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Quarentena
curtopoema/alcogel/003
sob as sombras do edifício
gente muda em máscaras de papel
boiam napoleões de hospício
em brancas piscinas de alcogel
curtopoema/004
se paranoia matasse
se o vírus fosse da china
se o povo não panelasse
me suicidaria dormindo
com pico de cloroquina
curtopoema 022
seja aqui
nos estates
ou na china
seja vigarista
seja fake
ou terraplanista
seria a cloroquina
o gás sarim
desta nova corja
nazista?
curtopoema 012
a culpa do vírus
é dos cientistas, do Papa
dos chineses, dos artistas,
dos mestres, dos comunistas,
da ONU, dos jornalistas...
mas a culpa é mesmo
dos culpistas
cov a
cov il
cov arde
cov eiro
cov id
ainda
com vida?
para falar
com máscara:
perseverar
percevejar
percervejar
perversejar
crachá / da série invisíveis
está escrito no crachá
do hospital miguel couto
maria dos anjos souto
de avental branco e grená
faxineira de ambulatório
pinça, gaze, esparadrapos,
agulhas, gesso, supositórios
da morte maior que a vida
cura o piso dos mictórios
só não cura a própria ferida:
sua avó com infecção
a necrose de seu marido
sua filha mal do pulmão
seu filho recém-nascido
é mais um ser desnutrido
dormindo entre farrapos
à beira de um precipício
como será que consegue
antes que o bicho pegue
varrer o próprio suplício?
Xico Chaves é poeta, compositor e artista visual. Na publicação Xico Chaves (Fase 10, 2012), o artista reuniu suas principais obras ao longo de 40 anos de carreira.
Por cem anos permanecemos mudos.
Por cem anos deixamos guerras acontecerem
o dinheiro conduzir nossas vidas
os valores mudarem de mãos
e suportamos os homens se digladiarem pelo poder.
Deixamos erguerem um muro
que tivemos de derrubar.
Deixamos derrubarem torres
que um dia estavam lá.
Hoje os homens se calaram
mais uma vez diante da morte.
Mais uma vez nos perguntamos quem somos
como em todos os momentos de dúvida.
Descobrimos que ainda somos humanos
apesar de conduzidos entre bolsas de valores
e muros invisíveis.
E descobrimos que temos voz.
Que a sobrevivência pode ser mais cara
que a doença. Sempre é.
E por que não pagaríamos esse preço?
Há homens que ainda pensam no lucro
nas horas de desastre
mesmo que não levem um centavo consigo.
A glória é terrena.
Não adiemos a felicidade.
Só teremos depois o que fomos capazes
de criar aqui.
A felicidade é a única coisa que se leva.
Thereza Christina Rocque da Motta é poeta, editora e tradutora. Autora de Lições de Sábado 2 (2018), entre outras obras publicadas pela editora Ibis Libris, a qual fundou em 2000.
Silêncio
O silêncio é fugaz
e parte ruidosamente
Aperto de mão
A mão que nunca esteve aberta
me aperta
Novo
Sinto-me novo neste poema
rompo a casca
bato a clara e como a gema
Novo II
De novo neste tema
rompo a casca e claro!
diante do novo... gemo
Novo III
Temo romper a casca
ter de sair do ovo
que estorvo!
Alma III
Trauma!
drama!
nem compelida
minha alma
se banha
alma fedida!
Decadência III
Decadência e progresso se opõem
assertiva que aceito
já a minha decadência
transgride o conceito e avança
vive em constante movimento
progride!
Circo de Calder
O malabarista
neste certame
desenha no ar
palavras de arame
Circo de Calder II
Lá no alto
o trapezista
tropeça
mas não cai
na plateia Calder
Metamorfose
Terá a taturana
quando se encasula
noção da sua aventura?
E a borboleta
recordará
sua antiga clausura?
Rato e rei
O rato e o rei
arruinaram o reino
feita a faxina
para o rato a ratoeira
para o rei a guilhotina
Rato e reino
Por fome ou por dinheiro
o rato roeu o reino inteiro
Fabio Magalhães é ensaísta, curador e desenhista. Estes poemas integram seu livro (ainda inédito) Poucalavra.
O amor nos tempos do coronavÍrus
Você me ama como antes?
Perguntei pra testar a sua confiança.
Amo sim mas com você tossindo
Favor manter distância.
Românticos, nos ferramos.
O amor foi pro beleléu.
Carícia virou sinônimo
De álcool gel.
Perdeu, mano.
Perdeu, playboy.
Não sobra nem para o ladrão
Nem para a polícia.
Quem manda é a Corona Milícia.
Se correr, pombinho,
Ebola, dengue, sarampo, zika,
Te pega.
Se ficar, o bicho corona
Te come.
Enfim, sós,
Eu, você e o corona.
Tenha dó.
Amor meu,
No meu corona
Ou no teu?
Nosso amor já foi virtual,
Quando ia virar real,
Chegou o corona.
Snif, snif, voltou o amor
A viver só no computador.
Ulisses Tavares é poeta, escritor, dramaturgo, roteirista e compositor. Autor de Pega Gente (1977), Viva a Poesia Viva (Saraiva Juvenil, 2009), entre outras obras.
EXÍLIO
Quem sou eu
na dimensão do fato:
boca de alcaguete
telegrama
ou ipso-facto?
Mera expressão
de espalhafato
sou o tiro
que não saiu
nem pela culatra!
DEDO EM RISTE
Este poema não diz nada
da mesma forma
que a história não diz tudo.
Língua cortada:
este poema não fala
– falha.
E insiste
– dedo em riste.
Rubens Jardim é poeta e jornalista. Autor de Cantares da Paixão (Artepaubrasil, 2008), Lindolf Bell – 50 Anos de Catequese Poética (Patuá, 2014), entre outras obras.
NÃO, NÃO QUERO MAIS
O peito salta do alto num sopro de vento
e a queda é leve
como se voar fosse o último desejo
como se morrer fosse apenas concordar
com a ideia de que se está morrendo
após 40 dias nesse deserto.
Nada bloqueia essa taquicardia
esse zumbido de elefante asmático
essa falta de oceano.
Perambulam tontas todas as manhãs e tardes
as minhas retinas viciadas
no mesmo céu nos idênticos edifícios no mesmo trem.
Já conheço suas labaredas elétricas que calcam o passado e deslizam no delírio atrás
de marias-fumaças.
Já conto todas as tábuas e restos e chapas
dos casebres aos meus pés.
Já acredito que ouço os tambores do terreiro
em frente à favela todas as madrugadas.
Já não sonho, deliro.
Sem saída
aperto mais e mais os seios contra a parede minúscula
do quarto minúsculo
da sala que não existe
da varanda onde meu corpo não cabe
meu coração não cabe
minha cabeça não ventila
e meu peito não respira
ah
essa falta de ar...
Não quero mais ser forte
lavar as mãos sofregamente
amparar os desvalidos
esperar esperar esperar rezar meditar consolar
arder de febre por falta de abraço
nem acreditar em uma outra humanidade, um novo Humano após esse dilúvio seco, sorrateiro e voraz.
Não, não quero mais.
MELHOR UM POUCO
Um antidepressivo
que insisto em não tomar,
uns meio exercícios de yoga
muito mal feitos,
um poema que ameniza engulhos
e soro fisiológico para enganar a rinite.
Meditação imposta pelo amigo
e o aperto no peito que dribla
uma claustrofalta de ar.
E esquecer que a peregrinação
no deserto custou 40 dias
de negação de tudo, ou seja,
não lembrar do vento, do mar,
do verde que dilata as narinas da cidade aqui ao lado.
Me sinto melhor.
Beth Brait Alvim é poeta, contista e ensaísta. Autora de A Febre e a Mariposa (Patuá, 2018), A Noite e o Meio (Córrego, 2019), entre outras obras.
Epicuro X Abelardo, Rilke, Covid-19 and I
O Jardim criou 4 remédios:
Não se deve temer os deuses; objetos falam sozinhos > cavalo alado na tela do
smartphone > print dos meus quadros > vendê-los > passagem para os ancestrais
vikings > herdeiros? Machado dixit.
Estupidamente,
desafio os deuses.
Não se deve temer a morte; Sic et Non – exige Abelardo (a intenção é tão importante
quanto o ato). ¿Erotizar Thanatos? “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos, me ouviria?”
O bem não é difícil de alcançar; mãos estendidas para o último vagão.
Os males não são difíceis de suportar; cada qual com seu ópio | Smith Wesson 38 |
Roberto Bicelli é poeta e romancista. Autor de Antes Que Eu Me Esqueça, livro de 1977 reeditado pela Córrego e lançado em 2017, entre outras obras.
Confira em nossa galeria mais obras que ilustraram o Inéditos deste mês e conheça o trabalho dos artistas por trás dessas obras, Marcos Duprat e Luiz Aquila.