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A era da parceria
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País descobre a força da participação na luta contra problemas sociais
IMMACULADA LOPEZ
Nos últimos dez anos, um novo personagem conquistou espaço nos debates e projetos por um país melhor: o chamado "terceiro setor". Junto com ele, a sigla "ONG", de organização não-governamental, passou a fazer parte do vocabulário das universidades, da imprensa, do próprio governo e da população. Os números ainda são incertos, mas estima-se que esse segmento envolva cerca de 12 milhões de pessoas, entre gestores, voluntários, doadores e beneficiados, movimentando quase R$ 2 bilhões por ano. O levantamento foi realizado em 2000 pela consultoria Kanitz & Associados entre as 400 maiores entidades do Brasil, que representariam 95% da atividade na área.
Compreendido como o conjunto de organizações sem fins lucrativos que não fazem parte do governo (o "primeiro" setor), nem do mundo empresarial (o "segundo"), o terceiro setor passou a ser alvo de recursos e esperanças.
"Já no início do século 20, houve diferentes tentativas de constituir organizações cívicas, como os movimentos sufragistas e pacifistas, mas que foram fortemente reprimidas nas décadas seguintes", relata a antropóloga Leilah Landim, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente do Conselho Deliberativo da Fase, uma organização não-governamental sediada na capital carioca.
Findo o governo Vargas, essas iniciativas ressurgem, ao lado das associações de estudantes, de artistas e de escritores. Entretanto, mais uma vez, elas se fragilizam com o golpe militar de 64. E voltam a se revigorar com a luta pela democracia. Já no final dos anos 70 e no decorrer da década de 80, são criadas organizações sociais históricas, como a própria Fase, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), o Pólis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), além de ONGs dos movimentos ambientalista, feminista, negro e indígena, entre outros. "A atuação de todas elas torna-se fundamental para tecer a democracia brasileira", avalia Leilah. Afinal, mesmo com o fim da ditadura, persistem – ou até se intensificam – outros problemas, como as desigualdades sociais, raciais, as crises econômicas e ambientais.
"A idéia de terceiro setor faz parte de um processo de mudança da democracia representativa para a participativa", diz o empresário Oded Grajew, diretor-presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. A sociedade percebe que não basta exercer o direito ao voto e escolher representantes. Na verdade, descobre que não precisa estar no governo para fazer alguma coisa e que é importante acompanhar, opinar, interferir. Essa mudança de postura envolve inclusive o empresariado.
"Nos últimos dez anos, as empresas brasileiras saíram de uma total indiferença em relação à realidade social para começar a agir na comunidade", afirma Grajew. Elas fazem as primeiras tentativas de criar suas próprias fundações e institutos ou ainda de financiar projetos de ONGs para garantir direitos básicos como alimentação, saúde e educação. "E hoje já principiam a dar o passo seguinte: a gestão cidadã", completa o dirigente do Instituto Ethos. Fica claro que não basta dar assistência a comunidades carentes. É necessário que a empresa, dia a dia, considere o bem-estar do seu público interno, preserve o meio ambiente, respeite o consumidor, priorize fornecedores que defendam os direitos humanos e assim por diante. A própria criação do Instituto Ethos em 1998 marca essa nova fase. Sem fins lucrativos, a entidade visa mobilizar, sensibilizar e ajudar as empresas a gerirem seus negócios de forma socialmente responsável.
Além do movimento da cidadania empresarial e da luta pela transformação social, a história do terceiro setor tem outro capítulo bem mais longo: o da tradicional filantropia. São hospitais, orfanatos, asilos, abrigos presentes no Brasil desde os tempos da Colônia e que nunca deixaram de cumprir um papel essencial de assistência.
"A expressão ‘terceiro setor’, que surge nos anos 90, tenta então agrupar todo esse conjunto de organizações", explica Leilah Landim. Na sua opinião, foi importante num primeiro momento dar evidência à sociedade civil como um todo, mas a antropóloga põe em dúvida a legitimidade da expressão nos dias de hoje. "Mais do que revelar, ela esconde muitas coisas, pois não existe um conjunto homogêneo de ações. Ao contrário, há grandes diferenças, que não podem ser ocultadas."
Sua avaliação é compartilhada por Oded Grajew: "Além de dar uma idéia de hierarquia – primeiro o governo, segundo as empresas, terceiro o ‘resto’ –, o nome ‘terceiro setor’ não mostra a real diversidade desse grupo". Tornou-se sinônimo de um universo variado, que engloba desde organizações comprometidas historicamente com o desenvolvimento social até clubes recreativos, igrejas e sindicatos, passando por entidades meramente assistencialistas e fundações empresariais. E cada grupo tem de tudo. No caso das empresas, por exemplo, algumas estão apenas preocupadas com sua imagem, enquanto outras estão realmente comprometidas com o futuro da humanidade.
Para Grajew, esse é um dos grandes desafios vividos pelo segmento: separar o joio do trigo. "Só assim poderemos avaliar resultados e garantir credibilidade às organizações", diz o empresário. E adverte que não bastam boas intenções, é preciso haver uma conduta responsável, coerente e eficiente. "A complexidade da sociedade civil não nos permite olhá-la de forma romântica", completa Sérgio Haddad, presidente da Abong (Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais), criada em 1991 justamente para representar o grupo de ONGs empenhadas no fortalecimento da cidadania e da democracia. Ele ressalva que esse é um grupo sempre em movimento. "Se, na época da ditadura, nosso papel era muito mais de confronto e denúncia, com a democratização começamos a fazer propostas e parcerias com o governo", diz Haddad. As ONGs passam a desenvolver estratégias para interferir nas políticas públicas, mas sem abrir mão de pressionar quando necessário.
De fato, esclarecer a relação com o setor público é outro ponto crucial para o futuro das ONGs. A pesquisadora Leilah Landim acredita que, mantendo seus valores e autonomia, elas podem fazer muito em parceria com o Estado. Seu grande diferencial é a proximidade com as comunidades, além de muita criatividade para abrir caminhos e apontar soluções. Mas isso não significa que desejem ocupar o lugar do governo. "Pensar que o crescimento do terceiro setor é prova da falência do Estado é uma visão perversa e inócua, pois nenhuma ação substitui as políticas públicas." Há muito trabalho por ser feito, e nenhum personagem pode se omitir.
Encontro em Porto Alegre
De 23 a 28 de janeiro, acontece o 3º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Pela terceira vez, o Brasil sediará o evento, considerado um marco na articulação das organizações sociais do mundo inteiro. "Essa realização revela que o movimento da sociedade civil brasileira é maior do que se imaginava", avalia o empresário Oded Grajew, um de seus idealizadores e diretor-presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social.
Em 2002, mais de 15 mil delegados, de quase 5 mil organizações da sociedade civil de 131 países, participaram dos vários debates, seminários e testemunhos do fórum. Mais de 51 mil inscritos, falando 186 diferentes idiomas, lotaram as oficinas, encontros e manifestações. A intensa programação foi acompanhada por nada menos do que 2,4 mil jornalistas de 48 países. E, para 2003, espera-se um público ainda maior. Ano a ano, também são ampliadas as atividades. Além de encontros regionais, como o Fórum das Américas, o Europeu e o Pan-Amazônico, irão acontecer o Fórum Mundial da Educação e Forumzinho Social Mundial (destinado a adolescentes e crianças), ambos também em Porto Alegre, em janeiro.
Realizado propositalmente nos mesmos dias do Fórum Econômico Mundial, o Fórum Social busca ser um contraponto global ao modelo neoliberal de desenvolvimento. "Inicialmente, ele representou um momento de encontro, trocas e alianças", descreve Grajew. O grande alívio de descobrir que não se está sozinho. "Em 2003, entretanto, nosso objetivo é traçar estratégias e caminhos para concretizar as mudanças que desejamos", diz Grajew. É hora de dar visibilidade às propostas para concretizar os principais eixos temáticos do evento: desenvolvimento sustentável, distribuição de riquezas, pluralidade étnica e cultural, promoção da democracia e da paz.
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