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Uma vida para si na velhice feminina: uma abordagem sobre individualização entre mulheres idosas

Introdução:

Algumas pesquisas na cidade de João Pessoa/PB, especialmente a que investigou os usos da Praça da Paz, principal praça localizada no bairro de Bancários – na zona sul da cidade –, pelos diversos frequentadores daquele espaço, revelaram que algumas mulheres idosas ali residentes se contrapunham, de alguma forma, aos tradicionais papéis femininos (mães, avós, donas de casa) em tempo integral. E incentivavam umas às outras, em caminhadas e encontros na praça, nas conversas nos jardins dos condomínios, nas reuniões das igrejas, nas calçadas e nas portas de suas casas, a estabelecerem estratégias cotidianas para “cuidarem de si mesmas”, para “separarem um tempo para si” e “para parar de viver exclusivamente em função dos outros”. Tais observações motivaram uma nova pesquisa que vem sendo desenvolvida no doutorado em Sociologia na UFPB, a partir da qual se extraiu este trabalho.

Na leitura de estudos que tratam sobre questões da individualização entre mulheres, são as mais jovens ou as de “meia-idade” as mais abordadas (BECK & BECK-GERNSHEIM, 2003). Tais perspectivas contribuíram para a formulação dos questionamentos: Esses processos se encerram com o avanço da idade entre as mulheres? O que as idosas residentes em Bancários e pertencentes aos segmentos médios têm a dizer sobre o fenômeno da individualização?

O objetivo central deste trabalho é refletir sobre os processos femininos de individualização presentes nas vivências de mulheres idosas pertencentes aos segmentos médios da cidade de João Pessoa, a partir da abordagem sobre as transformações no curso da vida contemporânea e da análise das práticas relacionadas com a velhice feminina. Pretende-se ainda neste texto revelar a velhice como um período de construção de si mesmo. Para tanto, foram tomadas como objeto de investigação as experiências e práticas do cotidiano de mulheres com idade acima de 60 anos.

A metodologia empregada no levantamento dos dados foi fundamentalmente qualitativa. Os elementos empíricos utilizados neste trabalho são provenientes de observações diretas (MAGNANI, 2002), entrevistas semiestruturadas e relatos de trajetórias de vida, nos moldes de Bertaux (1997). Para quem a narrativa de vida é um testemunho sobre a experiência vivida, mas é um testemunho orientado pela intenção de conhecimento do pesquisador que a recolhe e a filtra, mediante a temática explorada pela pesquisa.
Muito embora na pesquisa tenhamos contado até o momento com 13 senhoras, neste trabalho foram selecionadas três delas, cujas narrativas foram consideradas bastante significativas para as reflexões a serem desenvolvidas.

Compreendendo que a idade cronológica é insuficiente para “enquadrar” as pessoas numa determinada fase da vida, pois variam histórica e culturalmente, utilizou-se o critério etário para seleção tão somente inicial das mulheres participantes da pesquisa. Outros critérios ainda foram considerados, como a experiência da aposentadoria, de ter filhos adultos e de ser avó. Foram selecionadas ao todo 16 mulheres com idades entre 60 e 70 anos. Essa seleção também levou em consideração dois outros
condicionantes. O primeiro diz respeito ao próprio processo de pesquisa, pois este grupo etário se mostrou mais acessível em participar do processo.

O segundo relaciona-se com as questões de autonomia das mulheres em relação à família; neste grupo as mulheres demonstraram
maior autonomia física e psicológica em relação aos familiares. O último critério de seleção para a constituição do grupo de interlocutoras relacionou-se com as condições de pertencimento aos segmentos médios. As redes de sociabilidade foram
também consideradas, uma vez que indivíduos que compartilham a mesma rede de sociabilidade tendem a ter origens sociais semelhantes ou compartilharem alguma característica em comum.

As noções de posição de classe foram inspiradas em Bourdieu (2001), em suas análises sobre o contexto da complexidade da vida urbana. As considerações de Velho (2008), conhecido estudioso dos segmentos médios no Brasil, também foram relevantes para caracterizar esses segmentos e assim mais bem classificar as mulheres envolvidas na pesquisa. Apesar de ter agrupado as mulheres num mesmo segmento, também é possível observar entre elas algumas heterogeneidades; a esse respeito posso elencar: a variedade das identidades religiosas, suas diferentes condições conjugais, diferentes estruturas familiares e condições
de sociabilidade.

Em campo buscou-se compreender as vivências, as práticas do dia a dia das mulheres, distinguir entre aquelas que faziam por prazer e aquelas que realizavam por obrigação. Saber quem eram as pessoas mais presentes em suas vidas, saber quem eram seus “outros significativos” (SINGLY, 2000).

Por uma vida própria: construindo uma abordagem sobre a velhice e os processos de individualização femininos

A temática da individualização se configura como um viés analítico necessário à discussão da vida nas sociedades complexas moderno-contemporâneas, como atestaram os clássicos da Sociologia e autores mais contemporâneos, como Giddens (2002) e Ulrich Beck (2010). Esses autores trabalham a individualização tendo como pano de fundo a sociedade da alta modernidade, a sociedade do risco. Para Beck e Beck-Gernsheim (2003), tal temática é considerada a chave para a compreensão da sociedade
contemporânea, pois ela descreve a relação fundamental: indivíduo e sociedade na atualidade. Segundo Beck (2010), essa relação atualmente repousa sob um sistema de valores no qual desponta uma nova ética, baseada nos princípios dos deveres para consigo mesmo. Isso, segundo este autor, representa um contraponto fundamental com a “ética tradicional” – segundo a qual as mulheres deste estudo foram socializadas nas fases anteriores de suas vidas –, cujos deveres expressavam uma lógica eminentemente social com vistas à harmonização do indivíduo com o todo.

Atualmente, segundo Beck e Beck-Gernsheim (2003), vivencia-se globalmente “a ética da realização pessoal”. Como as mulheres idosas deste estudo se relacionam com essa nova ética em suas vidas cotidianas, como ela se inclui na sociedade brasileira, e mais especificamente no grupo de idosas, tendo em vista seu conhecido caráter relacional, tão bem discutido por Roberto Damatta (1991), são algumas das questões centrais deste trabalho.

Individualização: uma leitura moderno-contemporânea a partir das vivências das idosas de Bancários em João Pessoa

A discussão que se coloca como pano de fundo em torno da questão da individualização neste trabalho refere-se a velha relação, entre “indivíduo” e “sociedade”. Reconhecidamente como uma relação fundamental da Sociologia, desde Durkheim, passando por Elias, que anuncia essa relação em termos de reciprocidade, até os autores mais contemporâneos, como Ulrich Beck, segundo o qual uma nova imediação entre indivíduo e sociedade se faz presente na atualidade, trata-se da imediação do risco.

O trabalho de Gilberto Velho (2008) traz contribuições fundamentais para a questão da individualização tratada neste estudo, uma vez que a ênfase de análise sobre a individualização na velhice feminina aqui desenvolvida se dá fundamentalmente em contraponto com as relações familiares das mulheres pesquisadas.
A tensão entre individualização e a inserção familiar surgiu como elemento marcante nos relatos das trajetórias de vida das mulheres participantes da pesquisa. O tom discursivo de suas narrativas indicou, em graus variados, segundo as particularidades de suas trajetórias, suas representações e as especificidades de suas famílias, a prevalência dos significados atribuídos ao indivíduo como ser ímpar, autônomo e independente, e a reflexividade como uma constante observação de si e de seu lugar nas relações sociais.

Essa perspectiva pode ser observada nos relatos de dona Ana, uma das senhoras selecionadas, quando ela chama atenção para as transformações em suas relações familiares, ocorridas especialmente por meio da mudança que empreendeu em seu modo de vida desde quando passou a morar em Bancários. A convivência com outras mulheres de sua geração, ali residentes, a possibilidade de participar de atividades significativas para ela, como caminhar na praça, fazer exercícios físicos, ir às reuniões da igreja, encontrar com as amigas, passear e viajar com o grupo de idosos da comunidade, enfim, manter relações extrafamiliares se apresentou, segundo ela, como um dos elementos-chave desse processo de transformação.

Dona Ana: Em relação aos meus filhos eu ficava presa a eles e tinha que levantar cedo, fazer almoço, passava o dia todo em casa, lavando roupa e etc., sempre moraram comigo, depois que o pai deles morreu, o mais novo dormia comigo. Aí, quando a gente veio
pra cá e eu comecei a sair com minhas amigas... na comunidade, tem um bocado de gente que é advogada, dentista, psicóloga,  pessoas que têm compreensão das coisas, até o médico mesmo quando eu vou ele diz: Deixa esse filho! Ele já está velho! Eu fui me abrindo, largando aqui em casa, hoje quando ele chega, ele mesmo vai no fogão frita um ovo, passa manteiga no pão e come, e vai dormir sem falar nada, porque antes eu me levantava, e ia preparar tudo pra ele. Agora todo mundo ajuda aqui, as coisas não são  como antigamente mais, não, agora todo mundo ajuda! Porque eu achava que tinha que fazer tudo em casa, sozinha. Eu abria mão da minha vida pra fazer tudo pra meus filhos e olhe que muitas vezes ninguém reconhece, hoje não, eu faço primeiro minhas coisas, depois o tempo que sobra eu cuido das coisas de casa e deles.

O trecho acima corrobora com as discussões de Singly (2001), para quem na atualidade a relação entre pais e filhos passa a ser baseada cada vez mais na negociação. A educação familiar se transformou, no sentido da depreciação da obediência e da  valorização da iniciativa, da criatividade, da autonomia, e da satisfação pessoal de cada membro da família. Ainda de acordo com Singly (2001), a existência do indivíduo contemporâneo depende do apoio dos seus outros significativos, que podem ser o cônjuge, os filhos, familiares, amigos, vizinhos, entre outros. O processo de individualização na compreensão deste estudioso não se refere a um processo de isolamento do indivíduo, ou da eliminação das relações sociais.

O indivíduo individualizado “não é um indivíduo desligado de todos os elos e do social” (SINGLY, 2007, p. 11). Como bem se observou no caso das idosas investigadas. E como se pode verificar na fala da senhora a seguir.

Dona Ana: Hoje eu sou outra pessoa, eu era muito tímida! Com minhas amigas aprendi a ser mais solta. Eu tinha medo de falar, tinha medo de errar, tinha medo de muita coisa, mas agora não, eu enfrento meus medos, aliás quem é que não tem medo? Eu aprendi muito com minhas amigas, e acho que ensinei muita coisa a elas também. (...) Hoje eu sinto que sou até mais respeitada em casa, porque eu tenho o que dizer pra eles, eu tenho minhas opiniões, eu tenho espaço de dizer o que eu penso, porque antes eu tinha medo de contrariar as pessoas, de causar problema em casa, agora não, tudo é na base da conversa, e eu sempre digo o que eu acho. Olha, não vamos fazer assim, vamos fazer desse outro jeito, porque eu conheço uma pessoa que fez assim e deu certo. Então eles agora olham pra mim como uma pessoa útil, como uma pessoa que tem ideias, que anda, que conhece gente, que tem amigos. (...) Depois que eu vim pra cá, pra Bancários, foi que eu comecei a viver, a desfrutar as coisas boas da vida. A ter minha liberdade. Quando eu tinha marido, não tinha liberdade, quando eu tinha filho e neto pequeno, não tinha liberdade, quando eu vivia dentro de casa, lá no Bessa mesmo, também não tinha, agora é que eu estou tendo, vivo pra mim, pra fazer o que gosto, saio, vou pra onde eu quero, tenho companhia, tenho amigas que gostam das mesmas coisas que eu gosto, que já viveram muito assim como eu, que me entendem. Foi aqui que minha vida mudou da água pro vinho.

As novas interações sociais de dona Ana permitiram que ela tivesse seus “outros significativos” aumentados. Isso repercutiu em seu modo de ser, e de se comportar. Tendo sido socializada, e habituada às regras de comportamentos tradicionais – a partir das quais caberia às mulheres o saber cozinhar, costurar, cuidar da casa e ter boas maneiras –, dona Ana demonstra ter investido na adoção de novos hábitos cujos espaços de atuação não se reduzem tão somente ao ambiente doméstico. Tais hábitos desenvolvidos por seu grupo de amigas e por ela em Bancários muito se aproximam daqueles descritos por Scott (2006), quando ele discute a
inversão de gênero – homens de casa, mulheres da rua – entre os idosos pertencentes às camadas populares de Recife/PE.

As experiências no bairro de Bancários são mencionadas inúmeras vezes nos relatos de dona Ana como eventos transformadores de sua vida. “Maior sensação de liberdade e de prazer em viver” são os elementos fundamentais dessa nova fase, segundo ela. Tais elementos puderam se desenvolver mediante suas condições particulares, a saber: condição de saúde, filhos e netos crescidos, a solteirice, estabilidade financeira. Mas ao mesmo tempo encontrou um campo propício, as sociabilidades do bairro.

Tais transformações no modo de viver, e no modo de ser atual de dona Ana: “ser menos tímida”, “mais solta”, “enfrentar medos”, podem ser compreendidas como um processo de construção de si. O que ratifica a ideia de que a afirmação de si é um processo infindável, também realizável na velhice. Esse processo, no caso de dona Ana, resulta das múltiplas relações de interdependência, das relações afetivas e pessoais, por ela empreendidas, com seus “outros significativos”, especialmente suas amigas da comunidade (PEIXOTO, SINGLY E CICCHELLI, 2000).

O último trecho da fala de dona Ana acima inserido traz a tônica do desenvolvimento de uma vida para si. De uma vida voltada para a satisfação própria. O que neste trabalho corresponde a uma dimensão do processo de individualização. A experiência de vida de dona Ana foi marcada especialmente por uma vida voltada para a família: após ter se casado, sua vida se concentrou nos cuidados com o esposo e filhos e em seguida com os netos. O tempo agora lhe aparece como outra possibilidade: a de também viver para si. No entanto essa vida para si não se separa de uma vida social, não diz respeito a uma vida de isolamento, antes ela se realiza no meio social, na família e no grupo de amigas da mesma idade, daquelas que com ela compartilham os mesmos interesses e gostos.

A satisfação pessoal se dá no compartilhar mais ampliado de experiências e de práticas do cotidiano. Ficou evidente que essa tendência de individualização entre as idosas não eliminou, no entanto, a importância do espaço familiar, do espaço relacional (DAMATTA, 1991), ainda forte no Brasil. Ante os interesses em manter a união familiar, a felicidade e a realização de todos  demonstrou-se uma preocupação fundamental, centrada agora na negociação, no mútuo respeito e não mais na renúncia dos próprios desejos, como  apontaram algumas das mulheres na pesquisa.

Dona Rosa: "Minha vida toda eu abri mão de muita coisa, quando a gente é mãe é assim. É uma roupa que você deixa de comprar pra você pra poder a filha andar arrumada. É uma viagem que você deixa de ir porque seu marido não gosta de sair pra lugar nenhum. É uma faculdade que você não frequenta porque, naquele tempo, lugar de mulher era em casa, mulher que fosse pra faculdade ia pra vadiar. Já abri mão de muita coisa, pros meus filhos, e ainda abro. Agora menos. Pronto, agora mesmo eu vou ajeitar minha casa, vou fazer uma reforma. Organizar meu quarto, que eu quero fazer tudo projetado, aí Júnior ligou dizendo que estava precisando de dinheiro para regularizar a documentação dele nos Estados Unidos, 15 mil. Se fosse antes eu tinha mandado o dinheiro todo, fazia empréstimo, o que fosse e mandava, mas o que foi que eu fiz?
Mandei 5 mil, ele deu entrada lá no que era de início, prometi a ele mandar mais 2 mil no final do ano, quando eu receber o  décimo, e o resto eu disse a ele que se virasse. Ajudei a ele no que eu podia, porque mais do que isso eu não podia, já tinha me programado com as coisas daqui de casa, e ele também tem que ter a responsabilidade dele. Não foi ele quem quis ir morar lá? Ele sabe que eu tenho meus compromissos, minhas viagens que eu faço sempre, então ele entende também. Às vezes eu fico preocupada, aí eu fico: “Meu Deus será que Júnior tá passando aperreio lá?”. Depois eu fico: “Não ele tá bem, tá trabalhando, ele já é adulto, ele se vira”.

Algumas questões na fala de dona Rosa remetem às proposições de Beck e Beck-Gernsheim (2003), quando eles trabalham a  temática da individualização tendo como pano de fundo a ambiência cultural da alta modernidade, a sociedade do risco. Segundo Beck (2010), a relação indivíduo/sociedade atualmente repousa sob um sistema de valores no qual desponta uma nova ética, a ética perante o risco. Ao tratar da ida de seu filho para os Estados Unidos, ou seja, de seu afastamento do grupo familiar, dona Rosa elabora a frase: “Não foi ele quem quis ir morar lá?”. Deixando claro sua ideia de que ele mesmo tinha de se autogerenciar e autoprover, já que fizera uma escolha própria.

A ideia de dona Rosa sobre a responsabilidade do filho para com ele mesmo e se aproxima daquilo que Beck (2010) chama de ética perante o risco, uma ética baseada na  ideia dos deveres para consigo mesmo. Mas, em contrapartida, ela também demonstra alguns cuidados, preocupações e desejos em torno do filho que mais se aproximam da ética tradicional, aquela cujos deveres expressam uma lógica eminentemente social com vistas à harmonização do indivíduo com o todo, com a família. A partir dessa discussão fica evidente que, apesar da disseminação dos ideários individualistas no Brasil, especialmente nos espaços urbanos, ainda é possível se observar, mesmo nos grupos mais individualizados, como os segmentos médios (Velho , 2008), elementos que comprovam a permanência de aspectos próprios do caráter relacional da sociedade brasileira (Damatta , 1991).

“Viver uma vida própria” é uma expressão fundamental na compreensão da noção de individualização em Beck e Beck-Gernsheim (2003), e essencial na discussão deste trabalho. Hoje, as mulheres têm alcançado cada vez mais espaço na concretização de objetivos próprios, têm tido expectativas de vida para além da esfera familiar. Apesar do que continua sendo delas a maior carga das tarefas familiares.

A análise, assim, sobre individualização nestes autores traz em seu bojo a investigação da passagem de “viver uma vida para os demais” às grandes ou pequenas expectativas de “uma vida própria”. E o recurso de análise utilizado por eles é essencialmente as tendências de mudanças objetivas e subjetivas da condição feminina em três âmbitos da vida social: a educação, o trabalho e as
relações afetivas. As considerações desses autores quanto às transformações na condição feminina europeia em muito se aproximaram da realidade feminina brasileira. Também no Brasil a educação e o trabalho se constituíram como propulsores dos processos de individualização entre as mulheres.

Para exemplificar isso se apresenta a narrativa de dona Vera, professora polivalente aposentada pela Prefeitura de João Pessoa. Ela nasceu numa família evangélica, muito envolvida com a vida religiosa. Seu pai era presbítero da igreja, e sua mãe uma exímia dona de casa. Dona Vera é casada com um oficial do Exército e possui três filhos casados. Sua narrativa é fortemente marcada pelo duplo papel acumulado ao longo da vida: ser mãe e profissional. Ou seja, seus relatos são marcados pela habilidade em ter conciliado uma vida profissional, construída com empenho, e a vida familiar, especialmente marcada pela ausência do esposo quando de suas transferências a outras cidades do país no serviço militar.

Dona Vera: Eu me questionava muito pelo fato de não ter acompanhado meu esposo na época que ele era transferido daqui pra outra cidade. Minha mãe dizia que lugar de esposa é junto do marido. Minha fé e os ensinamentos da palavra diziam que o homem é o cabeça da família, e que a mulher deveria ser submissa ao marido. Tudo aquilo era muito difícil pra mim. Eu fui muitas vezes apontada como rebelde, era a “ovelha rebelde”. Naquele tempo as mulheres acompanhavam os maridos, eu, no entanto, não ia. Eu tinha meu trabalho, eu era concursada, você acha que eu ia perder meu emprego? Eu ia viver dependendo dele? Eu gostava muito do que eu fazia, eu me realizava. Não, de jeito nenhum eu escolhia ficar, assumia os meninos, e continuava trabalhando. Se eu não tivesse feito isso, como eu ia estar hoje? Nem aposentadoria eu tinha. É o que eu vejo por aí, um monte de mulher dependente dos maridos, ou vivendo da pensão deles, eu não, eu sou independente.

Dona Vera registra em seus relatos escolhas individualizadas, ao privilegiar sua própria carreira profissional, ao invés de acompanhar a carreira do esposo de perto, ainda que tenha tido de assumir sozinha os cuidados com os três filhos quando crianças e adolescentes. Tal decisão confrontava-se com o modelo-padrão de mulher de sua época, aquela voltada exclusivamente à família. Dona Vera elaborou para si um novo modelo de mulher, não baseado nos referenciais tradicionais de mulher mãe e dona de casa, assim como fora sua mãe. A elaboração de uma nova biografia feminina para dona Vera articulava a ética tradicional de mulher
cuidadora da família com uma nova ética, aquela tão bem apresentada por Beck e Beck-Gernsheim (2003), “a ética da realização pessoal”. Isso lhe causou constrangimentos e questionamentos, também lhe exigiu criatividade e ousadia, para reordenar sua vivência, para elaborar sua própria biografia, tendo em vista suas próprias convicções e desejos pessoais, já que fora criada dentro de padrões religiosos tradicionais, com modelos e papéis femininos bem estabelecidos.

Considerações finais

Neste trabalho foram tomadas como objeto de análise as experiências e práticas de mulheres idosas moradoras do bairro de Bancários, situado em João Pessoa, para discutir o fenômeno da individualização na velhice feminina, na tentativa de revelar a velhice como um período de construção de si mesmo.

Como foi observado, tal fenômeno não deve ser tão somente pensado como algo exclusivo da juventude, ou da fase adulta da vida. As mulheres de Bancários adotam cotidianamente práticas a partir das quais se pode perceber a busca por realizações pessoais. O que apontou para a compreensão de que as idosas também se associam à ética da satisfação pessoal. No entanto, como ficou evidente, isso não significou que entre as mulheres o caráter relacional da sociedade brasileira tivesse sido eliminado. Antes também foram observadas entre elas práticas e representações baseadas na ética tradicional, ou seja, naquela cujos valores expressam uma lógica social com vistas à harmonização do indivíduo com o todo, com a família em especial, com os amigos,  vizinhos, entre outros.

Os elementos associados ao desenvolvimento do fenômeno da individualização na velhice feminina dizem respeito não somente às condições pessoais das mulheres idosas, como saúde, situação familiar, condições financeiras, etc., mas ligam-se especialmente aos seus projetos para essa etapa da vida. Tal fenômeno se associa à ideia da velhice como etapa última da vida, ou como etapa em que os projetos mais íntimos e ansiados por toda a vida parecem ter suas últimas chances em se concretizar.

Um dos aspectos interessantes no bairro de Bancários refere-se às sociabilidades ali empreendidas pelas idosas do bairro. A organização social de Bancários demonstrou favorecer as sociabilidades entre as idosas, seja de forma espontânea – principalmente realizadas na Praça da Paz, importante espaço integrador do bairro –, assim como por meio das relações de vizinhança, quanto por meio das práticas desenvolvidas pelas instituições religiosas do bairro, tanto aquelas eclesiásticas como os encontros de oração, de estudo bíblico, as novenas, entre outras, e também as atividades de lazer e integração como as viagens, os passeios coletivos que envolvem a comunidade religiosa idosa do bairro.

O ambiente social de Bancários estimula as mulheres a desenvolver relações extrafamiliares. E isso influencia para que elas desenvolvam uma vida não somente dedicada à família, mas tenham seus “outros significativos” ampliados. As sociabilidades em Bancários funcionam também como importante vitrina de novos estilos de vida, que se baseiam na realização dos próprios interesses ou, como diria Beck e Beck-Gernsheim (2003), na ética da realização pessoal.

Tudo isso contribui para que a velhice seja compreendida como uma etapa da vida em que a construção de si mesmo também se processa. E deixa claro que individualizar-se não implica que as pessoas não dependam de nada nem de ninguém, antes a individualização diz respeito a um processo ambíguo de socialização, um processo que valoriza a realização pessoal em meio a relações socialmente significativas.

Referências bibliográficas

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Autor: CRISTIANE LEAL R. SOARES
Mestre em Sociologia (UFPB) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFPB), e professora da Faculdade Maurício de Nassau/João Pessoa.
E-mail: Cristiane.30@hotmail.com