Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

A fantasia que enfeitiça e seduz

Vestir, calçar e pentear, tudo é criado socialmente e variável no tempo

CECILIA PRADA

“A moda é um objeto bom para pensar”, disse um dia Lévi-Strauss, o grande mestre de provocações. E estava certo: “moda” é uma palavra de poderes mágicos, evocativos, que parece abrir imediatamente um vasto panorama iconográfico de luxo, beleza, abundância multicolorida, futilidade – um mundo basicamente feminino de sedução, dotado de dinamismo próprio, superpovoado de todos os tipos, de todas as raças, evocados do carrossel do tempo.

Na realidade, a palavrinha mágica é, antes de mais nada, matreira e dona de um magnetismo muito mais sofisticado. Mesmo que a princípio nos deixemos enganar pela aparente facilidade do tema a ser estudado, logo nos veremos confrontados com mil caminhos que nos levam a um elenco de conhecimentos específicos, técnicos, que por sua vez se entrosam com os grandes ramos do saber: antropologia, sociologia, psicologia, filosofia, estética, história, economia e ainda psicanálise, linguística e até semiótica. Para ser compreendida – diz ninguém menos que Roland Barthes –, a moda necessita de “novos saberes no campo do discurso”, já transformada em sua categoria de “vestimenta infinita”. Isto é, como se pudéssemos imaginá-la “como uma mulher coberta de uma roupa sem fim, que é, por sua vez, tecida de tudo o que diz o jornal de moda, pois essa roupa sem fim é dada por meio de um texto sem fim”. A nós caberá, então, recortá-la em “unidades significantes”, diz ainda o grande nome da semiótica, para podermos “compará-las, reconstituindo, assim, a significação geral da moda”.

Umberto Eco afirma também, no ensaio “O Hábito Fala pelo Monge” (1989): “Quem se familiarizou com os atuais problemas da semiologia já não pode apertar a gravata, de manhã em frente ao espelho, sem ter a nítida sensação de fazer uma escolha ideológica; ou, pelo menos, de passar uma mensagem, numa carta aberta, aos transeuntes e àqueles que encontrará durante o dia”.

E o que é realmente a “moda”? Será que ela sempre existiu? É claro que durante toda a história da humanidade as pessoas usaram roupas diferenciadas de acordo com a época e o lugar, a classe social a que pertenciam ou, ainda, a profissão que exerciam. E que, se tomarmos como tendências básicas do ser humano dois elementos, a imitação e a diferenciação, considerando sua interação e alternância, poderemos entender as sucessivas correntes de “modas”. O livro A Roupa e a Moda – Uma História Concisa (Companhia das Letras, 2003), do inglês James Laver, que foi curador da seção dedicada a esse tema no Victoria and Albert Museum de Londres, tem figurado na bibliografia obrigatória dos cursos de moda do país. Ele apresenta com profusão de detalhes e ilustrações as principais etapas do vestuário no mundo ocidental, desde sua invenção no Paleolítico – quando, usado como proteção climática, passou a incorporar técnicas ainda hoje remanescentes nas tribos esquimós –, passando pelas grandes civilizações da Antiguidade, como Creta, Egito e Mesopotâmia, e atravessando a complexidade de modos de vida nas cortes europeias, até atingir o último quartel do século 20.

Dessa panorâmica impressionante, agrupada por Laver segundo três princípios – o hierático, o da utilidade e o da sedução –, podemos extrair reflexões sobre os costumes, as influências, as repercussões, os conflitos e o poder da moda nos vários povos e países. Manipuladora-mor, não à toa foi muitas vezes chamada de “imoral” e “tirana”, e, por meio de leis ditas “suntuárias”, fortaleceu o poder de governantes, de classes sociais e de facções sobre a massa popular. Alguns exemplos: como relata Heródoto, um decreto ateniense chegou a proibir às classes inferiores o uso de roupas de cores vivas, privilégio dos nobres. Os romanos eram até mais radicais: viam as vestes drapeadas como as únicas que expressavam “civilização” e em certa época chegaram a punir com pena de morte quem usasse vestes “bárbaras”, isto é, que seguiam as formas do corpo. Ainda segundo Laver, durante a Revolta dos Camponeses, na Alemanha (século 16), uma reivindicação dos rebeldes era o uso da cor vermelha nas roupas, como seus superiores.

Barbas e bigodes

Não somente na roupa, mas nos adornos e até nas variações de corte de barba e cabelo eram mostradas e mantidas, muitas vezes à força, as distinções etárias, sexuais ou de classes sociais. Não é preciso remontar a períodos históricos antigos – não tivemos em pleno século 20 uma verdadeira caçada aos cabeludos beatniks?

Em sua tese de doutorado de 1950, “A Moda no Século 19” (publicada em livro em 1987 pela Companhia das Letras com o título O Espírito das Roupas), Gilda de Mello e Souza, precursora dos estudos de moda, apresenta um desfile iconográfico de barbas e bigodes, demonstrando como na variedade de feitios exibida em seus pelos o homem do século 19 compensava a frustração de ter sido obrigado a renunciar aos exuberantes trajes que usava nos séculos anteriores e a adotar uma sobriedade triste e mantida desde então.

Ex-aluna de Roger Bastide e formanda das primeiras turmas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), Gilda apresentava a orientação filosófica e sociológica de mestres europeus consagrados, como Jean-Gabriel de Tarde (1843-1904), usando como critério dominante a “luta de classes” e situando o início da “moda” no momento em que a nova classe emergente, a burguesia, inicia sua ascensão, lutando contra os privilégios da aristocracia. Jean-Gabriel, sociólogo francês, via o fenômeno “moda” sob a ótica da modernidade, destacando seu valor e sua especificidade, opondo decididamente “moda” e “costumes”.

Os diferentes trajes e adornos usados nas sociedades históricas obedeciam a tradições e rígidas normas coletivas, permanecendo imutáveis por longos períodos (seriam então “costumes”), nascendo a “moda” somente quando uma lógica estética autônoma podia ser detectada, com a possibilidade de se favorecerem as escolhas individuais. Em Sociologia da Moda (Editora Senac São Paulo, 2010), Frédéric Godart diz: “O costume é a normalidade rotineira da imitação, que permite às entidades sociais reproduzirem-se de modo idêntico, enquanto a moda é uma imitação menos aguardada, mais surpreendente e que produz o novo”. Esse autor considera a moda como “fato social total, visto que, além de ser simultaneamente artística, econômica, política, sociológica, ela atinge questões de expressão da identidade social”. E distingue seis princípios básicos que a regem: afirmação, convergência, autonomia, personalização, simbolização e imperialização.

Não há, porém, consenso rigoroso sobre a época em que essa mudança se processou. Um dos filósofos contemporâneos que mais se ocupa do tema, o francês Gilles Lipovetsky, situa esse fato social a partir de meados do século 14, enquanto outros só o veem surgir plenamente no final do século 16, do 17 ou mesmo do 18, com a Revolução Francesa como divisor de águas. E há quem prorrogue a datação até o início da Revolução Industrial do século 19.

Essa variação nos faz, portanto, avaliar o fenômeno “moda” não como fatomas como um processo da modernidade – ou mesmo como “uma filosofia da modernidade”, como dizia, em 1904, o alemão Georg Simmel, vendo-a como “um tema singular, que pode permitir a percepção de tensões centrais na vida social”. Um “processo permanente”, que se ressitua e amplia na pós-modernidade – uma época que, já transformada até em “hipermodernidade”, em “pós-tudo”, é a que vivemos. Nela, com o efêmero elevado à condição de atmosfera cultural, tudo parece estar em efervescência constante, abolidas as distinções e categorias e possibilitando a fusão do gosto, da mudança, da arte, com a solidez dos processos industriais e o fluxo do grande capital internacional.

Para Lipovetsky, como se trata de um dispositivo social, o comportamento orientado pela moda é um fenômeno do comportamento humano e está presente em sua interação com o mundo, fundamentado na reivindicação da individualidade e na legitimidade da singularidade. Ele diz que “não há sistema de moda senão na conjunção destas duas lógicas, a do efêmero e da fantasia estética”, e, como tal, ela não pode ser explicada unicamente pela luta de classes. Em seu polêmico livro de 1987, O Império do Efêmero – A Moda e Seu Destino nas Sociedades Modernas, expressa, explicitamente: “O esquema da distinção social [...] é fundamentalmente incapaz de explicar o mais significativo: a lógica das inconstâncias, as grandes mutações organizacionais e estéticas da moda”. Pois é preciso não esquecer que, derivada de uma tensão básica entre a necessidade de imitação (conformidade) e de distinção (excentricidade),“ela está relacionada com o prazer de olhar e também de ser olhado”.

Nossas tataravós

No campo da psicologia e da psicanálise, a moda tem sido instrumento incomparável de estudo do ser humano em seus vários ambientes, sempre tomada como um sistema em que a necessidade narcísica básica do sujeito encontra ocasião para expor-se ao “olhar do outro” , que lhe confere individualidade. Na sociedade atual, que vive o pleno exagero da exibição – corporal e intelectual –, o propósito exibicionista avança sobre o próprio corpo do indivíduo, e este, em vez de usar roupas e adereços para chamar a atenção, pode usar a si próprio como campo de mutilação, submetendo-se a sacrifícios e dores mediante a prática de piercings, tatuagens etc.

A submissão total aos padrões impostos pela máquina internacional da moda pode levar a pessoa à alienação do próprio corpo, à imposição de sacrifícios e prejuízos à própria saúde. Por exemplo, no Brasil do século 19, nossas tataravós não hesitavam, no clima tropical do Rio de Janeiro e mesmo nas capitais provincianas do norte do país, em seguir o dernier cri da moda parisiense, adotando vestes pesadas, fechadas, botinhas de couro que lhes subiam pelas canelas, chapéus, numerosas saias íntimas e espartilhos que causavam até desmaios.

Deixando teorias e debates filosóficos de lado, passemos ao exame de alguns poucos aspectos do fenômeno moda de hoje, no seu “como” – o processo tecnológico, tal como se desenvolve, com o enriquecimento de recursos usados com liberdade e imaginação criadora. Massimo Baldini, no livro A Invenção da Moda (Editora 70, Portugal, 2006), parte de uma observação do antropólogo Ted Polhemus para dizer que “somos a única criatura que muda intencionalmente seu aspecto”. Ele faz um elenco dos dez principais fatores que criaram “a atmosfera vagamente anárquica da moda da atualidade e dos seus ritmos frenéticos”: 1) a Revolução Francesa e a abolição das leis suntuárias; 2) a revolução têxtil; 3) a afirmação da burguesia; 4) a invenção da máquina de costura; 5) o aparecimento das revistas de moda; 6) a criação de lojas de departamentos, em meados do século 19; 7) a ascensão social dos cabeleireiros – o primeiro foi Le Gros, em meados do século 18; 8) a invenção da alta-costura por Charles Frederick Worth, em 1857; 9) a paixão das mulheres pelo vestuário – elas assumem a liderança em dois momentos históricos, a Revolução Francesa e a Primeira Guerra Mundial; 10) a revolução do prêt-à-porter, em 1957.

A criação do “pronto para ser usado” (prêt-à-porter) é geralmente definida como uma conquista democrática – antes dele o domínio da alta-costura concentrava-se em Paris e nos grandes modistas, para as mulheres, e nas grandes alfaiatarias de Londres, para os homens. Com o poder da indústria americana, em meados do século 20, a reprodução de modelos desse estilo desencadeou-se não apenas nos Estados Unidos, mas no resto do mundo. No entanto, estamos ainda muito longe de uma utópica “democracia” do vestuário e do modo de vida – e certamente exagera Lipovetsky na sua exaltação da liberdade e dos valores individuais da moda.

As classes sociais (que persistem teimosamente em existir e em desafiar as políticas econômicas) continuam a se vestir de modo diferente. Os modelos podem ser copiados, a produção em série aumentar – haverá sempre uma diversidade real de corte e de materiais, de acabamentos –, mas o mundo da moda continua a ser recheado com os suspiros das secretárias que admiram as socialites, seus vestidos de seda pura, suas grifes impressas em tudo, no cotidiano dos vários países. A grife, podemos dizer, é uma perversão – um privilégio do cinismo multinacional, um atestado de que poucos, muito poucos, podem usar algumas delas. É uma assinatura, elevada à enésima potência, e que parece ter sido criada para aumentar a tensão social, humilhar o pobre, suscitar crimes. Não é corriqueiro o assassinato de jovens por um par de tênis de grife, hoje?

Pleno florescimento

Outro tópico para reflexão: o que leva realmente uma pessoa a adotar uma moda? Como explicar que alguém aceite a imposição de uma moda que seja incômoda, feia, que não nos ajude em nada? Um bom exemplo é esse da “chapinha” uniformizante, que obriga todo mundo, homens, mulheres, crianças e velhos, e até seus cachorros peludos, a ingentes esforços e dispêndio com o objetivo de atingir a igualdade pilosa de japoneses (ou índios) e a aparência comum de “manga chupada”. Na contramão, as próprias japonesas são obrigadas a se transformar em louras ou ruivas, a arredondar os olhinhos oblíquos. E lembre-se também, em contrapartida: o que levava nossas mães e avós, na primeira metade do século passado, à obrigatoriedade da permanente, do ferro quente, da química pesada – a esperada beleza hollywoodiana e a realidade dos cabelos ressecados, queimados, engruvinhados, dos salões suburbanos? Ou, para falar ainda em bisavós e tataravós, e aquela “moda das tais anquinhas”? Deu até canção folclórica que ficou nos registros: “A moda das tais anquinhas/ É uma moda arreliada/ Botou o joelho em terra/ Toda a gente ficou pasmada”.

Fator imprescindível para a efervescência da moda, e para a ampla circulação de “modismos” de todo tipo, é a máquina da publicidade, nesta revolucionária “era da comunicação imediata” – com seus exageros e desvarios, paradoxos, insuflando as sociedades de massas com suas proclamações de autonomia, mas levando adiante uma política de fragmentação e sujeição do indivíduo. No setor moda, porém, e no do design que se estende aos objetos de uso e de decoração, a partir das últimas décadas do século 20 ascende-se ao patamar superior da formação profissional em vários níveis – no Brasil, já são mais de cem as escolas e faculdades desse tipo.

Jovens aspirantes a estilistas têm nelas um apoio que lhes têm permitido, nos últimos anos, projetar-se no circuito internacional. Entre elas, destaca-se o Centro Universitário Senac, com seu curso de Design de Moda – Habilitação em Estilismo, que tem a duração de quatro anos e direção artística de Alexandre Herchcovitch, um dos maiores estilistas da moda brasileira e internacional. Integrando aulas teóricas e práticas, ministradas em laboratórios especializados e com uma infraestrutura moderna e adequada a cada atividade, o curso educa e prepara jovens profissionais a partir de referências culturais, conceitos da moda contemporânea, estéticas e tendências, para atender aos anseios do consumo de moda.

É um mercado em pleno florescimento, como atestam as últimas estatísticas da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit): o volume de negócios do setor alcançou, em 2011, o valor de US$ 67 bilhões, contra US$ 60,5 bilhões em 2010. O Brasil é, hoje, o quarto maior parque produtivo de moda no mundo, com um total de 30 mil empresas formais e a confecção média de 9,8 bilhões de peças, e já se tornou uma referência mundial no campo da moda jovem e informal, praia, esportes, jeans etc. A importância econômica e social do setor expressa-se no número de seus trabalhadores: 1,7 milhão diretamente envolvidos na produção e 8 milhões de empregados adicionais, 75% dos quais correspondem a mão de obra feminina.