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Foto: Eduardo Knapp/Folhapress
Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

As várias facetas da Marginal Tietê, em São Paulo, verdadeira autoestrada urbana

 

Por: ALBERTO MAWAKDIYE

É possível que poucos moradores da cidade de São Paulo conheçam tão bem a Marginal Tietê quanto José Luiz Moreira – talvez só os técnicos da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) que cuidam dessa área da metrópole, mas aí se trata de uma obrigação. Zé Luiz, como é conhecido esse gerente de logística e que já tocou teclado profissionalmente, conhece de cor o nome das pontes (o oficial e o “apelido”), as entradas, as saídas, as churrascarias boas e baratas, os postos de gasolina e os borracheiros mais confiáveis, e sabe onde comprar ferramentas e baterias.

Zé Luiz deve esse contato quase de intimidade com a principal via expressa da capital paulista, que margeia os dois lados do trecho paulistano do histórico rio Tietê, em plena área urbana, à pequena transportadora que manteve até bem pouco tempo atrás em um bairro afastado, na zona norte. “Eu ia à Marginal praticamente todos os dias, porque era nos postos de gasolina daquela via que entregava aos caminhoneiros a documentação da carga”, explica Zé Luiz. “Era desgastante. Às vezes eles se atrasavam por causa do trânsito, outras vezes nos desencontrávamos. Passava quase mais tempo na Marginal que no escritório.”

Certamente, muitos motoristas que por acaso vissem Zé Luiz enquanto abasteciam seus veículos jamais poderiam adivinhar que ele estava ali a trabalho, e muito menos que distribuídos pela Marginal havia muitos outros “zé-luízes” – em geral, donos ou encarregados de pequenas transportadoras espalhadas pela cidade, e que não podem se dar ao luxo de entregar a documentação da carga nos próprios escritórios. E não poderia ser diferente: imagine o transtorno para o trânsito, por exemplo, causado por uma imensa carreta de três eixos resfolegando por entre as ruas estreitas de um bairro residencial!

“Hoje eu não preciso mais fazer isso”, diz um aliviado Zé Luiz, que trocou o negócio próprio pela estabilidade de um cargo gerencial em um grande frigorífico na cidade de Arujá, na região nordeste da Grande São Paulo. “Agora, passo pela Marginal a passeio. Quem tem de ficar muito tempo lá sofre incrivelmente com a poeira e a poluição. Sem falar do trânsito desvairado: um dia, fui fechado por uma Kombi, o carro deu um cavalo de pau e fiquei atravessado na pista. Tive sorte de sair vivo.”

Para o ex-dono de transportadora, a Marginal Tietê é, antes de tudo, uma autoestrada dentro de uma metrópole e não apenas uma estratégica avenida interbairros. Aliás, ela foi mesmo planejada para ser uma rodovia, tanto que é identificada por uma sigla, como as outras estradas paulistas: SP-015. Seu “verdadeiro” nome, desde 1991, é Via Professor Simão Faiguenboim, já que Marginal Tietê é apenas um apelido que vem de 1957, quando começou timidamente a ser tirada do papel, alguns anos depois da conclusão das obras de retificação do rio que ela acompanha.

O fato é que, apesar de a Marginal cortar uma das mais fervilhantes áreas urbanas do país, o clima humano que a caracteriza é muito mais o de uma autoestrada que, propriamente, o de uma simples avenida, com as consequências que essa distinção acarreta. Em uma rodovia não há convívio algum, não há rotina imaginável – trata-se de uma peça de infraestrutura destinada simplesmente a levar os motoristas, suas cargas ou seus passageiros de um lugar para outro. Quem está numa autoestrada só pensa em sair dela assim que chegar a seu destino – ela é um espaço transitório, essencialmente uma rota de fuga, e a aura de “primeiros socorros” que cerca os postos de abastecimento e os restaurantes distribuídos em seu percurso como que comprova isso.

Uma avenida ou uma rua também existem, obviamente, para levar as pessoas motorizadas de um lugar para outro – mas, à diferença das rodovias, estão inseridas no tecido urbano. As residências e as lojas, os pontos de ônibus, os bares e restaurantes que cercam a via pública digna desse nome não retiram o motorista do ambiente da cidade onde ele vive, muito pelo contrário, o fazem mergulhar nele. Avenidas e ruas também se caracterizam como espaços de convivência e onde a inestimável rotina cotidiana pode ser reafirmada: com exceção dos taxistas, para qualquer motorista os percursos e os destinos urbanos são quase sempre os mesmos, e muitos rostos ao longo do trajeto acabam, com o tempo, por se tornar familiares.

“Rodovia interna”

A Marginal Tietê também tem edificações em seu entorno e pontos de ônibus nas pistas locais, e milhares de paulistanos fazem dela seu caminho de todos os dias. Mesmo assim, não consegue oferecer o conforto da urbanidade que toda avenida, em maior ou menor grau, proporciona aos usuários. A principal razão, claro, é seu gigantismo: hoje, são três conjuntos de pistas de cada lado do rio, separados por canteiros, com quatro faixas de rolamento nas vias propriamente expressas, em boa parte dos 24,5 quilômetros de extensão. Outra é o confinamento: ela é acessível apenas para os veículos. Não há espaço para pedestres nem calçadas, como em uma avenida convencional. Tampouco existem semáforos, onde os camelôs poderiam se aglutinar, oferecendo água e biscoitos aos motoristas; eles só atuam ali quando o trânsito está parado como num pátio de estacionamento.

De qualquer forma, a Marginal Tietê não é a única “rodovia interna” de São Paulo. Também compartilha esse status sua irmã mais nova, a Marginal Pinheiros, que oficialmente faz parte da mesma SP-015 ou Via Professor Simão Faiguenboim. Só que, enquanto a Marginal Tietê bordeja a região central de São Paulo no sentido leste-oeste, a do rio Pinheiros tem seu curso na direção oeste-sul, a partir de um entroncamento que é, na verdade, um emaranhado de viadutos, o chamado “Cebolão”, cujo desenho lembra, apesar do apelido, uma grande serpente se autodevorando.

No entanto, a Marginal Pinheiros é bem menos árida, e até mais aconchegante, que a Tietê, embora seu conceito seja tão de “autoestrada” quanto o daquela. Curiosamente, deve-se debitar essa suavização à especulação imobiliária, conhecida em São Paulo por sua voracidade e por seu gosto duvidoso, mas que fez a via expressa passar por uma fascinante mudança em seu perfil visual, com a construção de dezenas de arranha-céus de estilo pós-moderno ao longo do rio – cujas margens receberam ainda interessantes projetos de arborização. O cenário à beira da Marginal Pinheiros é agressivamente belo.

Já a visão que se tem da Marginal Tietê é agressivamente feia. Começando pelo traçado, de uma monotonia exemplar: a via expressa tem longas retas e pouquíssimas curvas, sempre acompanhando o curso do rio. As duas dezenas de pontes que a atravessam e a ligam a diversos bairros são deselegantes, cinzentas e parecem ter sido feitas com um gabarito talvez um pouco baixo demais. Enfim, um cartão-postal que parece ter sido criado por algum urbanista dotado apenas de régua e calculadora, e não de compasso.

O tom acinzentado se estende às margens: não há ao longo da Marginal Tietê quase edificação alguma de encher os olhos. É uma paisagem vagamente pós-industrial e onde predominam antigos edifícios fabris, transportadoras e galpões (muitos deles abandonados), estabelecimentos de varejo e shoppings de porte imenso e de ralo apelo estético, hotéis executivos, motéis, clubes de regatas à beira da extinção, velhas casas que sobreviveram não se sabe bem como e, meio escondidas, uma ou outra favela.

É na Marginal que ficam o Sambódromo e o Terminal Rodoviário Tietê, o Parque de Exposições Anhembi e o Aeroporto Campo de Marte, e é lá que se realizam as provas da Fórmula Indy (quando um trecho dela é fechado). Enfim, parece ser o endereço de tudo o que é de tamanho descomunal, seja relacionado à construção civil, seja no tocante a eventos de todas as origens.

“Lugar esquisito”

“A Marginal tornou-se a melhor área da cidade para estabelecimentos não industriais de grande porte, depois que as indústrias, que ocupavam boa parte de seu traçado, foram se mudando para o interior do estado”, diz Cláudio Conz, presidente da Associação Nacional dos Comerciantes de Material de Construção (Anamaco). “Não é à toa que quatro dos maiores home centers do país – C&C, Dicico, Telhanorte e Leroy Merlin – estão localizados ao longo dela.”

A paisagem na Marginal é também pouco cativante. Os recorrentes projetos de arborização elaborados para essa via expressa não costumam ir adiante: apenas uma vegetação insossa e fuliginosa pontua aqui e ali. E, entre os dois conjuntos de pistas, um largo canal emparedado a perder de vista, de águas mortas, sujas e malcheirosas – o que sobrou do outrora sinuoso trecho paulistano do Tietê.

O rio que deveria cumprir em São Paulo o mesmo papel destinado ao Sena, em Paris, servindo como fio condutor em uma zona central afável, ajardinada e urbanisticamente bela, uma espécie de pórtico da cidade, conforme o sonho dos paulistanos de 80 anos atrás, sabe no entanto se vingar do estrago feito em seu curso pelo homem: todos os verões, quando normalmente chove muito e pesado em São Paulo, ele sai de seu leito, inundando e destruindo.

Se a retificação do Tietê permitiu a construção da Marginal e a ocupação urbana das áreas que pertenciam às várzeas, hoje as águas do rio, que antes corriam por elas, sobem vários metros quando São Pedro abre as torneiras do céu, provocando alagamentos e prejuízos incalculáveis para o trânsito, as empresas e os moradores da região. “Já rodei por todo o Brasil e nunca vi um lugar tão feio e esquisito quanto a Marginal Tietê”, diz o caminhoneiro paranaense (de Londrina) Valdomiro José de Souza, que vem com frequência à capital paulista buscar toda sorte de bens não perecíveis com seu caminhão-baú. “Aquele que a atravessa pela primeira vez leva uma péssima impressão da cidade”, afirma.

Muitos paulistanos – senão a maioria – compartilham a opinião negativa de Valdomiro. “A Marginal Tietê é mesmo desinteressante”, afirma a vendedora Doralice de Moraes Brito, que mora no bairro do Tatuapé, na zona leste, e trabalha na Lapa, na região oeste da cidade. Para chegar mais rápido de um ponto ao outro, ela toma aquela via expressa todos os dias. “Aqui nada se salva. É um lugar que dá medo, de tão horrível. Eu me sinto aliviada quando o trajeto termina e posso cair fora dela.” Para muitos, a Marginal é também sinônimo de aridez. “Como usuário não eventual da avenida, eu ficaria cheio de alegria se pudesse transitar por um corredor cercado de natureza”, diz o economista e professor universitário Marcus Eduardo de Oliveira.

Os habitantes da cidade de São Paulo jamais deixaram de se queixar devido ao estado lastimável e degradante em que se encontra o rio Tietê e de clamar por mais verde para o extenso espaço ocupado pela Marginal. Não faltaram nos últimos anos atos de protesto, entre criativos e inusitados, contra uma situação vista por toda a Pauliceia como insustentável. Em 2008, por exemplo, o artista plástico Eduardo Srur, conhecido por suas instalações e performances bizarras, pendurou sobre o trecho do rio Tietê entre as pontes do Limão e da Casa Verde (considerado uma espécie de “centro geográfico” da Marginal) gigantescas garrafas PET iluminadas, como uma forma de protestar contra a poluição do Tietê.

Dois anos depois, os canteiros da Marginal seriam tomados por centenas de pessoas em trajes de banho, com guarda-sóis, cadeiras e esteiras, entre as pontes das Bandeiras e Cruzeiro do Sul, não muito longe do lugar anteriormente ocupado pelas manifestações de Srur. Até a torcida do Corinthians, a maior da cidade, já fez das suas contra a situação da Marginal. Ainda em 2008, torcedores do time do Parque São Jorge fecharam por mais de uma hora a pista local da Marginal, próximo ao Tatuapé, na zona leste, para mostrar o amor pelo clube e sua ira contra o péssimo estado da via expressa e do rio.

O protesto mais recente foi feito este ano pelo artista plástico Alexandre Casagrande. Com uma típica manifestação de arte urbana, ele desenhou nas margens do rio várias espécies de animais que já habitaram ali. O objetivo da intervenção foi despertar o olhar e a percepção das pessoas que trafegam diariamente pelas vias, a fim de lembrá-las de que o rio já foi vivo e exuberante e atraía uma fauna diversa.

Risco para motoboys

Afora a imundície do rio Tietê, também é motivo de reclamações a lentidão do trânsito nas horas de pico, de manhã e à tarde, em que as filas de veículos que se formam na Marginal podem superar 15 quilômetros de extensão. E quando suas pistas param, os reflexos do congestionamento podem se espalhar por grandes áreas (já houve situações, especialmente quando o Parque Anhembi recebe exposições que atraem multidões, em que o trânsito da parte central da cidade se viu refém da Marginal).

Como num vilarejo inchado, na metrópole dos paulistas as avenidas que conduzem aos bairros nascem quase todas na região central, com as Marginais servindo como rotas de fuga. É um absurdo urbanístico para uma cidade que claramente optou pelo transporte individual em detrimento do público. São Paulo é uma das metrópoles onde o descasamento entre os sistemas de trânsito e de transporte é mais flagrante. É como se uma coisa tivesse de funcionar desvinculada da outra.

Por essas e outras, a Marginal carrega um fardo pesado demais para seu porte, sem contar que é ainda obrigada a atender gente de fora, além dos moradores da capital e das cidades-satélites. É a via paulistana preferida dos caminhoneiros de todo o Brasil, desejosos de atravessar a cidade ou passar de uma estrada para outra. Além de maior polo industrial e de serviços, São Paulo é ainda o principal entroncamento rodoviário do país, concentrando em seu perímetro metropolitano o ponto inicial de uma dezena de grandes rodovias, como a Anchieta, a Anhanguera, a Bandeirantes, a Castello Branco, a Dutra, a Fernão Dias, a Imigrantes, a Ayrton Senna, a Raposo Tavares e a Régis Bittencourt.

Mesmo depois da implantação de boa parte do Rodoanel Mário Covas (SP-21), a Marginal continua atraindo veículos pesados, que ingressam nela com o propósito, por exemplo, de alcançar as rodovias que partem na direção do interior ou de outros estados. Com aproximadamente 180 quilômetros, duas pistas e seis faixas de rodagem, o Rodoanel é fruto da tentativa governamental de desafogar o intenso tráfego de caminhões nas marginais Pinheiros e Tietê. Embora, atualmente, os caminhões estejam proibidos de circular por elas nos horários de pico, todos os dias pelo menos 75 mil deles conseguem transitar por essas duas vias expressas.

É um cenário que estimula toda sorte de irregularidades. A Marginal Tietê é a campeã em multas de São Paulo, com o registro de 530.896 infrações em 2012, uma por minuto – o que faz dessa via uma das mais perigosas do Brasil (muitos especialistas argumentam que, nesse aspecto, a Marginal Pinheiros só está numericamente à frente por ter um trânsito que flui melhor). As “cortadas”, ultrapassagens, arrancadas e freadas bruscas com as quais os motoristas reagem ao volumoso fluxo tipo “anda-e-para” são responsáveis, na Marginal Tietê, por um verdadeiro massacre de motociclistas (só no ano passado 23 deles morreram ali). “Já perdi dois colegas em acidentes na Marginal Tietê”, conta o motoboy Edson Luiz Bernardo, dizendo que ele mesmo quase morreu em igual circunstância: “Um carro bateu na traseira da minha moto, bambeei, mas não caí. Se não tivesse conseguido me equilibrar, algum caminhão teria passado por cima de mim. Hoje, procuro evitar aquele caminho”.

A falta de clareza dos sinais de trânsito é outra causa de acidentes. Repleta de pontes, entradas, saídas e passagens para mudança de pista, a Marginal é uma espécie de Babel das placas: elas são tantas e às vezes tão sobrepostas ou mal localizadas que acabam mais confundindo que orientando. “Não vou esquecer a noite em que passava pela Marginal a caminho de minha formatura e errei o caminho por conta justamente da sinalização confusa”, relata Fátima Tornelli, advogada e funcionária pública. Ela conta que, perdida, acabou dentro de uma favela enorme na zona leste, já desativada. “Para mim, a Marginal é outro planeta ainda a ser explorado, mas, sinceramente, não tenho vontade de fazer novas incursões por lá.”

O poder público, tanto o estadual quanto o municipal, não está indiferente ao que acontece ali. Projetos de ampliação das vias e melhoramentos na engenharia de tráfego são desenvolvidos quase ininterruptamente, embora com resultados sempre temporários – com o tempo, tudo volta a ficar mais ou menos como antes, já que os novos traçados acabam, inevitavelmente, por atrair mais motoristas (a média diária saltou de 350 mil para 385 mil veículos semanais depois da inauguração da última leva de novas pistas, em 2010). E os esforços para melhorar a fluidez e o aspecto do Tietê, com caríssimas obras de limpeza e de aprofundamento da calha, tampouco apresentam resultados satisfatórios. O rio continua imundo e vazando para o entorno.

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e o prefeito paulistano, Fernando Haddad (PT), apresentaram, no início deste ano, novos planos para revitalizar a área. Para lá de ambiciosos em termos de trânsito e melhoria urbanística, os projetos têm objetivos comuns: otimizar a organização e a fluidez do tráfego por meio de grandes intervenções no complexo viário e nas margens do rio.

É esperar para ver. Os paulistanos parecem não estar acreditando muito em mudanças, haja vista a pouquíssima repercussão que ambos os planos obtiveram. É claro, porém, que algo precisa ser feito, especialmente porque a situação do trânsito naquela região tende a piorar. De alguns anos para cá, a cidade de São Paulo vem recebendo uma média de mil novos carros por dia, graças ao aumento do poder aquisitivo da população e à redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) definida por Brasília, e muitos desses veículos vão parar justamente na Marginal Tietê. As perspectivas não são animadoras.