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“O desafio do século 21 é saber o que fazer com a maior expectativa de vida”

texto: Ana Paula de Oliveira fotos: André Spinola e Castro

Aos 65 Anos, o especialista em envelhecimento Alexandre Kalache afirma que a humanidade encontrou a fonte d a juventude no século 20, mas resta agora saber o que fazer para que o gral não se torne uma verdadeira maldição

Conquistamos o grande sonho da humanidade: a fonte da juventude. em vez de potes dourados com o líquido milagroso, o graal nos é ofertado em forma de tecnológicas cápsulas farmacêuticas, capazes de prevenir, adiar e até mesmo curar toda a sorte de doenças. conseguimos, com isso, nas últimas décadas, mais anos de vida do que toda a humanidade alcançou até meados de 1945.

E, uma vez que a grande conquista do século 20 foi somar mais de 30 anos às nossas vidas, agora o grande de- safio do século 21 é fazer com que essa bênção não se transforme em uma maldição. para isso, o médico carioca Alexandre Kalache, 65, ex-diretor dos programas de envelhecimento da OMS (organização mundial da saúde), afirma que é preciso estar acima do limiar de incapacidade bem antes de a velhice chegar, dando, assim, mais vidas aos anos, e não simplesmente mais anos à vida.

Quando aceitou, em 1994, o posto de diretor do programa da OMS – do qual ficou à frente por 14 anos –, o primeiro passo de Kalache, também fundador do departamento de EPI- demiologia do envelhecimento da London School of Hygiene and Tropical medicine e consultor sênior da Academia de medicina de nova York, foi desmembrar o conceito do departamento, que contemplava a saúde do idoso já idoso e ignorava todo o curso de vida do indivíduo. verticalizado, o programa passou a se horizontalizar, englobando departamentos de saúde infantil, da mulher, de doenças crônicas, entre outros, para reforçar a mensagem de que o envelhecimento é o resultado de todo o processo da vida.

Kalache hoje tem a idade em que seu avô morreu, diz. Sua lembrança sobre o avô é de um homem velhinho, dependente. Claro sinal de que existe uma transformação em curso, uma mudança de paradigmas e de como a sociedade trata hoje seus velhos. “Estamos reinventando as várias etapas da vida, pois estamos vivendo mais, e essa é a verdadeira revolução da longevidade.” Leia a seguir trechos da entrevista exclusiva que Kalache deu aos cadernos SESC-SP de cidadania em São Paulo, onde participou do Fórum Bradesco de Longevidade.

SESC - Como podemos definir a velhice?

Alexandre Kalache - Tem de ser definida de alguma forma concreta para que possa gerar números. A ONU [organização das nações unidas] define como velhas as pessoas com 60 anos ou mais. nos países desenvolvidos, em geral, [a idade é de] 65 ou mais, pois os indivíduos se aposentam mais tarde

Ao considerarmos as pessoas centenárias, temos quatro décadas dentro desse grupo, isto é, uma heterogeneidade imensa. segundo a definição, a vida é dividida em três tempos: o aprendizado, até os 20 e poucos anos, a produção, até os 60 anos, e o descanso, na velhice. está errado esse conceito. Antes, as pessoas chegavam aos 60 e viviam mais cinco, oito anos. Hoje, vivem muito mais. um grupo de 60 anos para cima já é um resultado de evento de vida enorme. colocar todo mundo no mesmo bojo é um dos erros quando falamos de velhice.

Qual é precisamente o conceito do envelhecimento ativo?

Quando dissecamos a definição, temos um processo de otimização para três pilares: saúde, participação e proteção. saúde, afinal todo mundo quer ser um idoso saudável, pois envelhecer com má saúde é um prêmio envenenado. não há qualidade de vida sem saúde. o segundo ponto é a participação: envelhecer com oportunidade de participar da sociedade, estudar, ir ao cinema. Quando o indivíduo não tem saúde, no entanto, não participa integralmente da sociedade, então ele precisa de um sistema para estar protegido. e a proteção é o terceiro pilar, pois o idoso precisa ter segurança para contrapor as perdas que ocorrem ao longo do envelhecimento. trouxemos um quarto ponto para o envelhecimento ativo, que é o treinamento contínuo para aprender novas habilidades, novos conhecimentos. caso contrário, aos 60 anos a pessoa estará obsoleta.

Em quais aspectos os idosos de hoje são diferentes dos do século passado?

A velhice é uma construção social e isso está mudando. Nos países desenvolvidos houve um fenômeno pós- guerra chamado “baby boom”; isto é, pessoas que nasceram entre 1946 e 1965. isso ocorreu quase que para festejar o pós-guerra: as pessoas passaram a ter mais filhos, em um período de esperança, pois estavam todos mais relaxados. À medida que esse grupo vai envelhecendo, vai também redefinindo a construção da velhice. Antes da segunda guerra, praticamente o conceito de adolescente não existia. As pessoas passavam da infância para a idade produtiva. Mais tarde, quando entram na idade jovem, os “baby boomers” redefinem a sexualidade – e isso vem paralelamente aos contraceptivos e à emancipação sexual da mulher, inclusive no trabalho e na política. Lá na frente, essa mulher está ativa na sociedade e não é mais aquela senhorinha que fica em casa cuidando dos netos.

E como foi esse cenário no Brasil?

Não tivemos o mesmo fenômeno de “baby boomers”, mas não há dúvida de que absorvemos a influência que veio de fora. nossa resposta, não só da participação do movimento universitário político, foi de ebulição social e também musical. são esses caetanos que estão envelhecendo agora, e, como sempre tiveram uma influência cultural ao longo de suas vidas, continuarão reinventando a velhice. não vou envelhecer como meu avô, nem mesmo como meu pai. hoje tenho a idade em que meu avô morreu – e ele morreu um velhinho. Eu me aposentei, me reinventei. tive amplas oportunidades de recomeçar minha atividade profissional, sempre me reinventando.

Viver mais 30 anos foi o grande ganho da humanidade?

Sem dúvida, a grande conquista do século 20 foi somar mais de 30 anos às Nossas vidas. o grande desafio do século 21 é o que fazer com esses anos. se não pensarmos seriamente no conjunto da sociedade, transformaremos essa grande conquista em um enorme problema. nesse quesito, o brasil está na contramão por ter um sistema previdenciário que é insustentável. O rombo previdenciário é imenso, maior do que o da Alemanha, que é um país muito mais envelhecido. Estamos com a política herdada do populismo dos anos fascistas, da ditadura, que queria a opinião da classe média a favor dela – e a melhor forma é dar subsídios e benesses, inchando o aparelho de funcionalismo público. não há estado tão generoso que não dê com a cabeça na parede com um sistema previdenciário como esse.

A sociedade está preparada para absorver nossos velhos?

Não, porque o envelhecimento no brasil é um processo muito mais rápido do que o que se deu nos países já envelhecidos. os países desenvolvidos primeiramente enriqueceram para de- pois envelhecer, contrariamente ao que ocorre nos subdesenvolvidos. Estamos envelhecendo em pobreza. estamos achando que somos um país rico. em recursos, rico, mas pobre do ponto de vista social. temos uma massa de 21 milhões de pessoas que já passaram dos 60 anos, desde o chefe de empresa, intelectuais, elite. Esses estão envelhecendo bem, pois têm a compressão da morbidade, ou seja, comprimem o período de ficar doente para o finzinho da vida e têm um período rápido de declínio e morrem. maravilha. Viveu bem, ativo, não ficou incapaz, cursou sua vida acima do limiar da dependência. para esses, a sociedade está dando uma oportunidade de envelhecer como nunca houve antes: quando adoecem, existem respostas tecnológicas. porém, a maioria depende do que o estado oferece – e ele oferece muito pouco.

Como a OMS lidava com o envelhecimento quando o senhor postulou o cargo?

O programa que existia era saúde do idoso: esperavam que o velhinho fizesse 65 anos para fazer alguma coisa. na entrevista para o cargo, eu disse que o programa estava errado e tinha a ênfase inadequada. o programa deveria chamar envelhecimento e saúde, falar do processo como um todo, desde criança, adolescente, jovem, até a velhice. conseguimos essa mudança de paradigmas. Depois mudei de novo o nome: envelhecimento e curso de vida, para reforçar a mensagem que o envelhecimento é o resultado de todo o processo da vida.

Como a invenção da aposentadoria interfere hoje na qualidade de vida da população com mais de 60 anos?

A aposentadoria foi regulamentada por Otto Von Bismarck [chanceler alemão] no século 19, quando a expectativa de vida era de 40 e poucos anos. poucos ultrapassavam os 60 anos, e, caso o fizessem, chegavam mal, doentes. Nesse caso, justificava a aposentadoria com 65, pois o indivíduo viveria mais dois ou três anos. no momento, na frança, existe uma comoção social contra o governo, que está “ousando” sugerir passar para 62 anos a aposentadoria, e não 60. é isso que tem que mudar. um país não será viável, sustentável, se continuar a aposentar todos aos 60 – e muitos com o benefício precocemente. É uma discussão que afetará vários espectros da sociedade, de planejamento urbano, saúde, recreação. tudo tem de ser repensado, pois temos agora essa massa de gente que está chegando aos 60 anos.

Quais os determinantes que influenciarão o envelhecimento ativo?

Desde acesso a serviços essenciais sociais, econômicos, do ambiente, pessoais, tudo influencia individual- mente, mas tudo está interligado. o econômico influencia no acesso ao serviço, a sua capacidade de participar da sociedade depende de ter transporte público, o seu comportamento depende do que você pode comprar, afinal, você sabe que comer brócolis é bom, mas pode não ter dinheiro, então compra farinha.

Quais são as diferenças no envelhecimento do homem e da mulher?

A mulher envelhece de forma diferente do homem, não só biologicamente, mas porque esperamos da mulher diferentes pontos: que procrie e eduque os filhos e que o papel de mãe seja mais ativo do que o de pai. A sociedade deveria me incentivar como homem para eu cuidar mais dos filhos, para a mulher continuar contribuindo com a renda. É do interesse do país que a mulher também contribua economicamente.

Para isso, precisamos criar mais creches, criar licença-paternidade, isto é, precisamos reinventar esses conceitos. A mulher cuida dos filhos, depois dos pais, e, quando você pensa que acabou, ainda cuida dos maridos. As mulheres continuam insistindo, apesar de viverem mais do que os homens, a casar com homens mais velhos. Deveriam casar com os mais jovens, pois assim ficariam viúvas por um tempo menor.

Atualmente, as mulheres no Brasil vivem 7,5 anos a mais do que os homens, pois há uma epidemia de morte de homens, seja por alcoolismo, acidentes, violência física do homem jovem contra o homem jovem. A cada dez homicídios, nove vitimam homens. Perde-se muito jovem, mas a expectativa de vida ao nascer reflete a mortalidade em todas as etapas a partir do nascimento. o brasileiro vive em média 74 anos. A mulher vive 87, e a expectativa média do homem não chega a 70 anos. Mesmo aos 60 anos há uma mortalidade maior do homem em relação à mulher. Em parte isso é biológico, pois as mulheres têm mais proteção contra doenças cardiovasculares, incluindo o derrame, que são as doenças que matam mais os adultos.

Isso também reflete o estilo de vida que os homens levam ao longo da vida?

Sim, o homem em geral tem uma vida mais agressiva. Desde pequenos: meninos não choram, então não falam de doença, que é sinal de fraqueza. Em geral, é a mulher que leva o marido, na marra, ao médico. Homem fica querendo brincar de máquina indestrutível.

Qual o maior medo de envelhecer?

É ficar dependente. Isso é o que apavora, é cair abaixo do limiar de capacidade. Há culturas que são mais voltadas ao cuidado dos velhos. Na África, por exemplo, os poucos que chegam à velhice são tesouros que são protegidos. A tendência da mulher africana, generalizando, é engordar e ficar sentada esperando que a família faça tudo pra ela.

Ainda maltratamos nossos velhos?

As pessoas mais deprimidas em São Paulo, de acordo com estudo há 20 anos, eram mulheres idosas que ficavam viúvas e, por falta de opção, iam morar com a filha – em geral os idosos moram com a filha –, casada e com filhos adolescentes, que infernizam a velha, que já não tem para onde ir. Não tem opção de participar das atividades da família. Ouvi uma senhora dizer que não tinha nem o direito de opinar sobre qual canal de TV gostaria de ver, que não podia levar suas amigas para tomar um chá, porque seus netos as ridicularizariam. É a realidade amarga. Todo mundo conhece um caso como esse.

Para evitar isso, o segredo é se reinventar?

Desde que você tenha recursos para tanto, sim. E não só financeiros, mas pessoais. O que vai garantir a qualidade de vida na velhice é não ter doenças, conseguir evitá-las. Além de se reinventar, é preciso ser otimista, ter auto-eficácia, auto-estima e, acima de tudo, ser resiliente.