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De Marx a Einstein


"Romeu e Julieta", no Sesc / Divulgação

Repressão, censura, falta de apoio: dramaturgia procura uma saída

CECÍLIA PRADA

De todos os campos artísticos atingidos pela repressão após o golpe militar de 1964, o mais prejudicado foi sem dúvida o teatral. O que não é de estranhar – em toda a história da humanidade, em todas as latitudes, o fenômeno se repete. A atividade teatral é a fala direta com o público, carrega um potencial maior, imediato, de sublevar multidões – donde ser a primeira a ser proibida. A alguém que duvide disso bastará consultar nos arquivos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, a lista de peças proibidas pela ditadura – elas são 40 mil, e até hoje não encenadas.

Para compreender bem essa época, é preciso retroceder ao final da década de 50. O grande desenvolvimento do teatro paulista naquele período – a partir do verdadeiro "divisor de águas" que foi a fundação, em 1948, do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) – e o amplo debate ideológico proporcionado por um regime de plena democracia como foi o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) criaram condições para o surgimento de vários grupos: o Arena (de 1953, mas que atinge sua maturidade com a estréia de Eles não Usam Black Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1958), o Oficina, de José Celso Martinez Corrêa, fundado em 1958, o Pequeno Teatro de Comédia, de 1960, para citar somente alguns – todos decididos a estimular uma dramaturgia nacionalista, voltada à discussão de temas sociais.

Esse empenho programático conseguia, entretanto, evitar simplificações e não subordinava critérios artísticos à ideologia. Pelo contrário, somou-se, em todas as companhias, ao aprimoramento profissional – o Arena, por exemplo, teve Eugênio Kusnet, herdeiro da tradição stanislavskiana, para formar seus atores. Pela primeira vez na história teatral do país, a um alto nível de atuação e de direção incorporava-se o estímulo a autores em começo de carreira – até então eram precárias, isoladas, essas manifestações. Contava o novo teatro "sério" que se fazia no Brasil com a vantagem da experiência acumulada, vinda de vários pontos: do expressionismo alemão dos anos 20, revalorizado e ampliado por Bertolt Brecht, ao vitalismo do teatro norte-americano dos anos 30 e 40 (Clifford Odets, como autor; influência direta do que fora o Group Theater – isto é, uma companhia nova-yorkina estável, nos anos 30, empenhada no aprimoramento da atuação, com a introdução das mesmas técnicas de Stanislavski que resultaram na criação do Actor’s Studio).

Mas, nos anos 60, outra revolução teatral de cunho "social" processava-se, nos Estados Unidos, partindo também de Nova York (com a liderança do Living Theater, de Julian Beck e Judith Malina, e do Open Theater, de Joe Chaikin). Retomava a programática do Group Theater mas desfazia-se de seu cunho realista e incorporava revolucionárias técnicas de artistas europeus – dos ingleses, como Peter Brook, a um polonês genial, como Jerzy Grotowski, todos sob a égide do iluminado sonhador que fora Antonin Artaud. A vinda ao Brasil do Living Theater, em 1970, marcada por episódios de repressão e prisão, trouxe elementos dessas novas formas de expressão.

Na dramaturgia, importantes nomes surgiram, na década de 60 – Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Viana Filho, Plínio Marcos, Dias Gomes, Augusto Boal. Somados a autores mais antigos, como Nélson Rodrigues, Ariano Suassuna, Jorge de Andrade, constituíam um núcleo de qualidade que fornecia regularmente material para as novas companhias. E o ano de 1969 marca o aparecimento de quatro autores: Leilah Assumpção, Consuelo de Castro, José Vicente e Isabel Câmara. A partir dali, porém, nossa dramaturgia se esvazia, à força.

A década de 70 continua, porém, a ter um teatro de alta qualidade, contando com um grupo de diretores e produtores excepcionais, como Ruth Escobar, surgida em 1960. Atriz, diretora e produtora, em 1968 ela trouxe de Paris para São Paulo o espetáculo Cemitério de Automóveis, dirigido pelo jovem argentino Víctor García – espetáculo que, na opinião do crítico Sábato Magaldi, foi "a primeira e efetiva revelação do espírito de Antonin Artaud no teatro brasileiro". E O Balcão, de Jean Genet, outra iniciativa sua, também com a direção de García, foi, em 1969, pelo próprio choque provocado pela sua ousadia, "o maior acontecimento do nosso teatro, até aquela data". Suas produções prosseguiram: em 1972, A Viagem, dirigida por Celso Nunes, uma primeira tentativa de adaptação de Os Lusíadas, de Camões – retomada e muito bem-sucedida quase 30 anos mais tarde (em 2000).

Se nos anos 70, pressionada pela censura, nossa florescente dramaturgia minguava e os repertórios se esvaziavam de autores brasileiros, vários outros diretores mantiveram sua atividade criadora, com produções sofisticadas, quer com peças clássicas ou modernas do repertório estrangeiro, quer ressuscitando autores nacionais esquecidos. Em 1967 o grande êxito do Teatro Oficina fora O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, nunca encenada antes – por força da censura de Vargas. Já o ano de 1968 foi marcado pelo estrondoso sucesso de Roda Viva, de Chico Buarque, cuja montagem foi responsável pela histórica invasão do teatro pela polícia, com a prisão dos membros da companhia e o conseqüente fechamento da casa de espetáculos.

Nos tempos da ditadura, ir ao teatro ou a um show de MPB era um ato político. O público aumentava consideravelmente, em relação aos anos anteriores, engrossado por estudantes. Ia-se ao teatro em sinal de rebeldia, de protesto, pois ele era, como dizia Jerzy Grotowski, "um veículo, um meio de auto-reflexão, uma possibilidade, enfim, de salvação". Nas próprias universidades, e até nas escolas secundárias, a febre teatral constituía grupos, estimulava produções – fenômeno nunca registrado antes.

No livro Cem Anos de Teatro em São Paulo, Sábato Magaldi aponta três fatores do desencorajamento da atividade no país (nunca tivemos uma tradição teatral forte, como nos países hispânicos): o desinteresse do público, a censura, a falta de verbas. Cumpre lembrar que a censura não se limitou ao período das ditaduras, Vargas ou pós-1964. Ela sempre esteve presente, no campo dos espetáculos, apoiada na "defesa da moral e dos bons costumes". Por exemplo: em 1957 foram três os espetáculos censurados, em São Paulo: Édipo, de Sófocles (Teatro Universitário), Sortilégio, de Abdias Nascimento, e Perdoa-Me por Me Traíres, de Nélson Rodrigues. Alguns anos antes, o arcebispo de São Paulo proibira os católicos, sob pena de excomunhão, de assistirem à peça Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre, no TBC.

Restabelecida a normalidade democrática no país, o teatro idealista, aquele capaz de entusiasmar platéias lotadas – sobretudo de jovens –, estava praticamente extinto. Em seu lugar surgiam espetáculos recheados de efeitos especiais com os quais diretores da nova geração procuravam competir com a indústria cinematográfica – peças digestivas, com dramaturgia fraca.

Ainda em 1995, dizia o diretor Antunes Filho – que há mais de 20 anos está à frente do Centro de Pesquisa Teatral do Sesc: "O teatro hoje sobrevive apenas como (...) um passatempo, um preâmbulo a uma ceia (...) Há duas vertentes (...) um teatro de costumes feito por pessoas que vieram da TV, e um teatro pseudo-artístico, que não apresenta mais do que pílulas douradas sofisticadas, recendendo a Chanel nº 5".

A falta de subsídios estatais e o esfacelamento de uma programação cultural inteligente continuam a prejudicar o teatro. As leis de incentivo cultural não suprem a lacuna. A classe empresarial, a principal beneficiária, ainda não despertou para a responsabilidade de incentivar de maneira adequada as atividades culturais do país, optando apenas para as que rendem "maior visibilidade". Exceção digna de nota é o trabalho desenvolvido pelas entidades, como Sesc e Sesi, que tem favorecido institucionalmente a revelação de talentos e a difusão das artes cênicas.

No entanto, um elemento novo ressalta, no campo da dramaturgia, aqui como no exterior, isto é, a ampliação temática dos espetáculos, proporcionada pelo número cada vez maior de adaptações de obras literárias, ou o tratamento dado a temas que originalmente não foram concebidos para o teatro. Essa abertura foi possibilitada pela grande expansão formalista da década de 60, pela renovação de correntes de atuação, pelo somatório de meios variados. A dramaturgia contemporânea deixou de ser, em todo o mundo, específica de autores. Cresceu, e está crescendo, com atividades criativas de grupos e de diretores que, longe do teatro comercial, continuam a desenvolver projetos estimulantes e inteligentes.

Basta um exemplo para ver que esse tipo de teatro está voltando, enfim, a despertar o interesse do público, saturado de besteirol e plumagens – as peças Copenhagen e Einstein constituíram, em 2001/2002, sucesso absoluto de bilheteria, em todo o mundo. O Brasil não foi exceção. Platéias lotadas, com espectadores de todas as idades, apesar de ambas tratarem (a primeira durante três horas) de física quântica.

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