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Democracia Corinthiana
Um dos maiores pesquisadores na área de Antropologia do Esporte, o cientista social e professor José Paulo Florenzano se dedica a pesquisar e a entender as engrenagens sociais que movimentam o mundo da bola. Mestre e doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Florenzano é autor dos livros A Democracia Corinthiana – Práticas de Liberdade no Futebol Brasileiro (Educ, 2009) e Afonsinho e Edmundo: A Rebeldia no Futebol Brasileiro (Musa Editora, 1998).
Em encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, o convidado desta edição explicou o que era e como funcionava a chamada democracia corintiana. “Tem um vínculo com o contexto de redemocratização da sociedade brasileira, não é por acaso que eles [jogadores do Corinthians] subiram ao palco do Vale do Anhangabaú no movimento das Diretas Já!”, diz Florenzano. A seguir trechos da conversa.
Movimento multifacetado
A princípio, a democracia corintiana tenta se legitimar perante a opinião pública como um modelo de futebol-empresa. Esse é um discurso do presidente Waldemar Pires, encampado e reproduzido pelas lideranças do movimento – [os jogadores] Sócrates [morto no dia 4 de dezembro], Wladimir e Casagrande. Não é por acaso que a primeira vez em que o Corinthians estampou um anúncio na camisa foi no contexto da democracia corintiana. Um ato que dessacraliza o manto sagrado. Há um projeto empresarial nisso, uma estratégia de internacionalizar a marca Corinthians.
Mas, ao mesmo tempo, havia uma face mais radical que estava voltada para uma experiência de democracia direta, de autogoverno na equipe. Uma noção de participação que extravasava os limites da equipe, atingindo o departamento de futebol, a gestão do clube e assim por diante. Qual a grande contradição na história da democracia corintiana?
Tentar conciliar esses dois projetos, o de um modelo empresarial com o de uma democracia direta. Ora, por mais que pensemos numa gestão participativa, há um limite claro de exercício de democracia direta dentro de uma empresa. A democracia corintiana se revela, portanto, como um movimento multifacetado. E essa é minha hipótese argumentativa.
Engajamento e boemia
No contexto da redemocratização brasileira, a democracia corintiana dialogou e interagiu com uma multiplicidade de sujeitos coletivos que entraram em cena – como os sindicatos do ABC paulista e o movimento estudantil. [O atacante Walter] Casagrande, por exemplo, foi prestar solidariedade no acampamento dos desempregados no Ibirapuera, em 1983. Então, há uma atuação muito nítida da democracia corintiana nos movimentos sociais, políticos e culturais.
No entanto, havia também um lado dionisíaco nessa experiência. Ao mesmo tempo em que a democracia corintiana estava nos sindicatos, nas universidades e no acampamento de desempregados, ela também estava no bar tomando uma cerveja.
Também subiu ao palco da Rita Lee para celebrar [a música] Jardins da Babilônia. Percorreu o circuito boêmio da cidade porque, de certa maneira, a inspiração do Sócrates, do Wladimir e do Casagrande vinha exatamente do diálogo com os poetas, intelectuais e artistas. Há, sim, dentro do movimento da democracia corintiana esse lado do excesso, da transgressão.
Bandeiras da democracia
Quais são as bandeiras defendidas pela democracia corintiana? Em primeiro lugar, o movimento era contra o autoritarismo nas relações sociais de trabalho no futebol. A figura do técnico comandante, autoritário não tinha vez dentro do movimento.
Segunda bandeira do movimento: crítica ao paternalismo como modelo de gestão implantado nos clubes. Uma história que se repete até hoje. O dirigente é o pai e o atleta é o filho, que tem de ser tutelado por alguém responsável, porque do contrário não sabe o que fazer.
Terceiro ponto que marca e identifica o movimento é a luta contra o regime da concentração [que precede aos jogos]. E, finalmente, aquilo que podemos chamar de crítica ao excesso atlético. Isto é, ao espaço excessivo que a preparação física adquiriu dentro do futebol. Então a ideia era reequilibrar a prática profissional entre os exercícios do corpo e os exercícios da alma. A ideia do futebol como uma atividade que mobiliza não só o corpo, mas algo que movimenta a alma.
Filósofo da bola
Quando falamos no [meio-campista] Sócrates, é importante desconstruir uma imagem cristalizada na memória coletiva. Via de regra, temos a impressão de que ele, desde o começo, é a figura do intelectual esclarecido que entra no futebol para nortear o percurso de um grupo. Não é verdade.
Sócrates provém da classe média e fez curso de medicina, mas do ponto de vista político, segundo palavras do próprio Sócrates, era um alienado, como toda uma geração que cresce sob o regime do AI-5 [Ato Institucional n° 5, decretado pela ditadura militar em 1968, que restringiu de vez as liberdades no país]. Sócrates vai pouco a pouco adquirindo consciência política, transformando-se numa personagem-símbolo desses anos revolucionários do futebol. Não é uma figura iluminada que chega para orientar o caminho do movimento dentro do Corinthians.
É importante resgatar o papel do [lateral esquerdo] Wladimir na transformação do Sócrates. Digo que o Wladimir é um filósofo pré-socrático. Antes do Sócrates, Wladimir já estava questionando as estruturas de poder no Corinthians. Já participava do sindicato dos atletas, estava antenado com as transformações da sociedade. E ele vai provocar Sócrates exatamente para trazê-lo ao movimento.
República do futebol
Uma imagem sedimentada na memória coletiva é a da democracia corintiana como uma ilha de politização num mar aberto de alienação, que é o campo de futebol. No entanto, isso é um equívoco. A democracia corintiana acontece dentro daquilo que eu chamo de “República do Futebol”. Foi um período absolutamente extraordinário, talvez o mais revolucionário da história do futebol brasileiro, entre 1978 e 1984.
Um período que coincide com a efervescência da retomada da democracia no país, no qual podemos descobrir e reencontrar múltiplas experiências de democracia. Não só no Corinthians, mas no Flamengo do Zico, na Portuguesa do Mário Travaglini etc. Democracia e futebol caminham muito mais juntos do que se imagina. O futebol participa da reprodução da ordem social.
Enfim, a ideia de democracia estava amplamente disseminada, muito além dos limites do Parque São Jorge [a sede do Sport Club Corinthians Paulista]. É um cenário rico, que permite caracterizar a existência de uma república do futebol marcada pela defesa dos ideais de participação, liberdade e igualdade. A democracia corintiana tem um vínculo com o contexto de redemocratização da sociedade brasileira, não é por acaso que eles [jogadores do Corinthians] subiram ao palco do Vale do Anhangabaú no movimento das Diretas Já! [que reivindicou, entre 1983 e 1984, a eleição presidencial com voto direto].