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Patrimônio líquido
Recursos hídricos do país são abundantes, mas o descaso é maior
IMMACULADA LOPEZ
No sertão pernambucano, a água não chega às casas. Uma lata com 20 litros já está
custando R$ 1, e os carros-pipas não têm mais onde se abastecer. Em resposta, o governo
estadual está carregando trens com 300 mil litros de água para levar ao interior. A
própria capital vive dias de racionamento, com previsões de colapso de abastecimento
caso as chuvas não sejam suficientes para encher as represas. Assim o pesquisador João
Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, descrevia a situação do estado de
Pernambuco em março último.
Enquanto isso, cada vez que chove em São Paulo, a água não encontra nem vegetação,
nem terra para se infiltrar. Corre pelo asfalto, lavando toda a sujeira da cidade. Quando
consegue penetrar na terra, encontra um subsolo contaminado por infiltrações dos
lixões, vazamentos dos tanques dos postos de gasolina e resíduos industriais. E quando
chega aos córregos mistura-se a grandes quantidades de esgoto doméstico e industrial sem
nenhum tratamento. Um cenário, diz o urbanista Renato Tagnin, especialista em recursos
hídricos, que já se repete em toda grande cidade brasileira.
Nas vilas do sertão, nas regiões metropolitanas ou nos campos do interior, a água é
hoje motivo de preocupação no país. Principalmente porque o Brasil, apegado a uma falsa
idéia de abundância e imediatismo, adota um modelo de gestão de um de seus recursos
mais vitais caracterizado pelo descaso e pela inconseqüência. Diante do agravamento dos
problemas, pesquisadores, ambientalistas e governo concordam que é hora de agir.
"O Brasil ostenta uma reserva de água abundante e uma ampla rede de abastecimento,
mas na verdade esconde sérios problemas. Estamos assistindo, sem fazer nada, a um
crescimento exagerado de demandas localizadas e a uma degradação da qualidade das águas
em níveis nunca imaginados", alerta o geólogo Aldo Rebouças, coordenador da área
de Ciências Ambientais e Recursos Hídricos do Instituto de Estudos Avançados (IEA), da
Universidade de São Paulo (USP), e presidente da Associação Latino-Americana de
Hidrologia Subterrânea para o Desenvolvimento, que no final de maio lança o dossiê
"Águas doces do Brasil - Capital ecológico, uso e conservação".
"Apesar de não ser uniforme para todo o país, o diagnóstico da água doce no
Brasil é preocupante", concorda o pesquisador José Galizia Tundisi, do IEA, que
também coordenou a elaboração do livro. Ele acredita entretanto que o contexto é
favorável a mudanças: "Estamos passando por uma conscientização da sociedade, a
partir das pequenas comunidades, e por uma reorganização institucional". Em janeiro
de 97, foi promulgada a lei no 9.433, que estabelece a nova Política Nacional dos
Recursos Hídricos. Após 180 dias, ela deveria ter sido regulamentada, o que ainda não
ocorreu.
De acordo com o secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente,
Fernando Rodriguez, a demora da regulamentação explica-se justamente pela importância
do documento legal. Ele representa o marco de uma grande mudança de princípios e
diretrizes no manejo das águas no país. Sem essa mudança, seria difícil enfrentar as
crises de um futuro próximo.
Na virada do século, segundo o secretário, o Brasil viverá pelo menos três grandes
problemas em relação à água. Em primeiro lugar, a degradação do recurso nos grandes
centros urbanos será agravada. Depois, o mesmo ocorrerá nas áreas de mineração e
agricultura. E, em terceiro lugar, ficará mais séria a situação dos moradores do
semi-árido nordestino pela falta de água para sua subsistência.
Distribuição desigual
Mas a gestão adequada das águas não é um desafio apenas para o Brasil. "O
cenário internacional é de escassez", aponta o geógrafo Wagner Costa Ribeiro,
pesquisador da USP e membro do Conselho Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentado, na capital paulista. Ele informa que, segundo dados internacionais, um quinto
da população mundial não tem água potável, 40% do total sofre algum tipo de
racionamento, enquanto 10 milhões de pessoas morrem por causas associadas à água.
"Ao mesmo tempo que a degradação da água está aumentando, a demanda continua
crescendo", diz Ribeiro. Mas, segundo o pesquisador, é um equívoco apontar como
causa o crescimento populacional. "Os maiores consumidores de água são os países
ricos, devido ao estilo de vida e de produção predominante", argumenta.
Distribuída de forma desigual pelo planeta, a água chega a ser motivo de conflito entre
países. O mais crítico deles, conta o pesquisador Aldo Rebouças, envolve israelenses e
palestinos, cujos mananciais disponíveis dependem de acordos entre Jordânia, Síria,
Líbano, Egito e Arábia Saudita. No início da década, 18 países do mundo viviam
"estresse" de água. Em 2025, essa situação deve se estender para mais 12
países. O desafio aumenta, observa Rebouças, ao se verificar que mais países se tornam
dependentes de descargas hídricas geradas fora de seu território. "Apesar da
gravidade da situação, com exceção de Israel, muito pouco tem sido feito para aumentar
a eficiência do uso", diz Rebouças.
"Nesse cenário", avalia o geógrafo Ribeiro, "o Brasil deve se preocupar
em garantir autonomia e auto-suficiência na gestão de seus recursos hídricos."
A mudança de postura deve ser geral. O primeiro equívoco a ser desfeito, segundo os
especialistas, é o mito de que a água seria quase inesgotável no Brasil.
Não há dúvidas de que o país tem um enorme patrimônio natural. Seus rios representam
53% da produção hídrica da América do Sul e quase 12% do total mundial. Esses números
se devem em grande parte ao rio Amazonas - o maior do mundo em volume de água -, cuja
bacia, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, detém 81% do potencial hídrico dos
rios brasileiros. "No modelo econômico do futuro, baseado no desenvolvimento
auto-sustentável e na biodiversidade, a Amazônia é uma região estratégica", diz
o químico Wilson de Figueiredo Jardim, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
estudioso da contaminação na área.
Outra riqueza que não pode ser ignorada são as reservas subterrâneas (ver box à pág.
16), especialmente o aqüífero da bacia do Paraná, que concentra mais de 45% do volume
de água subterrânea conhecida do país, segundo dados do pesquisador Rebouças.
"Mas essa riqueza não está distribuída de forma equilibrada entre as
regiões", ressalta Rebouças. E as diferenças se agravam ao se observar que o país
cresceu seguindo uma lógica inversa à disponibilidade hídrica.
A região norte, por exemplo, com 79,7% do potencial hídrico nacional, concentra apenas
7,8% da população do país. O sudeste, por sua vez, com a maior parcela de habitantes,
42,2%, tem somente 4,1% do potencial, e o nordeste tem quase 29% dos habitantes e 2,3% da
capacidade hídrica.
Entre os estados de cada região a disponibilidade também varia - a de Sergipe, por
exemplo, é 14 vezes menor que a da Bahia - mas, de qualquer maneira, segundo os padrões
das Nações Unidas, nenhum estado brasileiro atinge o nível de "estresse de
água" (recursos hídricos nos rios inferiores a 1.000 m3/habitante/ano) e muito
menos de "escassez" (inferiores a 500 m3/habitante/ano).
Pressões e crises
Além de ser considerado um país rico em recursos hídricos, o Brasil apresenta baixos
níveis de uso. Ainda de acordo com os critérios das Nações Unidas, a utilização de
água em todos os estados brasileiros situa-se entre muito baixa (menos de 100
m3/habitante/ano) e baixa (entre 100 m3 e 500 m3/habitante/ano). Mas Rebouças ressalva
que esses dados não são totalmente consistentes, pois se baseiam apenas em informações
fornecidas pelas companhias de água, sem incluir o auto-abastecimento das indústrias e
dos agricultores, por meio de poços e uso direto da água dos rios.
De qualquer forma, diz o geólogo, a avaliação do problema de água em uma região não
pode se restringir a um mero balanço de oferta e demanda. Segundo ele, a comparação de
estatísticas entre os países não é tão importante, pois o essencial é como cada um
deles usa a água que tem. "No Brasil, até nos estados mais populosos ou com menos
recursos hídricos, não falta água, mas uma cultura que combata o desperdício e a
degradação da qualidade", alerta Rebouças. O sertão nordestino e os grandes
centros urbanos viveriam situações críticas exatamente pelo uso inadequado e pela falta
de planejamento.
"Hoje temos uma gestão dos recursos hídricos setorial, desarticulada, que responde
a pressões e crises", descreve Tundisi. Surgem algas na represa Billings em São
Paulo, o governo intensifica o tratamento. A seca se agrava no nordeste, liberam-se
carros-pipas. "Mas o que precisamos é de uma gestão sistêmica, preventiva, que
busque produtividade", diz Tundisi. Na visão de Rebouças, outra mudança é
necessária: "Temos de evoluir de uma política de bastidores, de plano de obras,
para um gerenciamento de eficiência e resultados". Um exemplo da má política seria
o caso do nordeste.
Há décadas, essa região do país não consegue lidar com a seca. O pesquisador João
Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, lembra que, apesar de a água ser a
base do desenvolvimento, o nordeste ainda nem garantiu água boa para beber. Ele conta que
alguns estados começam a realizar tímidos projetos para democratizar o acesso à água,
como monitoração de açudes, uso das grandes represas para abastecimento, perfuração
de poços artesianos, dessalinização de reservas, além de projetos de tratamento e
reutilização da água. Mas a regra geral, observa Suassuna, são os programas
emergenciais, como frentes de trabalho, distribuição de cestas básicas, etc.
Ao contrário de Israel ou dos Estados Unidos, que aprenderam a conviver com áreas
semi-áridas traçando metas, o brasileiro enfrentaria as dificuldades buscando
financiamentos e benefícios. "Criamos um modelo de impotência", afirma
Rebouças. Ele observa que a mentalidade equivocada em relação à água existente na
região é a mesma do restante do país. "Mas no nordeste as conseqüências são
maiores, pois o ambiente é mais vulnerável."
A natureza criou no nordeste uma extensa área semi-árida, com chuva distribuída de
forma irregular no decorrer dos anos, com temperaturas elevadas e altos índices de
evapotranspiração - evaporação da água somada à transpiração das plantas -, além
de uma formação rochosa cristalina, que dificulta a constituição de reservas
subterrâneas. "Essa é a situação natural, conhecida e previsível. E no entanto
criou-se a idéia de que a seca no nordeste é algo anormal", diz Rebouças.
Outro equívoco, na sua avaliação, é acreditar que a região semi-árida é sinônimo
de improdutividade. "Há conhecimentos técnicos para superar as dificuldades
ambientais. Experiências bem-sucedidas, como plantio de frutas tropicais, comprovam que o
desenvolvimento é possível. O que falta é atitude política."
Para o secretário de Recursos Hídricos Fernando Rodriguez, a sofrida situação do
nordeste se explica pela falta de planejamento a longo prazo e de determinação para
alocar recursos. "Até agora, os investimentos não tiveram seqüência", diz o
secretário, ressalvando que essa postura começa a mudar.
Prédios à beira-mar
Mas não é apenas no semi-árido nordestino que há urgência de mudanças. A crise da
água também parece inerente a todas as regiões metropolitanas do país. O urbanista
Renato Tagnin sentencia: "Criamos um espaço antagônico à renovação da água, com
condições permanentes de escassez". A água das chuvas não encontra solo,
vegetação ou tempo para completar seu ciclo de depuração, infiltração e
armazenamento. "A cidade não poupa nem as áreas de várzea, construindo avenidas
nas marginais dos rios", diz Tagnin. "É como erguer prédios à beira-mar e
depois reclamar da maré-cheia." Por outro lado, o desrespeito às áreas de
mananciais, por onde correm os rios e córregos que alimentam as represas de
abastecimento, também é constante.
"A ocupação dos mananciais é apenas uma das vitrines da problemática da expansão
urbana", avalia Tagnin. Ele afirma que não haverá solução para a água enquanto
não se controlar a urbanização. "São Paulo, por exemplo, vive uma situação de
alerta: a região metropolitana continua se expandindo mesmo com a taxa populacional em
queda." Os problemas ambientais cruzam-se com os sociais. Segundo Tagnin, as classes
populares estão buscando moradia mais barata, avançando sobre áreas frágeis, enquanto
na cidade há infra-estrutura já instalada, mas inacessível a elas. "Isso porque a
cidade cresce excluindo as classes populares", conclui o especialista.
A solução da problemática da água, portanto, passa por profundas mudanças na cidade.
O próprio padrão de desenvolvimento precisaria mudar. "Reina hoje uma mentalidade
totalmente predatória, em que a atividade produtiva não internaliza o custo ambiental.
Ao contrário, externaliza o prejuízo", diz Tagnin. Em outras palavras: as
indústrias pegam a água, usam, sujam, jogam fora, sem evitar desperdício, conservar ou
tratar. Segundo o urbanista, cada empresa precisa rever seu processo produtivo, tomando as
medidas necessárias.
A população, por sua vez, não faz a sua parte. Lava a calçada com mangueira, deixa a
torneira aberta, joga lixo nas ruas e nos córregos, usa mais e mais produtos
descartáveis. "Apenas quem sofre com a enchente ou não tem água na torneira
percebe que há um problema de água na cidade", diz o biólogo Samuel Barreto,
coordenador do Núcleo Pró-Tietê, da Fundação SOS Mata Atlântica, em São Paulo. Ele
destaca que as pessoas dificilmente relacionam as causas e efeitos dos problemas
ambientais. "Também é raro que se percebam co-responsáveis pelo problema",
completa.
Por parte do poder público, faltariam ações básicas. "Temos uma limpeza urbana
pré-histórica, um controle de resíduos sólidos primário e um tratamento de esgoto que
ainda deixa muito a desejar", admite Tagnin.
Dentre esse conjunto de problemas, Barreto acentua a importância da falta de coleta e
tratamento de esgotos, "certamente o nosso maior problema na gestão dos recursos
hídricos".
Ameaça à saúde
Ao olhar as estatísticas, é difícil discordar do biólogo. Em 1996, quase 30% da
população brasileira vivia sem abastecimento público de água e mais quase 70% sem
coleta de esgoto, segundo levantamento da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária
e Ambiental (Abes). A situação se agrava ao se observar o descompasso entre as regiões:
enquanto mais de 85% da população do sudeste é atendida por sistema de água, menos de
54% é abastecida no norte.
Na coleta de esgotos, o desequilíbrio se intensifica: no sudeste, a rede atinge mais de
55% dos moradores, enquanto no norte nem 3%. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística), só 8% dos municípios brasileiros dispõem de tratamento
adequado de esgoto e 58% não tem água tratada. "Mais do que comprometer a
disponibilidade de água, a contaminação ameaça a saúde das pessoas", alerta
Samuel Barreto.
Dados do IBGE e do Ministério da Saúde indicam que 60% das internações pediátricas
anuais acontecem por doenças relacionadas à falta de saneamento - casos que muitas vezes
chegam a óbito. A diarréia, por exemplo, causa 30% das mortes de crianças com menos de
um ano de idade. Além disso, a ingestão de água contaminada ou o contato com ela pode
provocar cólera, febre tifóide, poliomielite, hepatite infecciosa e amebíase. Ao lado
de vírus e bactérias, parasitas podem estar presentes na água e penetrar na pele e
mucosas, transmitindo por exemplo a esquistossomose. Segundo o relatório da Abes,
calcula-se que haja no país cerca de 10 milhões de portadores da doença, adquirida
através de banhos em rios, lagos e águas contaminadas.
A água também está relacionada com a propagação de doenças como malária, febre
amarela e dengue. Desta vez, ela é elemento essencial no ciclo biológico dos insetos que
transmitem as enfermidades. A contaminação química, através dos resíduos da
mineração, agricultura e indústria que chegam diretamente à água ou indiretamente
através do solo ou do ar, também é grave.
De acordo com o relatório da Abes, as autoridades nunca entenderam o saneamento básico
como uma questão de saúde pública. Nunca teria sido definida uma política clara para o
setor, deixando-se de investir em um importante meio de prevenção de doenças.
Segundo Fernando Rodriguez, a carência de infra-estrutura tão básica se deve ao intenso
processo de urbanização e industrialização do país. "Ele foi tão acelerado que
nenhum governo conseguiria investir no ritmo necessário, mesmo que o saneamento básico
tivesse sido prioridade", argumenta. Para diminuir o enorme saldo negativo, Rodriguez
acredita que deve ser procurada a participação da iniciativa privada, mas admite que o
próprio governo não poderá se omitir. Ele garante: "A coleta e o tratamento de
esgoto serão a prioridade de investimento público na área de recursos hídricos, ao
lado do investimento na modernização do uso do solo".
Mercúrio e malária
O descuido com as águas do país também se manifesta na falta de conhecimento adequado
do nível de contaminação de seus rios e solo por substâncias químicas. Não se sabe,
por exemplo, o real comprometimento da maior bacia hidrográfica do país - a amazônica -
pela contaminação de mercúrio. "A falta de levantamento traz muita desinformação
e impede que medidas necessárias sejam tomadas", diz o pesquisador Wilson de
Figueiredo Jardim.
Nos últimos quatro anos, ele pesquisou a presença de mercúrio na bacia do rio Negro,
onde a substância está presente naturalmente e não por atividade humana.
"Encontramos nas águas do rio Negro um teor de mercúrio cinco vezes maior que em
outras regiões onde não houve intervenção do homem", relata o pesquisador. Os
peixes, por sua vez, apresentaram o dobro do valor médio de mercúrio recomendado pela
Organização Mundial da Saúde (OMS). Em paralelo, 20% da população ribeirinha
demonstrou níveis do metal no cabelo duas vezes maiores que o valor máximo aceito pela
OMS.
Entretanto, segundo Jardim, ainda não se conhece o efeito real - presente ou futuro -
dessa contaminação nos ciclos biológicos ambientais ou até mesmo na saúde dos
ribeirinhos. "Sabe-se que o mercúrio pode acarretar um comprometimento neurológico,
mas na Amazônia os diagnósticos não são óbvios, pois os sintomas se misturam com os
dos altos índices de malária e de alcoolismo", explica o pesquisador.
Após o levantamento inicial, Jardim propôs ao Ministério do Meio Ambiente a criação
de uma Rede de Monitoramento de Substâncias Perigosas na Amazônia. Segundo ele, a
densidade demográfica na região ainda é pequena, mas deve mudar. O solo pode vir a ser
usado para culturas controladas. O estoque pesqueiro de 2 mil espécies tem pelo menos 500
com potencial comercial. "Precisamos conhecer e observar o efeito do mercúrio e
outros possíveis metais nesse patrimônio", diz o pesquisador. Ele informa que dados
preliminares confirmam a elevação da concentração de mercúrio no solo de outras
bacias amazônicas.
Já se sabe que nas bacias do Tapajós e do Madeira, entre outras, houve contaminação
devido ao garimpo de ouro. "Desde os anos 50, o mercúrio é usado nos garimpos, mas
os maiores lançamentos ocorreram a partir dos anos 70", informa o pesquisador Olaf
Malm, do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que há 13
anos realiza estudos na Amazônia e no Pantanal Mato-Grossense. "Nos últimos cinco
anos", continua, "observamos uma redução da contaminação por meros motivos
econômicos, que levaram à desativação de muitos garimpos." Até agora, nenhum
programa ambiental ou de saúde foi implantado na região.
Lei das águas
Situações críticas como essas, espalhadas por todo o país, aumentam a expectativa em
relação à regulamentação da lei das águas. Não se sabe quanto - ou quando - ela
realmente será aplicada para solucionar as crises. De qualquer forma, há um consenso
entre os especialistas de que - pelo menos no papel - ela traz vários avanços.
O primeiro é a consagração do uso múltiplo da água. A lei determina: "A gestão
de recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas". Até o
momento, os maiores investimentos na gestão dos recursos hídricos se destinaram à
geração de energia. "Os outros usos - irrigação, navegação, piscicultura,
lazer, turismo e até mesmo abastecimento - ficaram relegados a segundo plano e sujeitos
à hegemonia da produção de energia", explica Célio Bermann, professor e
pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP. As conseqüências são
visíveis.
"Muitas vezes a disponibilidade de água da represa para irrigação é zero. O
abastecimento também fica comprometido", diz Bermann. Outro exemplo é dado por
Tundisi, do IEA: "Se a preocupação maior é produzir energia, a poluição das
águas não importa tanto". Tundisi diz que algumas obras já estão sendo
remanejadas considerando as outras funções dos rios. Alguns reservatórios estariam
operando em níveis mais baixos para colaborar com o controle das cheias. Em outras
cidades, as prefeituras estariam investindo no lazer à beira das represas. "Afinal,
o uso múltiplo apresenta um grande potencial econômico", diz Tundisi.
Por outro lado, segundo Glenn Switkes, diretor do programa latino-americano da
International Rivers Network, entidade ambientalista de defesa dos rios, sediada no país
em Cuiabá, a construção de barragens no Brasil tem provocado um terrível impacto
ambiental e social. Segundo o ambientalista, por conseqüência dessas obras, rios como o
Paraná e o Tocantins já perderam boa parte de sua biodiversidade e de seus recursos
pesqueiros, e grandes extensões de florestas tropicais foram inundadas sem necessidade.
"Quase 1 milhão de pessoas já foram diretamente atingidas pelas barragens",
diz Switkes. Ele ressalta que essas ameaças têm exigido o esforço contínuo de
denúncia e mobilização por parte das comunidades (ver box à pág. 13). E estão mais
presentes que nunca, lembra Switkes, quando se discute o impacto ambiental da construção
das hidrovias, outra intervenção de grande porte no leito dos rios. "Há uma
crença de que quanto maior a obra, mais rápido se vai correr para o desenvolvimento. E
muitas obras proporcionam justamente o contrário", diz ele.
Segundo Fernando Rodriguez, agora as prioridades energéticas devem se subordinar ao Plano
Nacional de Recursos Hídricos. Uma alteração nada fácil, uma vez que o setor
energético se estruturou e se expandiu num contexto em que o uso prioritário da água
era declaradamente a produção de energia. Mas Rodriguez garante que, no embate diário
dos últimos dois anos, a interação com o setor energético evoluiu bastante.
"Obras foram descartadas e a dimensão de outras está sendo revista."
Célio Bermann não se mostra tão otimista: "Os princípios da lei são animadores,
mas a dificuldade prática é muito grande". Na sua opinião, a situação se agrava
pela perspectiva de privatização do setor de energia e abastecimento. "Cada empresa
vai procurar maximizar seus interesses, tornando mais difícil um consenso para uso
múltiplo." Na sua opinião, mais do que nunca, as bacias hidrográficas precisam de
uma gestão cooperativa e não competitiva.
Além dos limites
Na teoria, a busca de consenso estaria garantida com a criação dos comitês de bacias -
outra grande conquista da lei, segundo os especialistas. Ela determina que "a bacia
hidrográfica é a unidade territorial para a implementação da Política Nacional dos
Recursos Hídricos". Ou seja, as políticas e obras não devem ser mais pensadas no
limite de cada município ou estado, pois a poluição, as enchentes, o assoreamento dos
rios não seguem esses limites.
Para cada bacia, segundo a lei, pode ser criado um comitê com representantes dos estados,
municípios e sociedade. O comitê seria um instrumento essencial para cumprir outro
avanço da nova legislação: "A gestão de recursos hídricos deve ser
descentralizada e contar com a participação do poder público, usuários e
comunidades". Já foram formados em todo o país cerca de 40 comitês.
No início, o comitê foi motivo de entusiasmo entre os ambientalistas, mas hoje provoca
reflexões e ressalvas. "Apesar de ser um espaço onde conflitos são explicitados e
discutidos, ele não tem garantido espaço para os interesses coletivos", observa
Bermann. "Há representantes dos diferentes setores, mas quem defende o público e
quem defende o privado?", questiona o ambientalista Carlos Bocuhy, do Conselho
Estadual do Meio Ambiente (Consema). "Os representantes dos municípios, por exemplo,
estão muito sujeitos às pressões dos setores produtivos locais. Por outro lado, muitas
organizações não-governamentais são mantidas pelas prefeituras ou têm fortes
vínculos com elas." Ele teme que o comitê, com grande poder e verbas, se transforme
em um legitimador de interesses privados. Na sua opinião, a saída é estabelecer uma
carta ética em cada comitê que garanta a legitimidade do processo. "Mais do que
nunca é necessário estar atento à transparência e autonomia das decisões",
alerta o especialista. Para ele, a água é uma questão de cidadania. "Não é
importante apenas para a economia. É um fator decisivo para a qualidade de vida das
pessoas."
Ivaporunduva nasceu na curva do rio. Há pelo menos quatro gerações, seus moradores vivem "do lado de lá" do rio Ribeira do Iguape, no sul de São Paulo, quase divisa com o Paraná. Ainda hoje, as crianças precisam de uma canoa para cruzar o rio a caminho da escola. Na volta, a brincadeira acontece nas águas, que seguem generosas com seus peixes - anhá, cascudo, acará, robalo, traíra...
Com Ivaporunduva, mais 50 comunidades remanescentes de quilombos sobreviveram nas vizinhanças do Ribeira, único rio ainda não represado do estado. Mas talvez não por muito mais tempo. Quatro projetos de construção de barragem para geração de energia estão em discussão. "Pelo menos 20 das comunidades serão inundadas e todas terão sua vida afetada", diz Oriel Rodrigues, 27 anos, bisneto dos primeiros a chegar a Ivaporunduva. "Não queremos as barragens, pois não queremos ir embora. A comunidade morreria fora daqui." Junto com o Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens e a Fundação SOS Mata Atlântica, os moradores estão questionando as autoridades quanto à importância das obras.
"Em todo o país, as barragens para produção de energia são projetadas segundo um modelo de desenvolvimento que exclui a população local", diz Sandra Paulino, uma das articuladoras do movimento.
"A primeira grande perda são as terras", relata Sandra. No Ribeira, por exemplo, seriam inundados 11 mil hectares, sendo 40% remanescentes de Mata Atlântica. "E, com as terras", continua Sandra, "vão-se as casas, as plantações, a cultura." Ela explica que os maiores prejudicados são as populações ribeirinhas, quilombolas e indígenas, comunidades tradicionais, com forte vínculo com a terra, mas que raramente têm o título de propriedade. "Portanto, a possibilidade de indenização e reassentamento fica ainda mais difícil", esclarece.
Por outro lado, as promessas de desenvolvimento local, segundo Sandra, costumam ser passageiras. "O emprego vai embora com o fim da obra. A energia é levada para longe. E o que fica é uma infra-estrutura fantasma."
Subsolo Precioso
Apesar de valiosas, as águas subterrâneas brasileiras continuam ignoradas e cada vez mais ameaçadas. Esse é o diagnóstico apresentado pelo geólogo Aldo Rebouças, em dossiê que deverá ser publicado pela Universidade de São Paulo (USP).
"As reservas móveis de água subterrânea são estimadas em 11 mil km3 (11 quatrilhões de litros), sendo que poderiam ser extraídos de forma racional cerca de 5 mil m3/habitante/ano (800 trilhões de litros anuais no total)", diz o pesquisador. Esse cálculo representa o volume que poderia ser compensado pela renovação dessas reservas pelo próprio ciclo hidrológico (chuvas, infiltração, armazenamento).
Rebouças explica que a disponibilidade de recursos hídricos no subsolo varia entre as regiões do país. Mas, segundo o pesquisador, "80% das comunidades urbanas do Brasil poderiam ser abastecidas pelas águas subterrâneas".
O uso dessas águas já faz parte da vida de diferentes locais do país. "Segundo o último censo", aponta Rebouças, "cerca de 61% da população se auto-abastece com água subterrânea, sendo 43% por meio de poços tubulares, 12% por meio de nascentes e 6% em poços escavados". De acordo com o pesquisador, a água subterrânea é bastante utilizada até em áreas metropolitanas como a Grande São Paulo, onde, apesar de a rede de abastecimento atender cerca de 90% da população, estima-se que 7 mil poços sirvam a residências, hotéis, hospitais, indústrias e serviços comerciais.
Nessas regiões, explica Rebouças, o uso dos recursos hídricos subterrâneos cresce como principal meio de abastecer loteamentos não cobertos pelo fornecimento oficial de água e "como forma de se livrar dos freqüentes rodízios, falta de água e aumentos da conta".
Mas, ao lado dos inegáveis atrativos, o abastecimento autônomo traz também conseqüências danosas. Além de levar ao desperdício - como não se paga nada por essa água, usa-se uma quantidade maior que a necessária -, essa utilização desordenada ameaça a qualidade das reservas subterrâneas. Segundo o estudioso, poços malconstruídos ou abandonados constituem hoje os principais focos de poluição do manancial subterrâneo no meio urbano.
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