. Aliás, apresentei um projeto de lei chamado Proesb [Programa de Apoio ao Estudante da Educação Básica], que é o Prouni [Programa Universidade para Todos] da educação de base. Chile e Espanha estão usando isso, a escola é administrada privadamente.
Sou um defensor há bastante tempo do conceito público-privado, tanto que luto muito para desvincular o conceito de estatal do de público. Um hospital do Estado que não funcione não é público. Um hospital público tem três coisas: ninguém fica em fila para entrar, ninguém sai levando doença nem com a conta bancária menor. Então é possível ter escola pública não estatal, não como a regra geral, mas como exceção.
Quanto às cotas, é mais uma vez a ideia de solucionar com jeitinhos. Não temos escolas de qualidade para as massas, que no Brasil são negras em grande parte. Os negros não entram na universidade e a elite brasileira, portanto, se mantém branca em um país que não é branco. A saída é colocar negros lá dentro. Mas esse é um jeitinho necessário e é fácil mostrar por quê. Olhem ao redor desta mesa, onde está o negro aqui? Não há, nem médio negro há. Temos de mudar isso, e quem traz pessoas para esta sala é a universidade. Então colocar alguns negros na universidade não resolve nada, salvo começar a fazer com que a elite brasileira tenha uma cara mais morena.
Dizem que um dos lados negativos das cotas é que a qualidade cai. Não é verdade, porque só se beneficia delas quem for aprovado no vestibular. O negro passa numa classificação posterior às vagas, mas passa. Gosto até de dizer que nunca vi ninguém perguntar a seu médico em que lugar ficou no vestibular, onde fez curso ou a residência. Minha proposta é que se aumente o número de vagas, não é preciso tirar a de nenhum branco. Não cai a qualidade, porque as cotas são no máximo de 10%, nem chegam a isso.
Você citou a Argentina e eu coloco Cuba também. Se não tivessem uma boa educação, esses dois países estariam em situação muito pior. E vejam a Islândia e a Irlanda como estão saindo da crise, porque têm um nível educacional melhor. A crise vem da política fiscal, monetária, da corrupção, mas um povo educado é capaz de ter resiliência. A Argentina estaria muito pior, considerando os governos das últimas décadas. Além disso, na hora em que se encontrarem, eles se sairão melhor que nós. Podem não se encontrar nunca, mas se eles se resolverem politicamente vão ficar melhor.

LUIZ GORNSTEIN – Nos últimos anos houve uma explosão de IPOs [ofertas públicas iniciais, na sigla em inglês] de complexos educacionais na bolsa. Gostaria de ouvir sua opinião sobre isso, se é bom ou no que é ruim.

CRISTOVAM – Quanto à colocação de ações de universidades na bolsa de valores, não sou contra. Prefiro o capitalista que põe dinheiro em educação do que em outras coisas, em indústria de armas, por exemplo. Só precisamos tomar cuidado com o modo como esses novos proprietários vão usar a universidade, se vão seguir certas regras.
Por exemplo, se uma universidade não se sair bem na avaliação feita pelo MEC, ele não reconhecerá o diploma. Então os alunos vão desistir, o lucro da universidade vai cair e a ação na bolsa despencará. O que não se pode é permitir que os acionistas façam especulação com a inteligência ou a falsa inteligência dos alunos. Podem ser investidores, mas em instituições obrigadas a ter qualidade. Muita gente é contra, mas está de acordo com o que falei do público-privado: deixe que tragam dinheiro para a educação; caberá a nós fiscalizar para ver se se trata realmente de educação ou apenas de especulação.

JANICE THEODORO – Suas propostas me parecem interessantes no que respeita à federalização do ensino. Considero porém que levar isso à frente do ponto de vista político é bastante difícil, e a solução tem de ser pontual. Não é possível realizar esse projeto em todos os cantos do Brasil ao mesmo tempo, seria inviável. Qual então o caminho para viabilizar a proposta?
Analisei muitas vezes dados do Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais] relativos aos resultados dos alunos e acredito que esse banco de dados poderia oferecer indicações seguras. Os dados mostraram que escolas públicas em lugares muito pobres tiveram muito bons resultados e que em outras localidades, em que se esperavam resultados bons, eles foram ruins. A informação é precária ainda, mas algumas escolas que tiveram rendimento extraordinário tinham grande parte dos professores ligados a determinada igreja. Com esses dados do Inep poderíamos gerar a definição de áreas que deveriam ser federalizadas como prioridade.
Outra observação que faço diz respeito à formação universitária atual. Estou agora trabalhando no projeto da Unila [Universidade Federal da Integração Latino-Americana], e percebo que a formação universitária está começando a viver seu período de crise. Muitos alunos estão entrando na Unila e logo saindo por deficiências da universidade que está sendo implantada. Estão considerando que a formação universitária não vai corresponder posteriormente a seu desenvolvimento profissional, não está existindo uma relação de causa e efeito.
No Brasil existia uma relação direta entre educação e trabalho, uma cultura de que quem fazia universidade teria um bom futuro profissional. Essa ideia está sendo posta a pique pelo crescimento excessivo das universidades particulares. Alunos que deram o sangue para pagar uma faculdade particular não estão conseguindo emprego com remuneração satisfatória. Estamos assim no começo da mudança dessa postura. Vai haver uma demanda popular por cursos técnicos, que são aqueles que facilitam o emprego, pois a indústria precisa de mão de obra qualificada. Como encontrar um encaminhamento para esse desafio?

CRISTOVAM – Há dois fatores de discordância ou concordância na implantação. Um diz respeito ao sistema gerencial nacional e o outro ao interior da sala de aula. Na sala de aula a questão se resolve com liberdade pedagógica. O governo não tem de impor nada, sobretudo de Brasília, para o país inteiro. Deve envolver estados e municípios. Na ideia de federalização, o governador faz parte do conselho que define o funcionamento das escolas em seu estado. O mesmo acontece com o prefeito em relação ao município. O secretário da Educação vira uma espécie de mentor curricular, fiscal.
Você falou na crise que vive a educação média e universitária. Sou professor universitário e ex-reitor, nós nos viciamos num sistema universitário que não serve para o momento atual de mudança científica e tecnológica de um dia para o outro. Continuamos exigindo cinco anos para que um jovem tenha um doutorado. Quando ele termina a tese, ela está superada, muito provavelmente, mesmo se for de história, porque no período de cinco anos aconteceram outras coisas. Temos de fazer com que os cursos sejam mais ágeis, que o aluno aprenda não apenas uma profissão, mas sobretudo a mudar de profissão.
As pessoas dizem: há tantos doutores desempregados! É porque tiveram uma educação fora de sintonia com as necessidades. Sou contra anglicismos, mas há uma palavra em inglês que define bem isso, é misplaced education, uma educação deslocada. Como tudo muda muito rápido, temos de ensinar as pessoas a mudar de profissão.
Em minha proposta, o ensino médio aumenta para quatro anos e todos saem com um ofício, e capazes de se adaptar. Um dia desses, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, um motorista me disse que era programador de computação. Quando surgiu o Windows, ficou sem emprego, porque já não precisavam de programador. Não se adaptou.
Finalmente, faço uma referência a um setor que se federalizou e, mesmo que não esteja satisfazendo, melhorou muito. É o SUS [Sistema Único de Saúde]. A qualidade da saúde dos pobres melhorou, muito mais que a de sua educação, ainda que não seja satisfatória. Talvez o errado disso tudo seja o nome “federalização”, estou em busca de outro. Na verdade o que queremos é que o Brasil gaste o mesmo valor na educação de cada criança, independentemente da cidade onde vive e da família que tem, assegurando qualidade igual. Agora, uma frase dessas não dá para resumir em uma palavra ainda, algum dia alguém vai inventar. Chamo de federalização, que não é o propósito, é o meio gerencial. É ruim, mas não consigo ter outro.

ADIB JATENE – Qual é sua opinião sobre a progressão continuada?

CRISTOVAM – Sou radicalmente contra. Defendo, e implantamos no Distrito Federal, um sistema pelo qual durante dois ou três anos, nas primeiras séries, o aluno continua com sua turma, mas dependendo daquilo em que não foi aprovado. Esse aluno que foi reprovado continua com os de sua idade, para não perder o estímulo, mas, além de estar na classe, vai ter aulas de reforço. Custa mais, mas penso que é o caminho. Não impedir que o reprovado nas primeiras séries avance, mas não permitir que seja considerado aprovado. Senão, é como o senhor começar a dar alta no hospital pelo tempo de permanência do doente: ficou um ano, então está com alta.

JATENE – Outro aspecto diz respeito à utilização da tecnologia. Mudar um universo de professores dá muito mais trabalho do que utilizar tecnologia para uniformizar as aulas.

CRISTOVAM – Penso que com os professores atuais, com todo o respeito e carinho, não vamos conseguir fazer isso. Eles não têm como dar o salto para usar os equipamentos totalmente. Mas temos de implementá-los, naquela linha do sistema que vai avançando. Não proponho fechar o sistema tradicional, mas substituí-lo ao longo de décadas. O bom professor mesmo terá de ser diferente dos atuais, salvo alguns que vão passar até no concurso para federal. O fundamental é usar novos equipamentos e melhorar os professores.

JATENE – Penso que, se usarmos a moderna tecnologia, ela nos ultrapassará. Existe um livro recente chamado The Criative Destruction of Medicine, segundo o qual a tecnologia utilizada em medicina destruirá a medicina. Então precisamos utilizar a tecnologia para ultrapassar esses professores.

CRISTOVAM – Estou de acordo, mas a grande ultrapassagem é feita pelo novo professor que já venha com essa cabeça. Quanto à medicina, pelo que leio, isso acontecerá porque em vez de remédio vamos usar a biotecnologia individualizada. Então será outra coisa, não vai se chamar mais medicina, o juramento de Hipócrates não vai mais servir, talvez seja um juramento de Steve Jobs feito pelos médicos. Vão curar as pessoas com “medicinas personalizadas”, na verdade através da engenharia genética. Mas isso está acontecendo em quase todos os ramos, estamos sendo superados.

EDUARDO SILVA – Estou na Fatec [Faculdade de Tecnologia] de São Paulo, que existe há mais de 40 anos com a meta de preparar alunos para o exercício profissional. Nestes últimos períodos temos tido alguns problemas, porque as empresas nem sempre têm recursos para comprar computadores para todos. Então procurei mostrar aos alunos que a lousa não está completamente superada, ela pode até nos ajudar a raciocinar. O que o técnico precisa é ter a capacidade de resolver o significado da matemática sem grandes equipamentos, porque, se não for capaz disso, o próprio instrumento vai prejudicá-lo. Alguns alunos conseguiam apenas teclar no computador, não sabiam dar respostas para nada. A conclusão é a seguinte: o computador pode tornar o profissional apenas um teclador. Penso que estimular o ser humano a raciocinar seria um grande avanço.

CRISTOVAM – Vou responder da seguinte maneira: primeiro é importante não ter nossa memória toda dependente do computador. Porém, até para ensinar a fazer conta é mais fácil por programação no computador do que no quadro-negro. Você põe os números dançando, a educação fica lúdica. Ela tem de ser lúdica, não dá para separar o lúdico do imaginário. Temos hoje de entender que já não é mais tempo de apenas usar o computador, tem de haver gente criando computadores. Sobre o quadro-negro, penso que ele é como o estetoscópio: continua sendo útil, mas ninguém vai a um cardiologista que só tenha isso, você quer uma porção de outros equipamentos.

JOÃO TOMAS DO AMARAL – Ficou muito claro aqui que educação é um armário onde se põe tudo aquilo que não cabe em outros lugares. Educação sexual onde cabe? Põe na educação. Educação de trânsito? Põe na educação. E assim vai. Também ficou bastante claro que algumas propostas já foram aplicadas em outros momentos.
Todos sabemos que temos avaliações demais e ações de menos. Há a questão da inclusão, que está sendo muito mais exclusão. A formação de professores também é um grande nó, seja a formação inicial, seja a continuada e o chamado exame de controle, que já está sendo feito na Espanha e em Portugal, onde foi muito complexo colocar tudo isso, porque existe uma cultura de não controle dessa capacitação.
Há a questão da escola básica. É formação cultural ou científica? Outro tópico é a defasagem entre entrada e saída. Em algumas universidades, como a USP [Universidade de São Paulo], entram 11 mil alunos e só se formam entre 4 mil e 6 mil. A questão da tecnologia é um meio, não um fim, com certeza. E por fim temos de entender que toda a legislação brasileira nasceu de um relatório da Unesco, da Comissão de Educação para o Século 21, que começou a trabalhar em 1993, terminou em 1996 e foi a base da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional]. Então existe um grande descompasso.
Finalmente, num trabalho de pesquisa recente encontrei num livro publicado na Espanha os seguintes dizeres: “Na medida em que o modelo de esboço curricular espanhol está se estendendo a países sul-americanos (Brasil, Argentina, Chile), como uma espécie de segunda colonização, vai adquirir um valor adicional o fato de se alertar para os problemas que apresentou a Espanha, precisamente para não reproduzi-los, como efetivamente está acontecendo nesses países”. Como o senhor enxerga essa questão?

CRISTOVAM – Não podemos fechar os olhos às boas coisas lá de fora, é bom o intercâmbio. Quando dizem que a Espanha está intervindo, é sobretudo por causa da produção de livros didáticos e agora de equipamentos pedagógicos computadorizados pela Santillana, a grande editora que aqui é dona da Moderna e de outras. Não acredito, no entanto, que estejam influindo na cabeça da gente. Estão fazendo livros que queremos que façam, estão produzindo o que nossos professores escolhem. Não acho que seja uma colonização.
Discordo desse texto deles, não sei por que colocaram isso. Talvez a explicação seja uma pretensão muito grande desses espanhóis, ao acharem que estão nos colonizando outra vez. Não estão, mas vamos, sim, usar o que eles tiverem. É interessante. Hoje sabe onde temos de olhar para usar equipamentos de computação na escola? Portugal. Esse país está muito avançado em termos de uso de equipamentos de computação pelos alunos, e os professores estão mais ou menos se atualizando, não satisfatoriamente ainda.

TOMAS – O computador utilizado em Portugal, o Magalhães, foi vendido para a Venezuela, mas já está fora de uso entre os portugueses. Espanha e Portugal estão numa crise educacional muito forte e o Brasil tinha sido em alguns momentos referência para esses países. Temos potencial suficiente para transferir tecnologia educacional.

CRISTOVAM – O Magalhães na avaliação geral deu muito certo, talvez já precise de uma nova geração. Só um detalhe sobre nosso atraso nisso. Fiz uma viagem à Geórgia, para um encontro com o ministro da Educação, e levei um presente, uma escultura indígena, que eu achava maravilhosa. Ele disse que era muito bonita e que também tinha um presente para mim. Deu-me um computador que usam nas escolas lá. Estamos atrasados. Mas, como alguém falou aqui, não podemos cair na ilusão de que o computador vai resolver qualquer coisa.
Outra observação tem a ver com a ideia do lúdico, e me lembro de um conto infantil chamado “A Flauta Aritmética”. É sobre um menino que assiste a aula de aritmética, mas chega em casa e fica tocando flauta. No outro dia não sabia fazer nenhuma conta e a professora perguntou: “Mas o que você ficou fazendo na hora do dever de casa?” Ele disse que tinha tocado flauta e ela retrucou: “Então venha tocar aqui para a gente”. Ele começou a tocar, os números iniciaram uma dança, fazendo as contas sozinhos. Esse é o casamento do lúdico com o real. Nosso maior problema com matemática é que não conseguimos ensinar de forma lúdica. Exagerando um pouco, talvez seja como ter educação sexual com erotismo também.
Finalmente, o papel da sala de aula. Não tenho ido aos lugares como educador, vou como educacionista. A sala de aula em si prefiro não discutir, estou tão perdido neste momento ao pensar como é que deve ser uma boa aula que prefiro dizer: vamos trazer os bons professores e dar-lhes os equipamentos, eles vão inventar a escola do futuro. Como vai ser é difícil dizer. O que podemos garantir? O que queremos é que o aluno aprenda a deslumbrar-se com as coisas belas do mundo, indignar-se com as injustiças, ser capaz de falar os idiomas necessários e aí, sim, entra a empregabilidade, ele se torna capaz de agir no mundo. E finalmente ser capaz de imaginar, daí a importância da literatura.

MÁRIO ERNESTO HUMBERG – Discordo da ideia de federalização, acho que o Brasil é um país excessivamente centralizado, precisamos descentralizá-lo, tirar a possibilidade de deputados federais, por exemplo, fazerem um absurdo como o de outro dia, ao determinar a vestimenta dos taxistas no Brasil. A educação nos países que deram certo é toda descentralizada. Há nações europeias em que a educação foi centralizada, o exemplo mais notável talvez seja a Alemanha com Bismarck.
Num trabalho que fizemos no âmbito do Projeto Brasil 2022, do PNBE [Pensamento Nacional das Bases Empresariais], uma das propostas, que depois foi absorvida por algumas entidades, era de que em 2022 não houvesse nenhum jovem brasileiro que não tivesse 12 anos de escolaridade, mas o importante era que ao final desses 12 anos todos tivessem uma profissão. Hoje os alunos se sentem desmotivados, pensam que aquilo não serve para nada e que têm mais possibilidades fora da escola. Se os cursos fossem profissionalizantes, eles teriam interesse.
Outra coisa que verificamos no estudo do PNBE é que um dos fatores que fizeram a escola dar certo em alguns lugares foi o envolvimento da população. Visitamos várias cidades em que, pelos dados, tinha ocorrido um progresso grande na área educacional, como é o caso de Sobral, no Ceará, de Sertãozinho, em São Paulo, e de Rio Branco, no Acre. Em todas elas a educação passou a ser um assunto político institucional, a cidade passou a exigir educação. As pessoas cobram saúde, mas não cobram educação.

CRISTOVAM – Sou defensor de descentralização, mas há duas descentralizações, uma justa e outra injusta. A descentralização injusta é você dizer: vamos descentralizar, quem é rico fica rico e quem é pobre fica pobre. Nenhum de nós é a favor disso. Defendo a descentralização justa, o básico para todo mundo e depois descentralizamos. O básico é escola igual para todos. Ela tem de ser a base moral de qualquer descentralização. Estou me referindo, porém, a uma escola igual no professor e no preparo, não no conteúdo, que tem de ser livre. Por exemplo, ninguém descentraliza a bandeira nacional, mas cada estado tem a sua. Sou a favor de uma grande bandeira, que é a escola federal, mas cada local faz sua bandeira específica, do mesmo jeito que ninguém propõe descentralizar a moeda, ninguém propõe descentralizar a Constituição, mas existe uma Constituição local, moeda não.
A descentralização que proponho parte de um princípio: nenhuma criança receberá mais do poder público brasileiro do que outra para sua educação. E o dinheiro deve ser usado competentemente para que a escola fique boa. Isso só é possível com a União. Até mesmo municípios ricos não melhoraram a escola deles. Já fui a uma cidade que tem muito dinheiro do petróleo e cujo prefeito fez um cemitério maravilhoso, mas não uma boa escola. A União é a única capaz de unificar isso para permitir que a descentralização seja justa.

HUMBERG – Uma das soluções seria acabar com o fundo de participação e fazer vários fundos, um deles para a educação, que seria dividido igualmente por criança.

CRISTOVAM – Isso já existe no Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação], mas termina não funcionando porque lá na ponta não se usa direito. Estamos falando de uma unidade da base educacional com descentralização gerencial e liberdade pedagógica. As escolas técnicas, por exemplo, são federais, mas não ficam fazendo o que o ministro quer. As universidades são federais, mas o reitor tem autonomia. Aliás, eu radicalizo nisso: a gestão da escola hoje é do secretário, mas defendo que seja dos pais, dos professores e dos meninos adolescentes, descentralizada. Os professores ganham o mesmo, mas se decidirem dar uma gratificação a um professor melhor sou favorável.
Não sou a favor da isonomia. Aliás, uma coisa ruim no Brasil é que quem é melhor não está recebendo mais. O governo era radicalmente contra um projeto de lei que fiz, destinado a criar o 14º salário para professores que demonstrem que são bons. Tenho outro projeto que diz simplesmente que os pais beneficiários da Bolsa Família são obrigados a comparecer à escola dos filhos uma vez por ano. Não aceitam esse condicionante de maneira alguma, dizem que eles são pobres, replico que é porque são pobres que têm de ir lá. Dizem que moram longe, respondo então que a escola está no lugar errado. Não aceitam. Vou continuar brigando, mas eles têm a maioria para fazer o que quiserem. Acho uma indecência a recusa de aprovar isso, para manter a Bolsa Família como uma coisa puramente assistencial e não educacional.

JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – O Brasil é um país de muitos contrastes chocantes. Vivemos uma ilusão, a federação praticamente não existe, o que existe é um Estado unitário. Paulo Nathanael mencionou o que para mim é o mais importante: como treinar os professores que vão criar essa nova escola? Aqui em São Paulo tive ocasião de trabalhar com Fredric Litto, que criou a Escola do Futuro, e também com um político um tanto diferenciado, Jânio Quadros, que me dava certa liberdade, e criei uma escola debaixo da marquise do Ibirapuera. O Citibank me deu o equivalente a 50 computadores, que instalamos no local para treinar crianças. Isso em 1985. Jânio não entendia nada de informática, mas tinha essa percepção, que é exatamente o que falta na maioria de nossos líderes.
Minha preocupação é que se comece a evitar a diversidade, porque ela é a grandeza do Brasil. Os gregos diziam: quando surgir uma obra de arte semelhante à que já existe, começou a decadência. Então são 5.565 municípios no Brasil, 80% deles não têm nem condição de sobreviver, mas cada qual tem alguma coisa a ofertar. Como ensinar um menino de São Paulo a amar a Amazônia se ele não conhece a região? Você não ama o que não conhece. É preciso então haver esse intercâmbio, criar mobilidade para nossas crianças e não permitir que pulem a fase lúdica.

CRISTOVAM – Você usou duas palavras interessantes, no começo “contraste” e depois “diversidade”. Diversidade é bom, contraste não. Qual é a diferença? Uma definição livre: diversidade é o contraste educado, contraste é a diversidade sem educação. Na hora em que se dá educação para todos, os contrastes viram diversidade, isso é bom. Contraste é haver o pobre e o rico, diversidade é haver duas pessoas educadas, sendo que uma delas opta por não ter dinheiro, consegue viver escrevendo em casa e vendendo de vez em quando um artigo. A educação pode ser o caminho para construir a diversidade, desde que se respeite a diversidade e não se homogeneíze a educação. As condições da escola devem ser iguais, mas ela não pode ser padronizada. Nem na arquitetura. O erro dos Cieps foi aquela padronização.
Quanto a trazer o lúdico para dentro da escola, estou de acordo, até deveria haver um espaço na escola para empinar papagaio, isso não precisaria acontecer na rua, como era no meu tempo.
Quero encerrar dizendo que o “Manifesto dos Pioneiros” está fazendo 80 anos. Um conjunto de educadores brasileiros, liderados por Anísio Teixeira, disse o que era preciso fazer. É o que a gente está discutindo hoje. Tirando o computador, é o que eles propunham e a gente não fez ainda, por aquelas razões que mencionei, a cultural, não é prioridade, e o imediatismo. Imediatismo é segurança, é saúde, é emprego, não é educação. Ninguém percebe que a educação resolve o desemprego e os problemas da saúde. Os da segurança ela não soluciona, mas é um instrumento para tanto. Por isso fico satisfeito por estar aqui, mesmo que debatendo uma coisa de 80 anos de idade, que não implantamos ainda. Conseguimos avançar sem implantar, mas não vamos conseguir ir muito além por causa da tecnificação. Naquela época se fazia conta à mão, hoje em dia é apertando botões.