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Quarentena

Luiz Aquila. Fotografia da Caneca Quebrada (detalhe), 2020.
Luiz Aquila. Fotografia da Caneca Quebrada (detalhe), 2020.

curtopoema/alcogel/003

sob as sombras do edifício

gente muda em máscaras de papel

boiam napoleões de hospício

em brancas piscinas de alcogel

 

curtopoema/004

se paranoia matasse

se o vírus fosse da china

se o povo não panelasse

me suicidaria dormindo

com pico de cloroquina

 

curtopoema 022

seja aqui

nos estates

ou na china

seja vigarista

seja fake

ou terraplanista

seria a cloroquina

o gás sarim

desta nova corja

nazista?

 

curtopoema 012

a culpa do vírus

é dos cientistas, do Papa

dos chineses, dos artistas,

dos mestres, dos comunistas,

da ONU, dos jornalistas...

mas a culpa é mesmo

dos culpistas

 

cov   a

cov   il

cov   arde

cov   eiro

cov   id

ainda

com vida?

 

para falar

com  máscara:

perseverar

percevejar

percervejar

perversejar

 

crachá / da série invisíveis

está escrito no crachá

do hospital miguel couto

maria dos anjos souto

de avental branco e grená

faxineira de ambulatório

pinça, gaze, esparadrapos,

agulhas, gesso, supositórios

da morte maior que a vida

cura o piso dos mictórios

só não cura a própria ferida:

sua avó com infecção

a necrose de seu marido

sua filha mal do pulmão

seu filho recém-nascido

é mais um ser desnutrido

dormindo entre farrapos

à beira de um precipício

como será que consegue

antes que o bicho pegue

varrer o próprio suplício?

 
Xico Chaves é poeta, compositor e artista visual. Na publicação Xico Chaves (Fase 10, 2012), o artista reuniu suas principais obras ao longo de 40 anos de carreira.
 
 

Por cem anos permanecemos mudos.

Por cem anos deixamos guerras acontecerem

o dinheiro conduzir nossas vidas

os valores mudarem de mãos

e suportamos os homens se digladiarem pelo poder.

Deixamos erguerem um muro

que tivemos de derrubar.

Deixamos derrubarem torres

que um dia estavam lá.

Hoje os homens se calaram

mais uma vez diante da morte.

Mais uma vez nos perguntamos quem somos

como em todos os momentos de dúvida.

Descobrimos que ainda somos humanos

apesar de conduzidos entre bolsas de valores

e muros invisíveis.

E descobrimos que temos voz.

Que a sobrevivência pode ser mais cara

que a doença. Sempre é.

E por que não pagaríamos esse preço?

Há homens que ainda pensam no lucro

nas horas de desastre

mesmo que não levem um centavo consigo.

A glória é terrena.

Não adiemos a felicidade.

Só teremos depois o que fomos capazes

de criar aqui.

A felicidade é a única coisa que se leva.

 

Thereza Christina Rocque da Motta é poeta, editora e tradutora. Autora de Lições de Sábado 2 (2018), entre outras obras publicadas pela editora Ibis Libris, a qual fundou em 2000.

 

 

Silêncio

O silêncio é fugaz

e parte ruidosamente

 

Aperto de mão

A mão que nunca esteve aberta

me aperta

 

Novo

Sinto-me novo neste poema

rompo a casca

bato a clara e como a gema

 

Novo II

De novo neste tema

rompo a casca e claro!

diante do novo... gemo

 

Novo III

Temo romper a casca

ter de sair do ovo

que estorvo!

 

Alma III

Trauma!

drama!

nem compelida

minha alma

se banha

alma fedida!

 

Decadência III

Decadência e progresso se opõem

assertiva que aceito

já a minha decadência

transgride o conceito e avança

vive em constante movimento

progride!

 

Circo de Calder

O malabarista

neste certame

desenha no ar

palavras de arame

 

Circo de Calder II

Lá no alto

o trapezista

tropeça

mas não cai

na plateia Calder

 

Metamorfose

Terá a taturana

quando se encasula

noção da sua aventura?

E a borboleta

recordará

sua antiga clausura?

 

Rato e rei

O rato e o rei

arruinaram o reino

feita a faxina

para o rato a ratoeira

para o rei a guilhotina

 

Rato e reino

Por fome ou por dinheiro

o rato roeu o reino inteiro

 

Fabio Magalhães é ensaísta, curador e desenhista. Estes poemas integram seu livro (ainda inédito) Poucalavra.
 

 

O amor nos tempos do coronavÍrus

 

Você me ama como antes?

Perguntei pra testar a sua confiança.

Amo sim mas com você tossindo

Favor manter distância.

 

Românticos, nos ferramos.

O amor foi pro beleléu.

Carícia virou sinônimo

De álcool gel.

 

Perdeu, mano.

Perdeu, playboy.

Não sobra nem para o ladrão

Nem para a polícia.

Quem manda é a Corona Milícia.

 

Se correr, pombinho,

Ebola, dengue, sarampo, zika,

Te pega.

Se ficar, o bicho corona

Te come.

 

Enfim, sós,

Eu, você e o corona.

Tenha dó.

 

Amor meu,

No meu corona

Ou no teu?

 

Nosso amor já foi virtual,

Quando ia virar real,

Chegou o corona.

Snif, snif, voltou o amor

A viver só no computador.

 

Ulisses Tavares é poeta, escritor, dramaturgo, roteirista e compositor. Autor de Pega Gente (1977), Viva a Poesia Viva (Saraiva Juvenil, 2009), entre outras obras.

 

 

EXÍLIO

Quem sou eu

na dimensão do fato:

boca de alcaguete

telegrama

ou ipso-facto?

Mera expressão

de espalhafato

sou o tiro

que não saiu

nem pela culatra!

 

DEDO EM RISTE

Este poema não diz nada

da mesma forma

que a história não diz tudo.

Língua cortada:

este poema não fala

– falha.

E insiste

– dedo em riste.

 

Rubens Jardim é poeta e jornalista. Autor de Cantares da Paixão (Artepaubrasil, 2008), Lindolf Bell – 50 Anos de Catequese Poética (Patuá, 2014), entre outras obras.

 

 

NÃO, NÃO QUERO MAIS

O peito salta do alto num sopro de vento

e a queda é leve

como se voar fosse o último desejo

como se morrer fosse apenas concordar

com a ideia de que se está morrendo

após 40 dias nesse deserto.

Nada bloqueia essa taquicardia

esse zumbido de elefante asmático

essa falta de oceano.

Perambulam tontas todas as manhãs e tardes

as minhas retinas viciadas

no mesmo céu nos idênticos edifícios no mesmo trem.

Já conheço suas labaredas elétricas que calcam o passado e deslizam no delírio atrás

de marias-fumaças.

Já conto todas as tábuas e restos e chapas

dos casebres aos meus pés.

Já acredito que ouço os tambores do terreiro

em frente à favela todas as madrugadas.

Já não sonho, deliro.

Sem saída

aperto mais e mais os seios contra a parede minúscula

do quarto minúsculo

da sala que não existe

da varanda onde meu corpo não cabe

meu coração não cabe

minha cabeça não ventila

e meu peito não respira

ah

essa falta de ar...

Não quero mais ser forte

lavar as mãos sofregamente

amparar os desvalidos

esperar esperar esperar rezar meditar consolar

arder de febre por falta de abraço

nem acreditar em uma outra humanidade, um novo Humano após esse dilúvio seco, sorrateiro e voraz.

Não, não quero mais.

 

MELHOR UM POUCO

Um antidepressivo

que insisto em não tomar,

uns meio exercícios de yoga

muito mal feitos,

um poema que ameniza engulhos

e soro fisiológico para enganar a rinite.

Meditação imposta pelo amigo

e o aperto no peito que dribla

uma claustrofalta de ar.

E esquecer que a peregrinação

no deserto custou 40 dias

de negação de tudo, ou seja, 

não lembrar do vento, do mar,

do verde que dilata as narinas da cidade aqui ao lado.

Me sinto melhor.

 

Beth Brait Alvim é poeta, contista e ensaísta. Autora de A Febre e a Mariposa (Patuá, 2018), A Noite e o Meio (Córrego, 2019), entre outras obras.

 

 

Epicuro X Abelardo, Rilke, Covid-19 and I

O Jardim criou 4 remédios:

Não se deve temer os deuses; objetos falam sozinhos > cavalo alado na tela do

smartphone > print dos meus quadros > vendê-los > passagem para os ancestrais

vikings > herdeiros? Machado dixit.

Estupidamente,

desafio os deuses.

Não se deve temer a morte; Sic et Non – exige Abelardo (a intenção é tão importante

quanto o ato). ¿Erotizar Thanatos? “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos, me ouviria?”

O bem não é difícil de alcançar; mãos estendidas para o último vagão.

Os males não são difíceis de suportar; cada qual com seu ópio | Smith Wesson 38 |

 

Roberto Bicelli é poeta e romancista. Autor de Antes Que Eu Me Esqueça, livro de 1977 reeditado pela Córrego e lançado em 2017, entre outras obras.

 

 

Confira em nossa galeria mais obras que ilustraram o Inéditos deste mês e conheça o trabalho dos artistas por trás dessas obras, Marcos Duprat e Luiz Aquila.

 
 
 
 

 

 

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