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História pra contar

por Alberto Mawakdiye

Cresce a olhos vistos a quantidade de empresas brasileiras que contratam historiadores (ou grupos de historiadores organizados em pequenas agências) para levantar fatos de sua trajetória, de modo a permitir a montagem de centros de memória e documentação. Muitas ainda fazem desses especialistas os encarregados pela manutenção e ampliação do acervo. É um novo nicho reconhecido pelo mercado como “memória empresarial” e que abrange, igualmente, a elaboração de livros e revistas comemorativos, exposições permanentes ou pontuais, sites e outras ferramentas úteis para a preservação e divulgação de narrativas históricas empresariais, como sistemas de arquivos e informações.

Corporações dos mais variados setores da economia já investiram no desenvolvimento de projetos de memória, a exemplo de Gerdau e ArcelorMittal (ambas do ramo siderúrgico), Klabin (papel e celulose), Natura (cosméticos), Walita e Multibrás (eletrodomésticos), Sadia (alimentos), Ambev (bebidas), Droga Raia e Casas Bahia (varejo), Itaú Unibanco (setor bancário), CR Almeida (construção civil), Gol e Embraer (aviação), Rhodia (têxteis e química) e Goodyear (pneus).

O movimento na área é tão intenso que algumas megaempresas dotadas de centros de memória, a modalidade mais específica, uniram-se para criar, há dois anos, a Rede de Centros de Memória Empresarial. São 18 companhias e entidades, onde despontam – para citar apenas algumas – Rede Globo, Unilever, Bunge, Petrobras, Bosch, Votorantim, BM&FBovespa e Serviço Social do Comércio (Sesc), participantes que, na maior parte das vezes, operam através de suas fundações ou departamentos exclusivos.

Trata-se de uma rede que vive em franca atividade. Os representantes desses centros de memória empresarial promovem encontros para o desenvolvimento de estratégias e atividades com o objetivo de buscar maior reconhecimento e sensibilização das corporações para a importância do assunto. Essa rede é, por assim dizer, a vanguarda do segmento da memória empresarial no Brasil.

“Cultivar e mostrar seu passado para o público é uma das melhores maneiras de a empresa dar visibilidade a seu compromisso com a sociedade, com a história e a cultura de um país”, diz Juliana Santana, gerente de projetos da Fundação Bunge. “É um passo além nas políticas de responsabilidade social. Os centros de memória também contribuem para que as companhias fortaleçam sua identidade institucional e reforcem os elos com a coletividade e seus funcionários”, completa.

A atuação da própria Bunge, gigante do setor de alimentos e fertilizantes, é exemplar. Além de se tratar de um dos pioneiros na área, o Centro de Memória Bunge – criado em 1994 em São Paulo – contém um dos mais ricos acervos de memória empresarial do país, contando a história da indústria e do agronegócio brasileiros a partir da trajetória da própria empresa. O centro já atendeu a mais de 250 mil pessoas em 18 anos de existência, afora as exposições e jornadas culturais que costuma organizar.

Muitos dos visitantes – que incluem pesquisadores das mais variadas áreas – permanecem durante horas ali porque, afinal, há muito que ver e consultar. O acervo reúne nada menos que 1,3 mil caixas com documentos variados, mais de 600 mil imagens – de fotos em papel e diapositivos de vidro a gravuras, pinturas e mapas –, 3 mil peças audiovisuais e mais de 1,2 mil objetos que documentam a evolução dos costumes, técnicas e processos industriais, design, marketing e propaganda no setor do agronegócio. Há ainda cerca de cem horas de depoimentos de colaboradores da Bunge.

Um outro importante centro de memória empresarial pertence à Unilever, multinacional do ramo de alimentos e produtos de higiene e limpeza, que reuniu seu acervo na sede da companhia, também na capital paulista. Criado em 2001, o Centro de História Unilever tem como foco divulgar o trabalho mais que centenário da empresa nas áreas de publicidade, design e marketing, envolvendo as marcas de seu vasto portfólio, algumas bastante conhecidas, como Doriana, Hellmann’s, Maizena, Omo, Lux e Rexona.

Trata-se de um verdadeiro mergulho nos usos, hábitos e costumes do brasileiro desde o fim do século 19. “Por fornecer artigos de consumo praticamente a 100% dos lares, a Unilever teve participação ativa em muitas das transformações culturais experimentadas pela sociedade”, garante Bruno Carramenha, gerente de comunicação interna da Unilever Brasil. “Nosso centro de história é uma importante ferramenta de preservação desse conhecimento e, também, uma forma de contribuir para a transmissão dos valores da empresa e de suas marcas para seus públicos de interesse”.

Formada por historiadores e arquivistas, a equipe do Centro de História Unilever mantém um acervo de 3,5 mil comerciais de TV, 6 mil anúncios impressos, 3 mil embalagens e rótulos, 12 mil fotografias, 200 horas de gravação de radionovelas, jingles, spots e programas de rádio, 80 horas de depoimentos gravados de profissionais de publicidade, marketing e design, bem como de ex-presidentes e ex-diretores da empresa, além de vídeos institucionais, noticiário de imprensa, press releases, peças promocionais e de pontos de venda, jornais e revistas internas.

Mercado de trabalho

Grande parte desse universo de documentos está digitalizada. É tanta atenção aos visitantes que, no hall de entrada da sede da companhia, uma mostra permanente recepciona as pessoas com a divulgação da história da empresa por meio de vídeos, jingles e painéis.

Como no caso da Bunge, os pesquisadores também somam parte importante dos visitantes do centro da Unilever. Eles se revelam interessados, principalmente, na história das marcas e nas propagandas emblemáticas veiculadas pela empresa, assim como na evolução do comportamento dos consumidores e das famílias. Curiosamente, o centro também é procurado por um número expressivo de pessoas que vão até lá em busca de antigas receitas impressas nas embalagens de alguns produtos.

A consolidação desse mercado fez surgir como referência do setor algumas agências de projetos de memória empresarial que se tornaram verdadeiros ícones na área, como a Grifo Projetos Históricos, a Memória & Identidade, a Expomus e a Tempo & Memória. Todas de São Paulo, elas assinam o trabalho de montagem (e muitas vezes também cuidam da gestão) de parte significativa dos centros existentes, organizando ainda os principais eventos e exposições devotados ao assunto.

Uma das mais antigas do mercado e na ativa desde 1984, a Grifo é a empresa que montou e administra o Centro de História Unilever, tendo também desenvolvido trabalhos de memória empresarial (material institucional) para a Companhia do Metropolitano de São Paulo e o Instituto Fernando Henrique Cardoso. Dentre seus clientes, contam-se ainda companhias poderosas que decidiram trabalhar na divulgação de sua história, como o Bradesco, a Basf e a Lacta.

“De fato, trata-se de um negócio que cresceu muito nos últimos anos e deve expandir-se ainda mais à medida que os projetos já consolidados forem se tornando conhecidos”, diz a diretora da empresa, Lygia Rodrigues, que começou a se exercitar no ramo meio por acaso. Lygia fora convidada por uma colega (que se tornaria depois sua sócia na Grifo) para ajudá-la a organizar em livro o acervo de propagandas de jornal da tradicional loja de departamentos Mappin. A obra foi publicada, a empresa faliu e hoje seu acervo, que também foi organizado pelas historiadoras, faz parte do Museu Paulista, da Universidade de São Paulo (USP), depois de alguns anos preso na massa falida da loja.

A Memória & Identidade, por sua vez, também é responsável pela assinatura de projetos importantes, como o Centro de Documentação e Memória Edenred (da empresa dos cartões Ticket), o Centro Histórico Embraer – que acabou de lançar um site magnífico na internet –, o Centro de Documentação e Memória Suzano, o Centro de Documentação e Memória Ultra e o Centro de Memória Wilson, Sons – da lendária companhia marítima fundada em 1837 –, entre vários outros. A empresa responde ainda pela gestão técnica de alguns centros.

“Montar um centro de memória do gênero é um trabalho delicado, pois não se trata apenas de reunir antigas fotografias, recortes e objetos em um único local, mas também de dar um sentido para a coleção”, esclarece Beth Totini, uma das três sócias-diretoras da Memória & Identidade. “É necessário que o espaço retrate como a evolução da companhia contribuiu para torná-la o que é hoje”, diz, ressaltando que a linguagem precisa estar afinada com as estratégias atuais, da mesma forma que é importante destacar como foram construídos os atributos das marcas. Isso sem esquecer que o acervo deve servir de fonte permanente de consulta para os funcionários, especialmente aqueles do corpo técnico e da área de gestão.

É preciso dizer que o investimento na memória empresarial ainda é uma prerrogativa de companhias de bolsos fundos, já que a montagem, mesmo de um centro relativamente simples, demanda de 18 a 24 meses de trabalho, em média, desde o levantamento e a coleta do material até a tomada de depoimentos e a montagem do espaço propriamente dito. Obviamente, é preciso também contar com um local apropriado para sua localização, que deve ser acessível ao público e, se possível, dispor de salas climatizadas e ter o suporte de uma oficina de manutenção e reparos.

Como projetos desse tipo dificilmente são contemplados com verbas de patrocínio cultural, uma vez que são considerados empreendimentos de interesse privado, é a própria empresa ou uma fundação que tem de bancar todos os custos, os quais são permanentes, pois será preciso cuidar do acervo e às vezes ampliá-lo.

Pulverização

Isso não significa que apenas as grandes companhias – dentre elas as que têm nome ou marcas famosos – venham aderindo ao cultivo da memória empresarial. Pelo contrário. Como se trata de uma modalidade aberta de historiografia, que pode ser trabalhada nos mais diferentes veículos, do museu à internet, várias empresas de menor porte ou conhecidas apenas em sua cadeia produtiva vêm adotando essa prática por meio de ferramentas mais econômicas.

Os livros comemorativos – que, na verdade, constituem o formato mais antigo e tradicional de memória empresarial, existindo antes mesmo do surgimento desse conceito – são os preferidos pelas empresas que têm o que contar, porém apenas para círculos restritos. Mesmo as grandes companhias não hesitam em publicá-los – como fez a Romi, fabricante de máquinas de Santa Bárbara d’Oeste, interior de São Paulo, que encomendou ao festejado escritor Ignácio de Loyola Brandão um livro sobre a história da Romi-Isetta, o simpático carrinho de dois lugares que a empresa lançou nos anos 1950.

A maioria dos centros de memória nasceu, aliás, a partir da elaboração de um livro, como o da empresa marítima Wilson, Sons, no Rio de Janeiro, e o da Multibrás, fabricante de eletrodomésticos (Brastemp e Consul), que publicou um volume comemorativo com 250 fotos antigas, em 1996. Ele deu origem a um centro de memória em São Paulo com um estonteante acervo de 10 mil fotografias históricas, farta documentação e material audiovisual.

Há até agências de historiadores empresariais que atuam exclusivamente no nicho de livros, como o Escritório de Histórias, com instalações em Belo Horizonte e Brasília. A empresa desenvolveu um livro comemorativo para a Ramos Transportes e prepara outro para a Braspress – uma das maiores companhias brasileiras do mesmo segmento. “A tendência desse mercado é a pulverização para os mais diversos setores da economia e para empresas dos mais variados portes”, explica Isabella Verdolin, uma das sócias do Escritório. “Isso porque as empresas começam a achar muito positivo e estimulante abrir suas histórias para a sociedade. E, como há muitas ferramentas à disposição para que isso se torne realidade, fica tudo mais fácil.”

Nem é preciso dizer que o grande risco sempre presente no campo da memória empresarial é a coisa descambar para o mais deslavado marketing e autopromoção. O perigo é maior no segmento de publicações comemorativas – como livros, revistas e jornais –, em que a tentação de enaltecer a empresa, seus fundadores e diretores nem sempre consegue ser vencida. Felizmente, essa parece não ser a regra, pelo menos entre os produtos mais bem feitos.

“É óbvio que todo projeto de memória empresarial embute alguma dose de marketing, pois, afinal, trata-se da iniciativa de uma empresa privada, cujo objetivo primordial é produzir e vender”, observa Marcos Bedendo, professor da Escola Superior de Administração e Marketing (ESPM). “Para isso, ela deve também trabalhar sua imagem pública e institucional, e os projetos de memória empresarial são muito eficientes nesse aspecto. Mas tudo tem de ser bem feito, com honestidade e sem falseamentos, senão pode provocar um efeito oposto ao desejado, tornando a empresa antipática”, adverte.

“O perigo é a história ser conduzida de maneira massificada, com um discurso recheado de apelos à produtividade e à disciplina, tratando funcionários e consumidores como objetos,” diz Paulo Nassar, diretor-geral da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje) e autor de tese de doutorado sobre o tema defendida na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Ele sublinha que a empresa tampouco pode se colocar no lugar da sociedade quando investe no desenvolvimento de um projeto desses. “Por mais importante que julgue seu papel, será ainda assim uma narradora que relatará seu passado enquanto experiência individual. Não se trata de história. É memória na acepção precisa do termo”, diz. “A história cabe à sociedade narrar”, finaliza.


Museus temáticos

A memória empresarial tem uma ramificação na museologia. Vários museus temáticos já foram montados no país por empresas privadas, de maneira geral com um conceito mais abrangente que os centros de memória, sendo, por isso, menos detalhistas e mais generalistas. Criado pela Dimep, fabricante de relógios de ponto fundada pelo industrial Dimas de Melo Pimenta, o acervo do Museu do Relógio, em São Paulo, reúne cerca de 700 peças que representam a evolução dos marcadores de tempo através dos séculos.

Já o Museu Asas de um Sonho, montado pela empresa aérea TAM em São Carlos, cidade do interior de São Paulo onde mantém hangares e oficinas, abriga cerca de 70 modelos de aviões e se constitui no maior museu aeronáutico de uma única companhia aérea particular em todo o mundo. Há ali desde uma réplica do 14-Bis até um velho Constellation da extinta Panair do Brasil (empresa cujas atividades se encerraram em 1965), além de um exemplar do Spitfire, o famoso caça inglês da Segunda Guerra Mundial.

No sul do país, na cidade catarinense de Jaraguá do Sul, o museu da WEG – poderosa indústria de motores elétricos – tem uma ala onde é contada ludicamente a história da eletricidade e de sua influência na sociedade e no desenvolvimento industrial.

A paulista Romi preferiu montar um museu para contar a história do município de Santa Bárbara d’Oeste, onde a empresa tem seu parque fabril e ao qual está umbilicalmente ligada. O museu mostra todo o passado da cidade e da região, revelando mudanças sociais, políticas e econômicas por meio de milhares de imagens, uma hemeroteca com os jornais que circularam em Santa Bárbara d’Oeste desde o final do século 19, peças audiovisuais, documentos de texto e diversos objetos museológicos.

“O museu fala também da importância da cidade para a criação e o desenvolvimento da Romi, assim como do estreito envolvimento da empresa com a vida dos moradores, uma história que já conta mais de 80 anos”, informa Livaldo Aguiar dos Santos, diretor presidente da companhia.


Papel estratégico

O Serviço Social do Comércio (Sesc) de São Paulo está colaborando diretamente para o desenvolvimento da memória empresarial no país. E isso graças ao Programa Sesc Memórias (participante da Rede de Centros de Memória Empresarial), que se encarrega de coletar, tratar e conservar a documentação produzida e acumulada pela instituição, principalmente fotografias, documentos de texto e acervos audiovisuais existentes nas unidades operacionais.

Criado em 2006, o Sesc Memórias também promove, há quatro anos, palestras e debates para estimular o diálogo sobre tópicos como arquivo, patrimônio, história e memória. Os temas são propostos pelo próprio Sesc Memórias e pelo público participante.

Foram feitas várias palestras no primeiro semestre deste ano. No dia 29 de março, por exemplo, o assunto abordado foi a questão específica dos centros de memória e, no dia 26 de abril, foram apresentados os conceitos fundamentais que norteiam as atividades de um arquivo audiovisual.

O programa dá suporte também à Coleção Sesc Memórias, das Edições Sesc SP, uma série que pretende aguçar o olhar sobre a história da instituição e sua importante atuação no cenário social, cultural e esportivo paulista.