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A questão agrária
A agricultura familiar, sucesso em outras nações e desprezada no Brasil, poderia alimentar o país e eliminar as tensões no campo
Reforma agrária é assunto polêmico há muito tempo no Brasil. Bandeira de movimentos de esquerda, plataforma de candidatos de todos os matizes, sempre foi o pomo da discórdia na disputa entre políticos, fazendeiros, líderes sindicais, economistas e pesquisadores.
A melhor explicação para tanta polêmica é simples: a reforma no campo sempre foi considerada mais como um meio de reduzir tensões sociais do que como uma saída para o crescimento do país. Uma idéia que felizmente começa a mudar. A prova dessa mudança está no documento oficial "Reforma agrária - Compromisso de todos", publicado pelo governo Fernando Henrique Cardoso. "Hoje, existe consenso de que uma política de desenvolvimento rural deve integrar a reforma agrária, o fortalecimento da pequena propriedade e da agricultura familiar", diz o documento. Uma mostra de que, ao menos no discurso, o enfoque da questão está sendo deslocado da mera reforma fundiária.
Nesse novo modo de encarar a questão, o conceito que começa a ser empregado com freqüência cada vez maior é o da agricultura familiar. Vários textos o utilizam, e ele já faz parte até do nome de um projeto nacional que envolve recursos públicos, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Mas, afinal, o que significa agricultura familiar?
Com o objetivo, antes de tudo, de decifrar essa denominação, "Problemas Brasileiros" valeu-se da leitura de estudos e realizou entrevistas com representantes dos mais variados setores relacionados à agricultura, incluindo trabalhadores rurais, a tradicional Sociedade Rural Brasileira e o Partido dos Trabalhadores (PT). O resultado dessa reunião de opiniões confirma o consenso: há uma surpreendente concordância de pontos de vista, e todos não só reconhecem a importância de uma agricultura familiar forte como fazem sugestões para que se invista nela.
Se isso for para valer, se os pequenos estabelecimentos tocados pelo esforço familiar receberem o apoio que merecem, com certeza algo mudará nos campos - e nas mesas - do país.
Há vários meses, fato provavelmente inédito na história do Brasil, o assunto reforma agrária aparece nos jornais todos os dias. Na Internet, por exemplo, no noticiário veiculado no "Brasil Online", existe até uma seção intitulada "Sem terra", que divide o mesmo espaço com assuntos tradicionais como política, economia, esportes, etc. A polêmica atuação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), sem dúvida um dos responsáveis por essa intensa divulgação, estimula um debate que se espalha por todo o país.
Nessa discussão, uma das questões mais controversas e ao mesmo tempo mais ausentes na mídia diz respeito à viabilidade econômica dos assentamentos. A reforma agrária será mais que um instrumento de assistência social? Poderá resolver o problema da fome? Devolverá à sociedade, na forma de produção colocada no mercado, o dinheiro das desapropriações? Nos tempos do agribusiness - a grande cadeia empresarial em que está se transformando a atividade rural -, investir em pequenos agricultores será um bom negócio para o país?
É difícil responder a perguntas como essas sem conhecer as características da atividade agropecuária à qual se destinam os assentamentos. Seu nome é simples e vem sendo cada vez mais repetido por especialistas e funcionários do governo: é a agricultura familiar, aquela em que trabalham basicamente os próprios membros da família. Esse conceito, que se aplica à agricultura em geral, é definido em oposição ao modelo patronal, no qual predomina o trabalho assalariado.
Agricultor familiar, porém, não é sinônimo de pequeno produtor rural, alertam estudiosos como Ricardo Abramovay, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP). "Em última análise", diz Abramovay em artigo a ser publicado na revista "São Paulo em Perspectiva", "aquilo que se pensa tipicamente como pequeno produtor é alguém que vive em condições muito precárias, tem um acesso nulo ou muito limitado ao sistema de crédito, conta com técnicas tradicionais e não consegue se integrar aos mercados mais dinâmicos e competitivos. Que milhões de unidades chamadas pelo Censo Agropecuário de 'estabelecimentos' estejam nessa condição, disso não há dúvida. Dizer entretanto que essas são as características essenciais da agricultura familiar é desconhecer os traços mais importantes do desenvolvimento agrícola tanto no Brasil como em países capitalistas avançados nos últimos anos."
De fato, se o agricultor familiar fosse apenas aquele que vive em estado de penúria e produz só para autoconsumo, essa forma de produção agrícola não teria a importância que tem nos EUA, nos países da Europa e nos Tigres Asiáticos, como atesta a literatura especializada.
Os números são eloqüentes. Na França, em 1990, entre os trabalhadores ligados à agricultura, os assalariados eram apenas 14%, enquanto nos outros setores econômicos formavam ampla maioria: 85%. No Reino Unido, berço do modelo patronal, a parcela das unidades produtivas que empregavam algum trabalho assalariado reduziu-se de 40% em 1950 para 28% em 1986.
No Brasil, infelizmente, faltam dados. As tentativas de medir a importância da agricultura familiar são recentes. Por enquanto, a mais abrangente delas talvez seja a pesquisa "Perfil da agricultura familiar no Brasil: dossiê estatístico", publicada em agosto de 1996 por um convênio entre a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O estudo é baseado em dados do último Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), coletados em 1985. Não se trata, portanto, de um retrato atualizado da agricultura familiar nacional. Nesse intervalo de uma década, durante o qual o país foi vítima de vários choques econômicos, o quadro deve ter sido alterado por fatores diversos, como a onda de desemprego rural verificada nos dois primeiros anos do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. O próprio secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, Guilherme Leite da Silva Dias, teria avaliado em 400 mil as pequenas propriedades agrícolas abandonadas durante essa época.
Se essas cifras forem confirmadas pelo censo de 1996 (que deve ser divulgado em meados do próximo ano), o número de famílias que saíram do campo de 1994 a 1996 terá sido muito superior ao das assentadas no mesmo período: 103.969 - número recorde, alardeia o governo.
No entanto, mesmo considerando a eventual redução do universo da agricultura familiar de 1985 até hoje, o retrato que a pesquisa do convênio FAO/Incra apresenta não deixa de ser importante.
Contrastes
Como se tratava de uma classificação inexistente no censo do IBGE, o estudo precisou cruzar várias outras informações para identificar os estabelecimentos familiares. Optou-se por aplicar essa denominação às unidades que obedeciam simultaneamente a quatro critérios: direção dos trabalhos exercida pelo próprio produtor; ausência de despesas com empreitada; presença máxima de um empregado permanente e de quatro empregados na soma de temporários com permanentes; área total máxima de 500 hectares para as regiões sudeste e sul e de mil hectares para as demais.
O resultado: 4,339 milhões de estabelecimentos agropecuários, correspondentes a 75% do total nacional, eram familiares, reunindo 59,5% dos trabalhadores rurais do país. Tudo isso numa área equivalente a apenas 22,2% dos 374,9 milhões de hectares em que se registrou atividade agropecuária.
À menor quantidade de terra se somava outro obstáculo: a dificuldade no acesso ao crédito. Os agricultores familiares obtiveram 10,7% dos recursos disponíveis para financiamento, na média nacional, "puxada para cima" pelos estabelecimentos do sul, que conseguiram 65% do valor emprestado à agricultura familiar.
Ainda assim, nessa região 80,3% do crédito destinou-se às unidades patronais. E esse foi o menor desequilíbrio regional entre os dois tipos de agricultura, pois, nas regiões norte e centro-oeste, o conjunto patronal recebeu mais de 95% dos financiamentos.
Mas apesar de contar com menos de um quarto da área dos estabelecimentos patronais e pouco mais de um décimo do total de empréstimos, a agricultura familiar respondeu por 28% do que foi produzido no país.
Ao se dividir essa produção por hectare, revela-se outra surpresa: os agricultores familiares obtiveram produtividade média 12,6% superior à dos patronais.
O olho do dono
Para Carlos Enrique Guanziroli, coordenador do convênio FAO/Incra e professor de Economia da Universidade Federal Fluminense, esses números, longe de indicar uma situação incomum, demonstram que a agricultura familiar no Brasil guarda semelhanças com a existente em quase todos os países do mundo. O que significa que ela é mais eficiente na utilização de fatores escassos - no caso, terra e capital.
A explicação é simples: "Os grandes fazendeiros geralmente não utilizam toda a extensão de suas propriedades. Destinam, por exemplo, um pedaço da terra para a agricultura e outro para a criação extensiva de gado. O pequeno, por sua vez, precisa usar toda a terra que tem", diz Guanziroli.
Mas o agricultor familiar, é importante repetir, nem sempre é pequeno. É possível prosperar - e até ampliar a extensão territorial do estabelecimento - sem abandonar o modelo familiar, principalmente com a incorporação adequada de tecnologia. É o caso das family farms americanas, responsáveis por níveis tais de produção e remuneração que induziriam muitas pessoas a confundi-las com as patronais.
O artigo de Abramovay afirma que "mesmo em países com forte peso de tradição latifundiária, ao lado de milhões de unidades que podem ser consideradas a justo título como precárias, pequenas, gerando uma renda agrícola extremamente baixa, desenvolve-se também um segmento familiar dinâmico, capaz de integrar-se ao sistema de crédito, cujo comportamento econômico difere da famosa e tão estudada aversão ao risco, que adota a inovação tecnológica e integra-se a mercados competitivos".
O exemplo disso no Brasil é a região sul, onde grandes empresas dependem da produção de milhares de agricultores familiares.
Mas, além do caso sulino, o mais conhecido, Abramovay também cita dados de São Paulo, onde mais da metade do algodão, aves e ovos e 44% do milho, 43% da soja e 39% do café são produzidos em unidades familiares.
Tal participação na produção do estado mais rico do país é, certamente, digna de nota, e ajuda a compreender a existência de unidades familiares prósperas no Brasil. Mas elas são regra ou exceção?
Em busca de subsídios para questões como essa, a pesquisa do convênio FAO/Incra tomou o cuidado de mostrar as diferenças existentes dentro do universo da agricultura familiar. Para isso, dividiu os estabelecimentos familiares brasileiros em três estratos, determinados pela renda monetária bruta (diferença entre receitas e despesas provenientes da agropecuária).
O patamar A, reservado aos produtores com ganhos acima da média de sua região, reuniu 1,15 milhão de estabelecimentos, 26,5% do total.
Em média, essas family farms brasileiras contavam com área de 32,1 hectares, ocupavam 3,8 pessoas e alcançavam ganhos anuais de 57,1 salários mínimos por ano - no sudeste e no sul, esse número subia para mais de cem mínimos. O produtor que faz parte desse grupo, supõe o estudo, "cobre as necessidades de alimentação da família e ainda faz certos investimentos produtivos".
No outro extremo, o estrato C, ficaram os 50% mais pobres: 2,168 milhões de estabelecimentos com a ridícula renda de meio salário mínimo por ano. Segundo a pesquisa, esses estabelecimentos, em sua grande maioria, "não preenchem o perfil de produtores agropecuários" e servem provavelmente apenas como moradia de pessoas que exercem outro tipo de atividade rural - bóias-frias, por exemplo.
O nível B agrega 1,02 milhão de estabelecimentos - pouco menos que o A, portanto -, com área de 16,1 hectares e renda de 12 salários anuais. Esse grupo "consegue pelo menos garantir a alimentação da família", mas "não avança muito nas atividades produtivas por não ter capacidade de investimento adicional", diz a pesquisa.
No que diz respeito às diferenças regionais, essa divisão em três estratos só não se mostrou representativa no nordeste, onde "parecem existir apenas duas categorias de estabelecimentos familiares: uma minoria que atinge uma razoável renda média, ao lado de uma grande maioria (três quartos) que está próxima da simples subsistência", observa o estudo.
Assentamentos
Avaliados em relação a esse quadro, os assentamentos da reforma agrária poderiam ser considerados bem-sucedidos. Tomando como base um levantamento realizado em 1992 pela FAO ("Principais indicadores da reforma agrária"), a pesquisa mostra que em todas as regiões do país a média de renda dos assentamentos se enquadrava entre as dos estratos A e B da agricultura familiar.
Outros números, divulgados recentemente em relatório do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), órgão da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania estadual, revelam que, em grãos como milho, feijão e trigo, a produtividade dos assentamentos de São Paulo é ainda inferior à média estadual, mas muito superior ao índice mínimo exigido pelo Incra para considerar um estabelecimento produtivo. O relatório ainda informa que 4,6% da mandioca produzida no estado já é proveniente de assentamentos. Assim como 1,86% do milho, 2,83% do feijão da seca e 1,4% do das águas.
As cifras são tímidas, mas, considerando o pouco tempo de implantação da maioria dos assentamentos, já representam algo de positivo (ver texto abaixo sobre um assentamento paulista).
Walter Bianchini, coordenador técnico do Departamento Sindical de Estudos Rurais (Deser), lembra que os benefícios desse processo não se limitam à produção. "Nos municípios atendidos pela reforma agrária", diz ele, "os assentados produzem para seu próprio consumo, comercializam o excedente diretamente e a renda obtida circula no comércio local, aumentando a arrecadação das prefeituras" - caso do assentamento de Promissão (SP), retratado em reportagem da revista "Caros amigos" de julho deste ano.
Essa é justamente uma das vantagens mais freqüentemente apontadas na agricultura familiar: o estímulo à economia local, por meio de melhor distribuição de renda. Plínio de Arruda Sampaio, secretário agrário nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), sustenta que a agricultura familiar "é o investimento mais barato para acabar com a pobreza, uma política para reduzir as distâncias sociais e estimular o consumo de massa", como aconteceu em países como a França ou a Coréia do Sul. Assim, prossegue ele, estaria sendo criado espaço para a expansão da produção manufatureira instalada no país "e, portanto, para a utilização plena do capital já investido".
Produção integrada
Bianchini enumera outras vantagens da agricultura familiar: além de maior quantidade de empregos por área produtiva, ela garantiria alimentos para o consumo interno e contribuiria de forma decisiva para a balança comercial do país, com preços competitivos, a exemplo da produção avícola e fumageira do sul, que envolve uma articulação entre os beneficiadores e uma rede de pequenos estabelecimentos produtores.
Guanziroli lembra que 30 mil unidades familiares já gravitam em torno da agroindústria brasileira, e que na América Central megaempresas rurais como a norte-americana United Fruit abriram mão de plantações próprias para associar-se a redes de pequenos agricultores.
No Brasil, a referência obrigatória da relação entre os produtores e o agribusiness é a produção integrada em Santa Catarina, forte nos setores de carnes de aves e suínos, leite e fumo. Na avaliação de Tomé Coletti, secretário de Política de Desenvolvimento Rural da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar de Santa Catarina (Fetrafesc), essa parceria é responsável por algo perto de 40% da economia do estado.
Ele admite que a experiência de integração catarinense melhorou a renda do agricultor. Mesmo assim, "o rendimento está longe do ideal, as famílias continuam a ser exploradas. Hoje temos até atraso no pagamento de lotes de aves entregues à agroindústria, caso do Frigorífico Chapecó, um dos maiores do estado". Coletti acusa também a Sadia, outro complexo agroindustrial e o principal exportador de frangos, de fechar aviários integrados e de inteira responsabilidade do agricultor, muitos ainda não totalmente pagos. Segundo o secretário da Fetrafesc, são comuns as queixas de produtores contratados pela empresa, que "rompe os contratos sob as mais diversas alegações".
Problemas de natureza contratual têm se verificado também no setor de fumo, "sobretudo com a Souza Cruz e outras do ramo de tabaco". Plínio de Arruda Sampaio frisa que, apesar de sua importância nessa cadeia produtiva, o agricultor é obviamente o elo mais fraco. Sua relação com a empresa é "sempre de subordinação", diz.
Por essas e outras razões, a Fetrafesc vem lutando por garantias contratuais mais precisas, recorrendo se necessário a ações judiciais. "A empresa patronal precisa entender que o rompimento do contrato, sem razão fundamentada, pode levar o estabelecimento familiar à falência, com a perda do patrimônio", ressalta Coletti.
Do pepino à graviola
Analisando o desconfortável lugar do pequeno produtor na economia rural de grande escala, Marcos Jank, professor da Escola de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, frisa que sua única alternativa é "adicionar o valor por área e aumentar a rentabilidade, pois um minúsculo módulo de alguns hectares não dá sequer um salário mínimo por mês". Um exemplo está na produção de leite. Mais da metade dos pequenos núcleos produz em torno de 50 litros por dia, o que proporciona R$ 300 brutos por mês. Supondo que o agricultor tenha uma taxa de lucro "alta", de 30%, a renda será de R$ 90 mensais - "o que é ridículo", arremata Jank.
São três, segundo ele, os fatores que podem fortalecer a renda do estabelecimento familiar, além de adicionar valor por área: intensificar a produção, incorporar tecnologia e elaborar produtos diferenciados. Esses podem ser um novo tipo de queijo, uma novidade em frutas, um novo produto de horticultura. São desafios que levam o produtor a procurar nichos de mercado ainda não explorados.
"Essa é uma das saídas para a consolidação da agricultura familiar", concorda Carlos Moisés Rossi, secretário executivo do Departamento Rural da Central Única dos Trabalhadores (CUT) do Rio Grande do Sul. Ele cita experiências bem-sucedidas de industrialização doméstica de pepinos, frutas, molho de tomate e embutidos.
Iniciativas semelhantes estão sendo adotadas no extremo oposto do país, de acordo com o presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará e Amapá, José Roberto Oliveira Faro. Há algum tempo, agricultores familiares da região vêm se dedicando às culturas de frutas típicas, como o cupuaçu, graviola, maracujá e caju. Parte da colheita é aproveitada na fabricação de licores e iogurtes. Faro também menciona a fabricação doméstica de queijos e requeijões entre as iniciativas que têm despertado interesse, "mesmo enfrentando problemas de comercialização".
O presidente da federação entusiasma-se ao falar da primeira feira de produtos agrofamiliares de Belém (PA), "com grande participação de público e consumidores".
No Rio Grande do Sul, os agricultores familiares estão enfrentando o desafio da comercialização por meio de organizações de agricultores - que estão crescendo - e do cooperativismo. Rossi vê um "mercado cativo" para a agricultura familiar no abastecimento direto, na merenda escolar, nas creches e nos produtos da cesta básica. E aposta no desenvolvimento de outro nicho de mercado: a agricultura orgânica. Uma das propostas da entidade na discussão de um novo modelo de desenvolvimento para as 432 mil pequenas propriedades do estado é incentivar experiências alternativas, como a eliminação de fertilizantes à base de agrotóxicos. Ou "produzir, por exemplo, a própria semente do milho", diz Rossi.
Não são apenas intenções. No cultivo de hortifrutigranjeiros, segundo ele, muitas famílias gaúchas já estão utilizando "adubação verde" e biomassa.
Processo semelhante ocorre em Santa Catarina. "De forma paulatina, estamos substituindo insumos químicos por adubos orgânicos, preservando o solo, as plantações e a saúde dos animais", diz Coletti.
Pouca gordura
Essas são algumas das alternativas encontradas pelos pequenos agricultores familiares para escapar das ameaças constantes que os rondam e compensar a falta de apoio do governo, que só agora, com a anunciada expansão e correção de problemas do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), começa a insinuar uma melhora (ver texto abaixo).
Mas Plínio de Arruda Sampaio não encara com otimismo as intenções do governo. Para ele, a política econômica atual, "fundada na americana, do grande agribusiness", é "hostil à agricultura familiar". "O pouco que a família tira de diferença não dá para sobreviver na atividade. O agricultor familiar resiste um pouco queimando as gorduras que tem, que são poucas. Come menos, não compra roupa, não cuida dos dentes. Mas chega uma hora em que vai embora", diz ele.
As críticas não se resumem às correntes de esquerda. Luiz Marcos Suplicy Hafers, presidente da conservadora Sociedade Rural Brasileira e criador de gado e produtor de soja e café no Paraná e no sul da Bahia, diz que a atual conjuntura econômica levou a agricultura familiar "ao desastre, por falta de políticas tanto agrícola como financeira".
Jank, por sua vez, diz que o projeto do governo FHC para equacionar os problemas agrícolas "é uma faca de dois gumes". Globalização, abertura de mercado, sobrevalorização cambial e a integração do Mercosul "favorecem brutalmente a exclusão dos mais fracos, porque aumentam a concorrência e a concentração produtiva. Embora o governo tenha concedido um volume de recursos para os programas de assentamento e assistência agrícola, "na verdade ele está dando com uma mão e tirando com a outra. Por um lado, promove a exclusão, e por outro procura minimizar o impacto", conclui. Referindo-se à reforma agrária, Jank adverte que se o governo assentar os sem-terra "sem capacitar tecnicamente o núcleo rural familiar", grande número dos que poderiam sobreviver da lida e do negócio no campo desaparecerá. "Como já acontece com a pequena produção no interior de Minas Gerais e de Goiás - um pessoal que está quebrado irremediavelmente."
O professor da Esalq entende que a queda no preço dos alimentos, que contribui para a estabilidade da moeda, é mais um reflexo da penúria dos que vivem no campo do que da ação no mercado da produção em grande escala. "Enquanto houver gente capaz de viver na miséria em um pedaço de terra, haverá uma transferência de renda ao setor urbano, o que contribui para baratear a comida."
Um caso à parte
O assentamento de Porto Feliz, distante 100 quilômetros de São Paulo, não pode ser tomado como um caso típico. Fica à beira da rodovia Castelo Branco, pela qual os caminhões chegam ao maior centro consumidor da América do Sul em menos de duas horas. Pelas facilidades logísticas, quase tudo o que as 83 famílias produzem é vendido rapidamente.
Além disso, os agricultores contam com a assessoria do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), que presta assistência técnica, ajuda os assentados em assuntos burocráticos e encaminha pedidos de financiamento, entre outras atividades, que já incluíram a construção de uma represa.
Talvez por essas vantagens, incomuns à grande maioria dos assentamentos do país, os ex-sem-terra de Porto Feliz resistem bravamente aos percalços e intempéries. Como a brusca queda dos preços agrícolas em 94/95, quando muitos agricultores do município, dentro e fora do assentamento, perderam tudo o que apostaram - economias, trator, kombi, financiamentos - nas lavouras de couve-flor.
Apesar disso, foram muito poucos os que desistiram, informa Isabel Dorizzoto, funcionária do Itesp responsável pela supervisão do assentamento. Quem ficou vai contornando os obstáculos, diversificando a produção para não ser surpreendido pela loteria quase sempre perversa dos preços. Todos se queixam dos altos juros dos financiamentos, da ausência de política agrícola, etc. Mas não da vida que levam.
"Na indústria em que eu trabalhava, em Campinas, ganhava mais, certo, no fim do mês, mas aqui me sinto muito melhor, porque estou fazendo o que gosto", diz Manuel José Pereira, 48 anos, um dos milhões de brasileiros que vagaram entre a cidade e o campo. Ele substituiu em 1993 um assentado que estava utilizando o lote apenas como moradia, o que não é permitido. Atualmente, mostra com orgulho a lavoura de parreiras que está implantando no lote, onde cultiva também mandioca e frutas cítricas para comercialização.
Durvalino Rosa, 38 anos, que depois de crescer em lavouras de café no Paraná trabalhou numa indústria química em Nova Odessa (SP), explica sua opção pela agricultura com um dito popular: "Quem nasce para ser tatu vai morrer cavoucando". Ele está no assentamento desde o início e participou de seus melhores momentos, de 1987 a 1990. O dinheiro que ganhou nessa época lhe permitiu comprar trator e implementos agrícolas com recursos próprios.
Hoje, Durvalino é um dos que estão devendo para o banco por causa da couve-flor, e por isso não quer mais saber de financiamentos. Além disso, não aposta tudo numa única cultura. Planta feijão, milho, café, mandioca, arroz, vagem, pepino, tomate e poncã, além de criar galinhas para venda. "O esquema é a diversificação", afirma.
Germiro Nunes Gomes, um dos líderes do assentamento, já está lá há 11 anos. Chegou depois de andar pelos estados de Minas Gerais, onde nasceu, e Paraná. Em Porto Feliz, esperou acampado seis meses até ser assentado. Sua família - ele, a mulher Eurides e a filha de 9 anos - está às voltas com uma renegociação de dívida, também dos tempos da couve-flor. "Mas estamos contentes porque temos a nossa terra, estamos trabalhando e a expectativa é melhorar sempre", diz.
Tanto Manuel, que não tem filhos, quanto Durvalino e Germiro, cujos filhos ainda não podem ajudá-los, trabalham sozinhos. Caso bem diferente do de Alípio Batista, 57 anos. Quatro de seus dez filhos trabalham no lote, do qual tiram alimento para todos e entre R$ 200 e R$ 300 por mês, brutos. "Para ficar rico não dá mesmo, mas pelo menos dá para viver", diz. Ele também já foi assalariado, numa granja, antes de ocupar uma área da prefeitura e, finalmente, conseguir um lote no assentamento. E é outro que prefere a vida no campo: "A cidade está um sufoco. Aqui, dormimos com a porta aberta", diz.
A idéia é boa
Em junho do ano passado, o governo instituiu o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), destinado a conceder crédito e formular políticas públicas de apoio a essa atividade.
A idéia do programa é muito elogiada, mas sua aplicação tem sido alvo de muitas restrições. Luiz Marcos Suplicy Hafers, presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB) e criador de gado, produtor de soja e café no Paraná e no sul da Bahia, diz que o Pronaf é "fundamental", mas não tem sido suficientemente ágil.
Segundo informações publicadas na edição de 28 de agosto da "Folha de S. Paulo", "no ano passado, por causa das dificuldades na liberação dos recursos pelos bancos, só foram aplicados R$ 50 milhões da verba do Pronaf para investimentos no campo. A expectativa era liberar R$ 800 milhões".
De acordo com Hafers, o programa atendeu 100 mil famílias em 1996 e promete atender 600 mil neste ano. "No entanto, é preciso viabilizar 2 milhões de estabelecimentos familiares", calcula o presidente da SRB.
Para Tomé Coletti, secretário de Política de Desenvolvimento Rural da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar de Santa Catarina (Fetrafesc), os recursos do Pronaf são "pingados". Argumentando que a sobrevivência dos agricultores familiares é diferente nas diversas regiões do país, ele considera que os juros sobre os empréstimos do Pronaf deveriam variar conforme a região, "começando do zero".
Mas, de acordo com o presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará e Amapá, José Roberto Oliveira Faro, de alguma forma o programa diferencia as regiões. Dezoito municípios do Pará foram selecionados para as linhas de incentivo do Pronaf em 1996. "Mas até hoje não recebemos um tostão para custeio, investimento e infra-estrutura." Quando indagados sobre a liberação de crédito do programa, diz Faro, funcionários do Banco do Brasil e do Banco da Amazônia respondem que a prioridade é para os estados do sul e sudeste, "em virtude de o norte desfrutar dos recursos do fundo constitucional". Mas Faro contesta essa afirmação, que considera "discriminatória", pois o Pronaf foi criado para "reduzir as desigualdades regionais e, portanto, favorecer as unidades federativas mais carentes do país".
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