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30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente

Ilustração: Editoria de Arte
Ilustração: Editoria de Arte

Sancionado em 13 de julho de 1990, e em vigor desde outubro do mesmo ano, o Estatuto da Criança e do Adolescente é considerado um marco legal no país. Uma importante referência mundial no que diz respeito a direitos de cidadãos e cidadãs com idade inferior aos 18 anos. Popularmente conhecido pela sigla ECA, esse estatuto é composto de 267 artigos. Conjunto de normas voltado para a regulamentação do princípio estabelecido pelo artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu que crianças e adolescentes formam um grupo com direit os específicos e que demandam proteção especial tanto do Estado quanto da sociedade e da família. “O ECA foi uma verdadeira revolução para a forma de olharmos e protegermos todas as crianças e adolescentes brasileiros, seus direitos e seu melhor interesse, pois rompeu com uma histórica tradição jurídica que os compreendia como propriedades de suas famílias, como objetos de posse sem nenhum direito, reconhecimento ou desejos próprios”, explica o advogado Pedro Affonso Hartung, coordenador do programa Prioridade Absoluta no Instituto Alana – organização de impacto socioambiental que promove o direito e o desenvolvimento integral da criança. De lá para cá, apesar de avanços, o ECA ainda enfrenta inúmeros desafios. “Passamos os últimos 30 anos sem que, de fato, essa implementação se desse completamente, porque, apesar de a lei ser a expressão de um dos mais modernos e arrojados pensamentos sobre a infância do mundo, ela não reflete necessariamente a posição do conjunto da sociedade brasileira, adultocêntrica, que ainda revela muita dificuldade em aceitar que crianças não são adultos”, pondera Viviana Santiago, gerente de Gênero e Incidência Política da Plan International Brasil – organização não governamental presente em 70 países, que defende os direitos das crianças, adolescentes e jovens. Para compreendermos esse cenário, Hartung e Santiago tecem suas perspectivas.

 

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Quem pariu Mateus que o embale?

PEDRO AFFONSO HARTUNG

Certamente, você já deve ter ouvido ou até mesmo falado esse ditado popular em algum momento da sua vida. Recorrentemente, ele é utilizado para ressaltar o dever das famílias de educar, cuidar e zelar autonomamente por seus filhos. Há um senso comum de que as crianças são exclusivamente responsabilidade de suas famílias e de que o restante da sociedade ou demais cidadãos não devem, nem podem, contribuir com esse cuidado. Em uma sociedade sexista como a nossa, essa responsabilidade recai, em especial, nas mães. Como parte de um pensamento e um agir individualista, aceita-se a ideia de que uma criança é problema de quem foi responsável por sua gestação – e não meu ou nosso.

Uma criança chorando por horas em um restaurante ou viagem de avião? Que mãe é essa que teve a ideia de trazer seu filho aqui? A menina com dificuldades de comportamento na escola? O que tem feito essa mãe ausente ou irresponsável? Crianças desejando brinquedos propagandeados pela publicidade infantil? Por que essa mãe não coloca limites e educa melhor seu filho? Um desafio perigoso de internet veiculado por um influenciador no YouTube, Instagram ou Tiktok? Como pôde a mãe não monitorar direito o que seus filhos consumiam na internet? Crianças vendendo balas de noite no farol ou na mesa do restaurante? Onde está essa mãe criminosa e exploradora? Crianças em situação de rua ou com fome em casa?

Por que essa mãe não trabalha mais para garantir o sustento de seus filhos?

A culpa, para a maioria de nós, é daquela “quem pariu”! Em uma sociedade em que o cuidado com crianças é associado exclusivamente a um papel feminino, homens se sentem confortáveis e legitimados para diversas práticas de abandono – material, intelectual ou afetivo –, deixando mais de 5,5 milhões de crianças sem sequer seu nome paterno na certidão de nascimento.

No mesmo sentido, em um Estado e sociedade com instituições patriarcais, as crianças e seu cuidado não são responsabilidade de gestores públicos, parlamentares, empresários, profissionais diversos ou qualquer outro cidadão. Contudo, tal responsabilização exclusiva da família (como vimos, na prática, da mãe) é contrária também a uma importante e celebrada lei brasileira: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa trinta anos neste ano de 2020.

Detalhando o artigo 227 da Constituição Federal, o ECA foi uma verdadeira revolução para a forma de olharmos e protegermos todas as crianças e adolescentes brasileiros, seus direitos e seu melhor interesse, pois rompeu com uma histórica tradição jurídica que os compreendia como propriedades de suas famílias, como objetos de posse sem nenhum direito, reconhecimento ou desejos próprios. Um verdadeiro infante (lat infans, -ntis): aquele que não fala, sem voz própria, silenciados. Com o ECA, crianças e adolescentes passam a ser sujeitos de direitos reconhecidos na sua singularidade e no seu estágio peculiar de desenvolvimento progressivo de suas capacidades. Apesar de mais vulneráveis, são cidadãos; sujeitos às leis e protegidos de forma especial e integral por elas, com absoluta prioridade para seus direitos e melhor interesse.

E tal proteção absolutamente prioritária de todas as crianças e adolescentes brasileiros foi legalmente estabelecida (artigo 4º do ECA) como um dever compartilhado e solidário entre famílias, comunidades, sociedade e Estado. Ou seja, todos nós, em qualquer posição social ou papel estatal, com filhos ou sem conviver com crianças, temos a obrigação jurídica de zelar por todas as crianças – não só os nossos filhos, mas os filhos dos outros e os filhos que parecem ser de ninguém – em especial aquelas em situação de risco ou vulnerabilidade e mais afetadas pela desigualdade, como as crianças negras e periféricas.

Isso significa que em todas as decisões realizadas, não só as de cunho privado das famílias, como também aquelas tomadas por instituições e agentes da sociedade e do Estado, deve-se colocar crianças e adolescentes, seus direitos e seu melhor interesse sempre em primeiro lugar. Essa diretriz vale para políticas públicas, regulatórias ou orçamentárias, vale também para ações empresariais e estratégias comerciais, decisões em escolas, hospitais e atividades culturais. A partir da criação do ECA, todos nós – individual e coletivamente – devemos colocar todas as crianças e adolescentes em primeiro lugar nas nossas preocupações e decisões diárias.

 

INVESTIR NA PRIMEIRA INFÂNCIA

Esse não é somente um mandamento legal, mas também uma ação estratégica para o desenvolvimento social e econômico de todo o país, pois cuidar de uma só e todas as crianças é cuidar de todos nós como sociedade. Conforme afirmam sérias pesquisas econométricas, como a do Prêmio Nobel de Economia James Heckman, o investimento na criança, especialmente na primeira infância, traz retornos mais vantajosos que qualquer outra aplicação existente, pois possibilita o cuidado adequado em um dos momentos mais importantes do desenvolvimento humano.

Entretanto, isso não significa que qualquer visão pessoal de mundo possa ser imposta às crianças e suas famílias, em nome de uma pretensa proteção com vieses subjetivos e muitas vezes discriminatórios. Em tempos de infeliz exacerbação de dogmas ou preceitos individuais, religiosos, ideológicos ou moralistas no ambiente público e estatal, é importante sempre lembrar que a proteção das crianças e adolescentes deve ser pautada pelos valores democráticos estabelecidos pela própria Constituição, que determina a garantia das liberdades e da diversidade de ser e estar no mundo para todos, inclusive para crianças e adolescentes e suas famílias.

 

PAPEL DE TODOS

Assim, cuidar das crianças e adolescentes com absoluta prioridade não é substituir o papel exercido por mães, pais e seus familiares. Na maioria das vezes, o exercício social do dever de cuidado da criança é por meio do apoio e do fortalecimento das próprias famílias no exercício da sua capacidade de cuidado e de parentalidade positiva.

Cuidar das crianças é também cuidar de quem cuida delas. É garantir que as famílias tenham o apoio social e estatal para a fruição de todos os direitos econômicos, culturais e sociais – como acesso ao trabalho digno, renda estável, moradia adequada, saneamento básico, segurança alimentar, saúde, educação, cultura e assistência social, especialmente em tempos de pandemia.

Celebrar os 30 anos do ECA é relembrar este compromisso e este dever para que, então, possamos, de uma vez por todas, efetivar esse verdadeiro projeto de sociedade e de país, pelo qual Mateus e quem pariu Mateus serão embalados também por mim e por todos nós.

 

Pedro Affonso Hartung é advogado, coordenador do programa Prioridade Absoluta no Instituto Alana – organização de impacto socioambiental que promove o direito e o desenvolvimento integral da criança.

 

Precisamos falar sobre o ECA

VIVIANA SANTIAGO

Eu sou Viviana Santiago e gosto de me apresentar como negra, mulher, nordestina, professora e mãe. Mãe solo de um menino. Mãe solo de um menino negro. Eu me apresento dessa maneira porque gosto de lembrar a mim mesma e às pessoas que entram em contato comigo que, embora muitas vezes estejamos sob o mesmo teto – e aqui estamos sob esse imenso teto da escrita que nos une –, nós não temos as mesmas histórias nem vivemos as mesmas realidades. A maneira como somos lidas e lidos nessa sociedade impacta diretamente o nosso acesso a direitos, o modo como desenvolveremos nossos potenciais e os lugares que seremos estimulados a ocupar e interditados de conhecer.

Nasci em 1980 e talvez dentre todas as coisas que eu possa dizer sobre mim a mais impactante seja esta: Durante 10 anos da minha vida, eu não fui reconhecida juridicamente como uma pessoa de direitos. Eu era uma “menor”. Durante 10 anos, eu não pude ser criança, e seguramente não convivi com adolescentes. Todas as pessoas abaixo de 18 anos com quem eu convivi eram “menores” e estavam em situação irregular.

Como eu disse, sou mãe de um menino que hoje tem 14 anos e quem me conhece pode chamá-lo de João Marcos ou Marquinhos. Quem não me conhece, sempre que eu menciono sua idade, me diz: “Ah, mas ele é grande, né?”. Ao que eu respondo: “Sim, já é um adolescente”.

Para muitas pessoas, essas são apenas palavras vazias: menor, criança, adolescente. Eu sou daquelas pessoas que acreditam que as palavras têm poder, que a maneira como nomeamos a realidade faz com que ela se constitua. Sendo assim, pensar a diferença entre “menor” e adolescente é o coração da discussão sobre o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

SUJEITOS DE DIREITOS

Instituído em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente é a expressão brasileira da Convenção sobre os Direitos da Criança. Traz uma mudança substancial na maneira de perceber, lidar e, principalmente, construir a política pública e o acesso a direitos para um importante segmento da população brasileira: as crianças e os adolescentes. Segmento que corresponde, atualmente, a 60 milhões de brasileiras e brasileiros. O Estatuto traz consigo a necessária visão de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos.

Com isso, informa à sociedade que não são menores e traz a ideia de reconhecimento de seu período de desenvolvimento como fundamental para a compreensão desse grupo.

Antes do Estatuto, quem tinha menos de 18 anos era compreendido como “menor”, e, em vez da proteção, vigorava uma leitura da situação irregular que, prezando muito mais por manter a ordem social, confinava meninas e meninos que não estivessem ajustados. Nesse momento proteção e punição se confundiam: se uma criança tivesse problemas “de adaptação à família”, “não quisesse frequentar a escola”, “fosse muito pobre”, “fosse órfã”, “tivesse cometido uma infração”, todos esses casos eram encaminhados da mesma maneira: a internação, que cumpria com o ideal de segregação da sociedade em nome da manutenção da ordem.

Depois de muita atuação de diversos movimentos, organizações sociais, ativistas e juristas que militam pelo reconhecimento e pela valorização da infância, deu-se a aprovação da lei que muda o enfoque da repressão para a proteção. Meninas e meninos passaram a ser reconhecidos como sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento. E essa é uma das mais poderosas ideias.

 

GARANTIA AO ACESSO

Amparado na ciência, o ECA reposiciona a infância no Brasil: não cabe mais a percepção de que crianças e, especialmente, adolescentes sejam adultos em miniatura. Ao reconhecer seu momento de desenvolvimento, reafirma o papel das pessoas adultas – família, Estado e conjunto da sociedade – na promoção das condições para que esse desenvolvimento se dê de maneira plena.

Aí outra ideia poderosa entra em cena: a ideia de que meninas e meninos possuem direitos e devem acessá-los. Devemos, como conjunto da sociedade, criar condições para que sejam respeitadas as etapas de vida em que estão e para que possam acessar as informações e participar das decisões que afetarão a sua vida. O ECA ajudou o país a implementar uma cultura que reconhece o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à formação profissional e à cultura. Além de respeito à dignidade, à liberdade e à convivência familiar e comunitária como inerente a todas as meninas e meninos do Brasil. E mais, estabelece como deve se dar o processo de responsabilização e ressocialização de meninas e meninos que cometem atos infracionais.

A implementação do ECA tem sido um desafio. Passamos os últimos 30 anos sem que de fato essa implementação se desse completamente, porque, apesar de a lei ser a expressão de um dos mais modernos e arrojados pensamentos sobre a infância do mundo, ela não reflete necessariamente a posição do conjunto da sociedade brasileira, adultocêntrica, que ainda revela muita dificuldade em aceitar que crianças não são adultos. É necessário que se compreenda isso, especialmente na hora de garantir a prioridade delas no acesso a direito e à especificidade das punições a elas aplicadas, no caso de alguma infração.

 

CONSCIÊNCIA E AÇÃO

Gostaria de pedir que, por fim, vocês me permitissem centrar minha reflexão em nós mesmas e em nós mesmos, RGs, pessoas nesse país tão grande, para nos posicionarmos quanto ao que, para mim, é um dos principais desafios para a implementação real do ECA no Brasil. Isto é: a ideia de que todas as crianças e adolescentes importam e devem ser protegidos e protegidas ainda não é um fato concreto para a maioria de nós.

Ainda somos aquelas pessoas que escutamos a fala brava da chefia, mas gritamos e batemos na nossa criança em casa porque achamos que bater é essencial para disciplinar. Nós que sabemos que mais de 90% dos crimes graves no Brasil são cometidos por adultos, acreditamos na redução da maioridade penal como solução. Nós que amamos nossas filhas, filhos, sobrinhas e sobrinhos, não acreditamos que aquela criança ou aquele adolescente negro devam ter os mesmos direitos que elas e eles. Precisamos mudar.

Implementar os direitos das crianças e dos adolescentes se faz impossível sem que haja uma real valorização da criança e do adolescente, de todos e de cada um deles. Veremos o ECA integralmente implementado quando todas as pessoas adultas puderem dizer, da mesma forma como dizem as trabalhadoras em seus protestos: “Mexeu com criança, mexeu comigo, e eu me importo com todas as crianças”.

Meninas e meninos não são menores, não estão em situação irregular, são gente. Gente como a gente e que, quando bem cuidadas e protegidas, contribuem para a reconstrução dessa sociedade agora. Mudemos nossa percepção. Não são apenas palavras. Respeitando e assumindo a importância de crianças e adolescentes, como diria Gonzaguinha: “Nós podemos tudo, nós podemos mais, vamos lá fazer o que será…”

 

Viviana Santiago é gerente de Gênero e Incidência Política da Plan International Brasil – organização não governamental de origem inglesa, presente em 70 países, que defende os direitos das crianças, adolescentes e jovens, com foco na promoção de igualdade de gênero; membro do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030).

 

Assista ao Sesc Ideias 30 anos do ECA – Perspectivas para as Infâncias e Adolescências – com a professora de Direitos Humanos e ECA na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) Lucineia Rosa dos Santos, o advogado Guilherme Perissé, e a professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Ana Cristina Juvenal da Cruz – exibido em julho e disponível no YouTube Sesc SP.

 

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