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Sem Pressa
Quando a pesquisadora naturalista Cênia Salles assumiu a liderança do movimento slow food em São Paulo, em 2008, era comum as pessoas acharem que a campanha era para motivar a comer devagar. “A partir daí percebemos que nosso maior desafio era mostrar que nossa mensagem é comer o que é bom gastronomicamente, limpo ambientalmente e justo socialmente”, explica Cênia, que há mais de 30 anos atua como consultora na área de gastronomia, priorizando a cozinha natural e vegetariana.
Baseada no conceito de que o bom se refere à qualidade e ao gosto dos alimentos, o limpo, a métodos de produção que respeitam o ambiente, e o justo, à dignidade e à remuneração dos produtores e ao preço cobrado dos consumidores, a filosofia prega o resgate do sabor e da convivência e a aproximação das pessoas por meio do alimento.
Prega ainda o retorno à cozinha, ao momento de sentar-se à mesa com a família e amigos queridos, fazer do ato de comer uma pausa que faz bem ao corpo e à alma. “Houve um distan ciamento imenso do alimento. Antes, falava-se ‘nada como a queijadinha da minha mãe’ ou ‘esse merengue lembra o da minha tia’. As pessoas estão perdendo o lado sensorial gastronômico e a memória gustativa. O resultado já está sendo muito prejudicial para a saúde física e mental”, defende Cênia.
No entanto, para a especialista em alimentação orgânica, as pessoas, de alguma forma, já percebem que estão comendo mal. A conscientização é crescente. E isso já é um bom começo. Mas, para rever os hábitos alimentares, precisam fazer questionamentos internos, e, depois, escolhas. “O ponto de partida é parar e perguntar para si mesmo: ‘O que eu estou engolindo? Isso está me fazendo bem? Realmente me dá prazer? É isso o que eu quero dar para os meus filhos?”, sugere. Esses questionamentos tornam o comer um momento de reflexão sobre como o alimento pode interferir positivamente na saúde mental e física.
De acordo com o slow food, para qualquer ação na vida é preciso investir tempo e dinheiro. E a alimentação boa, justa e limpa está incluída nessas opções. “Se as pessoas se organizarem dá tempo de parar tudo, nem que seja só nas horas das refeições, para comer bem. Hoje, as mães não passam mais tempo na cozinha, e as crianças acham que a galinha vem da caixinha do supermercado. Os pais falam que não têm tempo, mas depois passam longas horas com os filhos nos médicos porque suas crianças perderam a energia, estão com sobrepeso ou com colesterol alto, agressivas, com insônia”, avalia a especialista.
Apesar de ser ainda uma semente na cabeça dos brasileiros, o slow food ganha cada vez mais adeptos entre produtores, restaurantes e consumidores. O movimento faz campanhas para proteger alimentos tradicionais, organiza degustações e palestras, encoraja os chefs a usar alimentos regionais, indica produtores para parti¬cipar em eventos internacionais e leva a educação do gosto às escolas. “E, o mais importante: cultiva o gosto ao prazer e à qualidade de vida no dia a dia. Nós temos feito um amplo diálogo entre toda a teia, que envolve cozinheiros, acadêmicos e pesquisadores”, conta.
Nas oficinas e encontros, a comida é o tema central para a reflexão sobre assuntos atuais como mudanças climáticas, sustentabilidade e energia limpa. O incentivo parte de uma avaliação da riqueza natural e da diversidade de produtos brasileiros para que a população compre frutas, legumes e verduras da região e da época.
“Se a gente consumir o que é local e da estação vamos economizar água, transporte, energia, e, assim, poluir menos. Somos ricos em variedade e não valorizamos. Dói quando vejo mães colocando coca-cola na mamadeira e adolescentes que nunca comeram jabuticaba. O slow food incentiva a mesa colorida dentro das casas, o resgate das receitas familiares, a aproximação com a natureza
nas horas livres. O primeiro desafio é a consciência da escolha. Se a gente se organizar, dá certo”, aposta.
Nacionalismo gastronômico
Outra frente de trabalho do slow food no Brasil é a agricultura familiar. No Rio de Janeiro, o Instituto Maniva, ONG idealizada pela chef Teresa Corção, presta assessoria gastronômica e promove divulgação e comercialização justa de produtos tradicionais da agricultura familiar para restaurantes e chefs de cozinha dos centros urbanos próximos. Um exemplo que ela gosta de citar é a produção de farinha de Bragança, em Belém do Pará.
O produto é usado como elo de integração entre jovens, crianças, cozinheiros, pequenos produtores e consumidores, abrangendo todo o percurso do alimento. “Conseguimos, além de estimular a produção e consumo de um produto saudável, unir e integrar a família. O netinho vê o avô fazendo virar arte o produto que veio da terra e que ainda vai trazer dinheiro para casa”, resume.
O projeto social estimula a produção do paneiro (cesto artesanal utilizado como embalagem da farinha). Ele é tradicionalmente forrado de folha fina para protegê-lo das intempéries, impurezas e umidade, maneira herdada da cultura indígena para embalar seus produtos. Assim, o alimento fortalece a tradição e a cultura dentro da família brasileira.
Atualmente, o Maniva promove oficinas de paneiro na região. “Percebemos nesse trabalho a promoção de diferentes efeitos nas pessoas envolvidas, mas o principal é o interesse maior pela culinária brasileira, um encontro com nossa identidade gastronômica. Existem hoje em dia vários projetos que capacitam e outros que trabalham cultura, arte, auto-estima.
O nosso faz as duas coisas. Nosso diferencial é promover o encontro entre as duas pontas por meio de um nacionalismo culinário”, explica Teresa. Outra ferramenta de utilização da gastronomia brasileira como transformação social e ambiental é a usada pelo Ecochef: cursos de culinária e gastronomia brasileira para alunos do ensino médio no Rio de Janeiro, com idade entre 16 e 20 anos. As aulas são ministradas pelos Ecochefs, chefs associados ao Maniva. A proposta é oferecer aos jovens a oportunidade de vivenciar a prática da profissão de cozinheiro, articulando saberes técnicos e culturais, ligados à identidade gastronômica brasileira.
Na ação, a mandioca é usada como instrumento de união entre jovens, crianças, cozinheiros, produtores da agricultura familiar e consumidores. “Usamos a mandioca e seus derivados como o fio condutor das atividades, pois a raiz é encontrada em todo o Brasil e estabelece uma identidade alimentar. A iniciativa é o primeiro passo para a construção de uma proposta pedagógica com foco na valorização das tradições culinárias regionais”, conclui a chef.
Chefs de cozinha
No slow food os chefs de cozinha têm um papel fundamental. Eles formam uma articulada comunidade alimentar que transforma alimentos de qualidade de forma susten¬tável e está fortemente ligada ao território do ponto de vista histórico, social e cultural. “Nosso objetivo é encontrar saídas para servir sem trazer à mesa os problemas originados pela agricultura intensiva, que lesa os recursos naturais, e trazidos pela indústria alimentar de massa, que busca a padronização de gostos e põe em risco a própria existência das pequenas produções”, explica o chef Eduardo Elias Farah, dono do bistrô sustentável Anna Prem. O restaurante foi idealizado para unir sabor e saúde de forma acessível, oferecendo alimentação saudável, natural, saborosa, e sustentável.
“Sempre acreditei que valorizar a produção local faz bem para o corpo e para o meio ambiente. E consegui aplicar esses valores na alimentação sustentável, que é uma nova linha da gastronomia que utiliza alimentos que causam menos impactos ambientais, dando importância a produtos orgânicos e frescos. A intenção é muito importante na comida. Comida é amor, e amor é bem-estar”, reflete Farah, que também é professor de ética e responsabilidade social na Fundação Getulio Vargas.
Na visão do slow food, o impacto significativo nas pessoas ocorre quando as pequenas ações locais são acumuladas e multiplicadas. Cada representante do método tenta germinar essa idéia, que envolve também a questão emocional. “Tudo o que se come tem impacto na nossa saúde mental, interfere nos nossos sentimentos e no meio ambiente. Afinal, a gente aprende a receber carinho pela comida, a gente usa a comida muitas vezes para amor tecer situações, para tapar buracos. Ela funciona como um amuleto, e, se conseguirmos comer bem, conseguiremos nos sentir melhor”, avalia o especialista.
Existe ainda outra linha do slow food que associa a comida à realização pessoal, que dá tons mais lúdicos e de experimentação no prazer de cozinhar e comer. Nessa tendência, a naturalista Cláudia Nunes de Mattos aplicou em seu restaurante, o Espaço Zym, uma comunicação por meio da alimentação que desenvolve processos terapêuticos vendo o homem como ser integral, visando harmonia entre mente, corpo e espírito. “Contamos com uma equipe multidisciplinar com especialização nas áreas terapêuticas, culturais e pedagógicas, preparada para orientar a todos na busca da sua evolução. Os cardápios saudáveis já são uma forma de transmitir nossa filosofia em um ambiente tranquilo, de contato com a natureza”, explica.
Assim, na corrente da organização slow food aos poucos a alimentação sustentável ganha força em todo o país. “Nosso objetivo é unificar o prazer da alimentação com a responsabilidade ambiental e social. Comer bem agora pode ser considerado uma arte que associa não só o paladar, mas também a cultura”, conclui Cláudia, que em um clima de descontração e estímulo sensorial procura conduzir seus clientes à sintonia com a delicada e harmoniosa arte da culinária.
Movimento slow food está presente em 153 países
Associação internacional sem fins lucrativos fundada pelo jornalista Carlo Petrini, na Itália, em 1989. Em 20 anos de atuação, a filosofia “bom, limpo e justo” está presente em cerca de 153 países e tem mais de 100 mil membros. Baseado no conceito de ecogastronomia, o slow food defende a valorização das tradições culinárias, o fortalecimento dos mercados locais, o consumo como parte da cadeia produtiva alimentar, a redescoberta da origem dos alimentos, o sabor e o prazer à mesa.
O Brasil participa há 10 anos do movimento, com cerca de mil associados que são organizados em grupos regionais. Esses núcleos realizam atividades como degustações, programas culturais, workshops de educação do gosto e visitas a produtores, além de promover engajamento em projetos ecogastronômicos. Trata-se de estabelecer um elo entre o campo e a mesa, o homem rural e o comensal urbano.
Terra Madre
O Terra Madre é um projeto concebido pelo slow food, que tem atualmente o seu ponto focal na convicção que “comer é um ato agrícola e produzir é um ato gastronômico”.
A rede global Terra Madre foi lançada no ano de 2004 para articular agricultores, produtores artesanais, acadêmicos, chefs de cozinha, jovens e consumidores. A proposta é discutir sistemas de produção alimentar e reforçar a economia local através da cadeia de valor da alimentação.
O objetivo é continuar a ter terras férteis, onde germinem e cresçam plantas e animais adaptados às particularidades de cada ambiente, sem a utilização de substâncias químicas que os fazem produzir ou engordar artificialmente. Outra intenção é continuar a ter pessoas que protejam as terras, saberes e alimentos que têm o gosto original. A cada dois anos, a rede se encontra em Turim, na Itália, para um rico intercâmbio cultural e alimentar. A comida é o tema central para refletir sobre temas atuais como mudanças climáticas, sustentabilidade e energia limpa. O próximo encontro internacional acontece entre 21 e 25 de outubro de 2010.