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Desafio à legalidade

Crise cambial leva o governo a adotar a "lógica da arrecadação"

Em reunião realizada no dia 10 de março de 1999, o Conselho de Estudos Jurídicos (CEJ) da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (FCESP), presidido por Ives Gandra da Silva Martins, colocou em discussão o tema "Impactos jurídicos da crise cambial". Com essa reunião, o CEJ, instituído em 1989, completou dez anos de existência.

IVES GANDRA MARTINS – Antes de passar a palavra à professora Fátima Fernandes Rodrigues de Souza, que discorrerá sobre aspectos mais polêmicos do tema, gostaria de mencionar um ponto que me tem chamado a atenção: o programa que o governo considera fundamental para a recuperação da economia brasileira. O Fundo Monetário Internacional (FMI) assinou uma nova carta com o governo brasileiro, uma vez que a anterior não atingiu o que pretendia e não se conseguiu o mínimo de sustentação do dólar. Minha maior preocupação é com o esquema governamental, que de certa forma é autofágico, na medida em que a inflação não terá fôlego, devido a uma recessão forçada, e, em vez de uma queda de 1% no PIB, que era a estimativa do fim do ano passado, o FMI já admite uma queda de 3,5% a 4%.

No mercado interno haverá recessão e, com a desvalorização do real, teremos possibilidades de algum superávit na balança comercial. Mas, apesar de o FMI ter colocado a meta de US$ 11 bilhões e o Brasil ter-se comprometido a alcançá-la, acho que o superávit ficará muito aquém desse montante, por dois fatores. O primeiro é que haverá necessidade de financiamento em moeda forte. O segundo é que nesses quatro anos de "francomania" tivemos uma desnacionalização do parque empresarial brasileiro, que, se em alguns setores é competitivo, em outros está bastante sucateado ou dependente de produtos externos. Se antes fabricávamos carroças brasileiras, hoje montamos carros estrangeiros. Quase todos os veículos nacionais têm um alto nível de desnacionalização e dependem de produtos importados, que terão de ser comprados em moeda forte.

É verdade que haverá um alívio com a entrada do dinheiro do FMI, que será utilizado para regular o mercado cambial. Mas tenho a impressão de que vamos passar um ano muito difícil, porque a única política aplicada será de natureza monetária e cambial. Outras alternativas, como, por exemplo, redução de tributos indiretos, condicionada a segmentos que reduzam seus preços e não pressionem a inflação, com o que é possível combater a recessão e o desemprego sem impactos inflacionários, não há perspectiva de o governo adotar. O governo só reduziu o IPI dos automóveis porque houve pressão dos sindicatos. Outras medidas poderão surgir, principalmente em relação a impostos indiretos, que o governo federal pode aumentar sem precisar respeitar o princípio da anterioridade. E também no setor das contribuições, já que está garantido, até por decisão do Supremo Tribunal Federal, que a Receita ficará com os recursos, em vez do Ministério da Previdência ou do Ministério da Saúde.

FÁTIMA FERNANDES RODRIGUES DE SOUZA – Farei um breve apanhado dos problemas que estão envolvendo a cobrança da Cofins, a partir da lei 9.718. O artigo 195, inciso I, da Constituição Federal, na sua redação original, dizia que a seguridade social seria financiada pelos empregadores, por contribuições incidentes sobre a folha de salário, sobre o lucro e sobre o faturamento. O faturamento era definido na lei complementar 70/91, que instituiu a Cofins, como a receita bruta das vendas de mercadorias e serviços de qualquer natureza. O conceito de faturamento na doutrina é bastante antigo, e a princípio significava simplesmente a atividade de emitir fatura, que era utilizada nas vendas por atacado. É o conceito que consta no artigo 219 do Código Comercial. Com o surgimento da obrigação de emitir nota fiscal, a fatura caiu um pouco em desuso. E depois a lei 5.474, que veio disciplinar as duplicatas, tornou obrigatória a emissão das faturas nas vendas a prazo entre comerciantes. Faturamento passou então a significar o somatório das vendas de mercadorias com prazo de pagamento superior a 30 dias. Muitas empresas acabaram, por uma questão de padronização de suas operações, emitindo faturas para todas as operações, com a nota fiscal já incluída no mesmo documento. E a fatura passou também a ser utilizada para prestação de serviço. Então generalizou-se o conceito de faturamento como a totalização das vendas ou das prestações de serviço em determinado período.

A lei 9.718, de 27 de novembro de 98, que converteu a medida provisória 1.724 de 1998, pretendeu disciplinar a Cofins e o PIS para pessoas jurídicas de direito privado. Ao fazer isso, definiu faturamento como a totalidade das receitas auferidas, independentemente do tipo de atividade e da classificação contábil. Acontece que esse conceito que a lei acabou por delinear desbordava do conceito de faturamento da Constituição na sua redação original de 1988, o qual foi utilizado para definir a competência da União para criar a incidência da contribuição social. Pelo artigo 110 do Código Tributário Nacional, a lei não pode modificar o conceito que a Constituição utiliza. Se fosse isso possível, estar-se-ia permitindo que o legislador ordinário, redefinindo os conceitos, mudasse o que está dito na Constituição, o que seria um absurdo. Portanto, o conceito de faturamento, tal como está no artigo 195, não poderia ser alargado pela lei 9.718.

O governo acabou por reconhecer isso, tanto que em seguida foi aprovada a emenda constitucional 20/98, que, aí, sim, ampliou o universo de contribuintes, que deixaram de ser exclusivamente os empregadores para passar a ser também a empresa e a entidade a ela equiparada na forma da lei, e além disso estendeu a base de cálculo de faturamento para faturamento ou receita. De qualquer forma, o fato de a emenda constitucional prever a base de cálculo da contribuição como receita não autoriza só por isso a cobrança da contribuição sobre a receita.

O artigo 12 da emenda 20 tem a seguinte dicção: "Até que produzam efeitos as leis que irão dispor sobre a contribuição de que trata o artigo 195, são exigíveis as estabelecidas em lei destinadas ao custeio da seguridade social e dos diversos regimes previdenciários". Então se questiona se esse artigo 12 teria forças para recepcionar a lei 9.718 até que viesse uma legislação a instituir regularmente a contribuição sobre receita. Alguns entendem que uma alteração constitucional tem o condão de validar uma lei que tenha surgido com inconstitucionalidade, à luz do diploma vigente anteriormente. Mas a maioria entende que o vício de inconstitucionalidade é congênito, se apura no momento da promulgação da lei. Se a lei é incompatível com a Constituição vigente quando é promulgada, ela é inconstitucional, e esse vício não tem condição de se convalidar. Então ao que parece a lei 9.718 padece realmente do vício de inconstitucionalidade. Suspeita-se que o governo vai trazer à baila uma situação do passado, quando da emenda 23. Essa emenda tinha alargado o campo de incidência do ICM para também abranger a importação de bens de ativo fixo. Foi estabelecido um prazo de vacatio, dentro do qual São Paulo publicou uma lei que previa essa incidência. Tanto a lei paulista como a emenda teriam vigência a partir do primeiro dia do exercício seguinte. Os contribuintes discutiram que, como a lei paulista havia surgido na vacatio, mas quando ainda vigorava o diploma anterior, essa lei seria inconstitucional. O Supremo Tribunal acabou decidindo que não. A emenda tinha estabelecido um período de vacatio, mas ela já era vigente naquele momento, só a eficácia dela é que tinha sido postergada. Como a eficácia da emenda e da lei eram concomitantes, então não havia inconstitucionalidade nenhuma, e a lei era válida. Mas aqui a situação não é essa. A lei foi promulgada antes da própria emenda, e não no período de vacatio. Portanto, quando foi promulgada, era flagrantemente incompatível com a Constituição que estava em vigor àquela altura.

Então me parece que, até que venha uma lei que institua regularmente a contribuição nos moldes da emenda 20, a Cofins só pode ser exigida sobre faturamento e daqueles contribuintes que a lei 70/91 indicava. É de se observar que a medida provisória questiona se seria necessário que essa lei que viesse a configurar a incidência fosse lei complementar ou não. Não existe ainda uma manifestação específica do Supremo sobre isso, embora no julgamento da ação declaratória de constitucionalidade número 1, en passant, tenha sido aventada a desnecessidade de lei complementar para instituir aquelas contribuições previstas na Constituição. De qualquer maneira, parece-me que a alteração de uma lei complementar só poderia ser feita por outra lei complementar. Mas, ainda que assim não fosse, é necessário ter presente que medida provisória não pode instituir essa incidência porque, se assim o fizesse, estaria flagrantemente contrariando o artigo 246 da Constituição, que diz "é vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada a partir de 1995". O professor Marco Aurélio Greco tem um trabalho sobre a interpretação desse artigo, em que ele com muita pertinência diz que não se trata de qualquer mudança de redação, mas de mudança de redação que acrescenta alguma coisa. E a alteração do artigo 19 acrescentou uma realidade que não existia, que é a receita. A medida provisória 1.807, de 28 de janeiro de 99, cuida da base de cálculo da Cofins em relação a bancos e entidades financeiras, até para fazer exclusões àquilo que já constava da lei 9.718. Parece-me que, em vista disso, essa medida provisória é inconstitucional por ferir o artigo 246 da Constituição.

Além desse aspecto, a lei 9.718 majora a alíquota da Cofins de 2% para 3%, autorizando a compensação de 1% com a contribuição social sobre o lucro líquido. A majoração está no artigo 8º e levanta novamente a questão de se é possível uma lei complementar ser alterada por lei ordinária. A jurisprudência não é pacífica, e há quem diga que o rito de conversão da medida provisória na lei 9.718 estaria eivado de vício.

Admitindo que não haja vícios, o que também podemos discutir é essa possibilidade de compensação de 1% com a contribuição social. O que seria isso? Alguns sustentam que é um empréstimo compulsório. Mas empréstimo compulsório pressupõe a devolução e, no que a lei estabelece, essa devolução pode não ser possível, porque a lei exige que a compensação de 1% da Cofins seja feita com a contribuição social devida no mesmo período, a qual não pode ser postergada para período posterior nem restituída. Se não houver contribuição social sobre o lucro, aquele 1% da Cofins deixa de ser compensado. Então, empréstimo compulsório, como não vai haver devolução, não parece ser. A questão é saber se isso seria uma antecipação da contribuição social sobre o lucro. Confesso que também não estou segura de que seja uma antecipação, mas o que efetivamente estou segura é de que esse tipo de regime acaba instituindo um tratamento que fere a eqüidade, que está prevista no parágrafo 194, inciso V, da Constituição, que exige que o custeio da seguridade social seja feito de maneira eqüitativa. Esse tipo de regime nitidamente não se reveste de eqüidade, porque a empresa que tem lucro vai pagar menos contribuição do que aquela que não tem. Hugo de Brito Machado demonstra o seguinte: tendo em vista que o valor devido a título de contribuição social sobre o lucro líquido corresponde a 8% do lucro líquido, somente as empresas cujo lucro líquido seja igual ou superior a aproximadamente 12% da receita bruta poderão valer-se da compensação. Vale dizer, quanto maior o lucro, menor a contribuição total que a empresa fará à seguridade social. Isso nada mais é do que o princípio da capacidade contributiva aplicado de forma inversa.

Finalmente, em relação a essa lei, há a questão da anterioridade. Pelo artigo 17 da lei 9.718, ela se torna aplicável e terá eficácia a partir de 1º de fevereiro de 99. Acontece que essa contagem toma por base a data da medida provisória que ela pretensamente teria convertido. Mas a conversão não foi feita sem alteração, uma vez que a medida provisória previa a compensação com o Imposto de Renda. Porém, os estados reclamaram, porque sua participação seria reduzida. Então, na conversão, a compensação com o Imposto de Renda foi trocada pela compensação com a contribuição social sobre o lucro líquido. Mas a jurisprudência do Supremo fixou o entendimento de que, quando há uma conversão em que há alteração do que estava previsto na medida provisória, a anterioridade não é contada da data da medida provisória e sim da lei de conversão. Portanto, também aqui a anterioridade não seria a partir de 1º de fevereiro, como está no artigo 17 da lei, e sim a partir dos fatos geradores praticados desde março.

MARCO AURÉLIO GRECO – Estou absolutamente convencido de que há algum problema sério nesse artigo 8º, quando eleva em 1% a contribuição para a Cofins. Acho que, na sistemática que cria, ele efetivamente prevê um aumento de alíquota. Portanto, não se trata de empréstimo compulsório, e o problema está na falta de previsão da restituição. Um parágrafo do artigo 8º estabelece que, feita a compensação e existindo saldo, não haverá nem restituição nem compensação futura. Acho que esse parágrafo está extinguindo um crédito que o contribuinte tem por força do parágrafo 1º, que diz que há um crédito compensável. Se há um crédito compensável, é um crédito que integra o patrimônio do sujeito passivo. Se isso acontece, ou ele é satisfeito ou não pode ser extinto unilateralmente pela lei. Então aqui estaria o problema, no parágrafo 3º, quando diz que não haverá restituição nem compensação do excesso. Pessoalmente, acho que o caminho é a restituição, uma vez que a compensação deve atender aos parâmetros da própria lei, nos termos do artigo 170.

Divirjo em certa medida da exposição da doutora Fátima, quando se refere a vacatio de 90 dias. Se é fato que o prazo de 90 dias começa a ser contado da data da lei, quando ela não converte a medida provisória, também me parece que é fato que na interpretação da lei devemos distinguir quais são os dispositivos que foram diretamente convertidos e quais são aqueles que configuram lei nova. Se não me engano, a questão até já foi submetida ao Supremo Tribunal Federal, que fez essa distinção.

FÁTIMA FERNANDES – Mas acontece que o artigo 8º foi alterado.

MARCO AURÉLIO – Ele é novo, só ele é novo. Não o da base.

FÁTIMA FERNANDES – Mas o que eu estava falando é da majoração.

MARCO AURÉLIO – Então nesse ponto estamos de acordo. Na majoração de 1%, os 90 dias são contados da data da lei, porque o regime é diferente. Há quem sustente que o dispositivo, tanto na redação da medida provisória quanto na da lei, previa um aumento de 1%. Ora, não me parece que seja argumento suficiente, porque o regime que estava na medida provisória era de compensação com o Imposto de Renda. Houve até uma reação muito grande por parte do Congresso, para não converter esse dispositivo em lei, porque isso interferiria na repartição de receitas de Imposto de Renda para estados e municípios. E aí surgiu a solução: compensar com a contribuição social, que é receita integral da União. Portanto, o regime desse 1% é diferente, e o prazo é novo.

Também não tenho tanta tranqüilidade quanto a doutora Fátima em dizer que o artigo 12 da emenda 20 não é invocável para fins de se afirmar a constitucionalidade da lei 9.718, pelo menos a partir da emenda constitucional, porque tenho dúvidas na afirmação de que Constituição superveniente não saneia vício originário. Se fosse assim, tenho certa dificuldade de interpretar o artigo 239, porque ele encampou a lei complementar 7, do PIS.

O outro aspecto que me preocupa é o que é inconstitucionalidade enquanto tal. Há uma divergência muito grande na teoria do direito, uma vez que duas correntes se formaram sobre o que é a inconstitucionalidade. Uma delas sustenta que se trata de um vício de essência, porque a validade da norma é da essência dela. Norma não válida não existe enquanto norma. E há outra que sustenta que validade não é essência, é qualidade de uma norma. Portanto, haveria normas que poderiam existir independentemente de a elas ser atribuível o qualificativo de válidas ou não. Para quem partir da premissa de que validade é a essência da norma, a conclusão da doutora Fátima não muda uma palavra. Para quem entende que validade é qualidade, então existe uma essência, que é a lei, e a pergunta surgiria: até que ponto essa qualidade que não se tem na data inicial poderia ser-lhe atribuída por uma norma constitucional superveniente? Essa discussão não me parece que seja meramente teórica. Veja-se, por exemplo, as manifestações do Supremo Tribunal, quando diz que não pode examinar no âmbito da Adin (ação direta de inconstitucionalidade) norma sobre a qual se argua um vício de constitucionalidade em relação a Constituição pretérita. Li no informativo 138 do Supremo que foi arquivada uma Adin sobre a medida provisória 1.723, do PDT e do PT, porque sobreveio a emenda constitucional 20, porque se entende que o Supremo tem que proteger o ordenamento constitucional vigente, não o passado.

CELSO RIBEIRO BASTOS – Parece-me que é mais acessível a nós a discussão no direito português. E tanto Jorge Miranda quanto Canotilho perguntam: há inconstitucionalidade superveniente, há constitucionalidade superveniente? E respondem: inconstitucionalidade superveniente não existe, porque se a lei vinha vigorando de forma válida e a alteração constitucional a torna conflitante, ela é pura e simplesmente revogada. Não é caso de inconstitucionalidade. Mas, ao responder a pergunta inversa, se há constitucionalidade superveniente, eles respondem de forma positiva, porque a norma pode ter nascido com inconstitucionalidade, ter durado certo tempo nessa situação, sem jamais ter sido proclamada como tal, e num dado momento intervém uma emenda constitucional que dessa feita torna a norma compatível com a Constituição. Dizem eles que em toda definição de inconstitucionalidade há uma incompatibilidade entre a lei e a Constituição no momento em que está se dando essa aferição. Não se pode cotejar situações temporalmente diversas para vasculhar no passado inconstitucionalidades pretéritas. Se a ordem jurídica constitucional de alguma maneira evoluiu até na sua interpretação (às vezes não precisa nem ser uma emenda formal, pode ser que a interpretação constitucional tenha evoluído), basta esse fato para constitucionalizar a lei. Agora, não sei quantitativamente qual é a corrente que vence, mas parece que é majoritária a que inequivocamente reserva o direito daqueles lesados pelo período em que a lei era inconstitucional e pleitearem individualmente essas reparações, por um princípio não de teoria da inconstitucionalidade, mas por uma questão de justiça.

MARILENE TALARICO MARTINS RODRIGUES – Eu queria um esclarecimento do professor Celso. Quando o senhor fez a observação do professor Jorge Miranda e do professor Canotilho, eles não estariam se referindo à Constituição portuguesa? Acho que a Carta portuguesa tem dispositivos que levam a essa conclusão, mas a brasileira não tem.

CELSO BASTOS – Realmente, no Brasil não havia nada, mas de uns dez anos para cá passou-se a absorver o que se faz na Alemanha, na Espanha, em Portugal, etc., em termos de teoria da Constituição. Então é normal hoje os livros, mesmo de cursos de direito constitucional, terem uma parte que é a teoria da Constituição. Nesse aspecto, não se leva em conta o ordenamento jurídico dos diversos países e procura-se encontrar aquilo que há de comum no fenômeno da inconstitucionalidade, como na teoria do Estado se procura o que há de comum em todos os Estados.

Só é necessário invocar realmente um sistema constitucional específico quando se vai entrar em maiores detalhes ou mesmo se dentro do sistema constitucional vigente houver receita específica. Na Constituição italiana, por exemplo, em toda questão teórica que se discute no plano da teoria da Constituição, os efeitos ex nunc e ex tunc desaparecem, porque existe um dispositivo claro que diz que os efeitos só são para a frente, não existem efeitos retroativos. É evidente que você não pode trazer os ensinamentos da teoria do Estado, que não são vinculantes, para confrontar com uma norma de direito positivo. Mas, no nosso caso, acho invocável, porque não temos normas que dirimam essas dúvidas.

VALDIR DE OLIVEIRA ROCHA – Quero me concentrar num aspecto que diz respeito ao PIS. Parece-me que o PIS não tem matriz no artigo 195 da Constituição, porque, embora seja uma contribuição social, não é de seguridade social. Isso porque o artigo 239 colocou essa exação como propiciadora de recursos para duas finalidades. De um lado, para assegurar recursos ao seguro-desemprego e, de outro, para custear o abono a empregados que percebam pequenos salários. Quando o artigo 239 invoca a lei complementar 7, desenhou ali o perfil dessa exação. De tal modo que, quando a doutora Fátima diz que isso poderia ser objeto apenas de lei complementar, eu vou além. Mesmo uma lei complementar não poderia alterar a contribuição ao PIS; só emenda constitucional poderia fazê-lo. É verdade que o artigo 239 menciona a possibilidade de lei que disponha sobre aquela exação. Mas apenas para dispor sobre o financiamento dessa contribuição. Então restrinjo-me a aceitar apenas emendas constitucionais a alterarem a contribuição ao PIS.

GASTÃO ALVES DE TOLEDO – Gostaria de voltar à idéia inicial do debate, que é o impacto da crise econômico-financeira sobre o mundo jurídico, e dizer que esse impacto está refletindo agora as mudanças constitucionais que deveriam ter sido feitas há dois anos. A emenda constitucional 20 é resultado de uma proposta que, se não me engano, foi apresentada em 1995. E na emenda constitucional 20 há pelo menos três preceitos importantíssimos que visariam reduzir o impacto dessa crise internacional pela reforma da previdência. Um deles é o artigo 202, que visa à alteração da lei 6.435, relativa aos fundos de pensão privados. Outro é o parágrafo 15 do artigo 4º, que lida com a questão da relação entre estados, municípios e União a respeito da criação de fundos de pensão. E outro ainda é o parágrafo 4º do artigo 202, que disciplina a criação desses fundos de pensão por parte de estados e municípios. Essa legislação infraconstitucional, que só é uma legislação complementar (e até agora não se sabe muito bem por que o constituinte quis fazer isso através de lei complementar), virá realmente criar uma situação de desafogo bastante substantivo às entidades federadas e desanuviar o ambiente confuso que há hoje em relação à existência ou ao funcionamento dos fundos privados de pensão. No Brasil há uma centena ou mais desses fundos, que têm um patrimônio de cerca de R$ 80 bilhões hoje. A previsão do governo é de que, com a implementação dessa nova legislação, poderíamos triplicar ou quadruplicar esse montante, o que representaria talvez cinco ou dez BNDES só em recursos dos fundos fechados de pensão. Entre estes, os fundos de funcionários das estatais são os maiores e representam um percentual muito grande do valor total. E todas as grandes empresas privadas do Brasil também têm seu fundo de pensão. Os institutos da portabilidade, por exemplo, que estão sendo incluídos na nova legislação, a capacidade de resgatar o montante com que se contribuiu e poder transferi-lo para outro fundo de pensão, com ampla liberdade, tudo isso está sendo programado na legislação complementar que virá. O problema é que essa nova legislação terá que ser regulada posteriormente pelo órgão gestor do sistema. E já se fala na criação de uma nova agência governamental para isso, que seria também uma autarquia, nos moldes das outras agências. Não sabemos como isso vai ser feito e em que termos vai ocorrer, porque quem cuida desse assunto hoje é a Secretaria de Previdência Complementar do Ministério da Previdência.

RENATO FERRARI – Estes debates mostram que estamos numa profunda dissonância constitucional e infraconstitucional, que vem permanentemente sacrificando a sociedade pela prevalência do Estado. É preciso que os poderes Executivo e Legislativo se recolham a seus limites, respeitem a sociedade e aliviem os sofrimentos que esta tem enfrentado, principalmente pelos desacertos que se vêm verificando nas políticas adotadas, em especial na área econômica e, por conseqüência, na social. Há necessidade de uma reformulação estrutural do sistema político, do constitucional e, enfim, de todo o sistema que hoje está aí e que não pode mais prevalecer.

NEY PRADO – Se fôssemos filósofos, estaríamos analisando os aspectos da moralidade da lei. Se fôssemos políticos, estaríamos preocupados com a adesão à lei. Como somos juristas, estamos preocupados com a legalidade, tanto constitucional como infraconstitucional. Acontece que o governo não está preocupado com isso, pois sua lógica é unicamente a da arrecadação. Como intelectuais, elucubramos sobre princípios, valores, etc. Mas, do ponto de vista prático, enquanto o governo não resolver seu problema de caixa, continuaremos a viver na anomia. E é exatamente o que está ocorrendo.

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