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Limites da lucidez: desmistificando o diagnóstico

Foto: Aline de Castro
Foto: Aline de Castro

Texto: Natália Lemes Araújo

 

Entre os meses de novembro de 2019 e março de 2020, o Sesc Ribeirão Preto realizou o projeto Limites da Lucidez com o objetivo de trazer à luz a temática das demências, culminando no Alzheimer. O projeto faz parte dos ciclos temáticos desenvolvidos em conjunto com a Gepros (Gerência de Estudos e Programas Sociais), do Sesc São Paulo, que focam  temas sensíveis ao envelhecimento, assuntos considerados difíceis, tabus.

O primeiro ciclo temático, Morar – espaços de afeto, ocorreu na Unidade de Santos, em 2016, e discutiu o assunto por meio de atividades com profissionais especializados e  diálogos com os idosos, que moravam em diferentes tipos de habitação. O segundo ciclo, Finitudes, aconteceu no final do ano de 2017 e visou desmistificar a morte e discutir a existência humana, abordando o tema da vida enquanto findável e as possiblidades que essa (in) certeza sugere.

A unidade de Ribeirão Preto (1956), a mais antiga do interior, desenvolve um intenso trabalho com o público idoso, conta com mais de cem idosos frequentando a programação cotidianamente. Muitos frequentam o Trabalho Social com Idosos há 30 anos, pois, no passado, a pessoa já era considerada idosa aos 40 anos. Esses idosos têm, no Sesc, o local de prática de suas atividades físicas, de encontro e compartilhamento social, além do contato com a cultura artística por meio de fruição e produção estética.

Foi observando esse grupo e nas trocas com a Gepros que a programação da unidade decidiu a temática do ciclo – Limites da Lucidez. Estima-se que, no Brasil, cerca de um milhão e duzentas mil pessoas são acometidas por diferentes tipos de demências. Entende-se por demência um grupo de sintomas caracterizado por um declínio progressivo das funções intelectuais, severo o bastante para interferir nas atividades sociais e do cotidiano. A doença de Alzheimer é a forma mais comum de demência. Entretanto, receber um diagnóstico desses não é simples, nem para a pessoa e nem para familiares. Muitas vezes, o núcleo familiar não sabe como lidar com a situação e a desinformação torna tudo mais difícil. Assim, decidimos montar um conjunto de programações – palestras, filmes, debates, rodas de conversa, intervenções artísticas, espetáculos teatrais, vivências e oficinas sobre a temática das demências em toda sua complexidade, a fim de informar, esclarecer, tornar acessível e, por que não dizer, poética, uma questão tão densa.

Começamos com uma performance chamada Os Cegos, em que homens e mulheres usando trajes sociais, cobertos de argila e de olhos vendados caminham lentamente, interferindo poeticamente no fluxo cotidiano da cidade. A performance traz a dúvida: quem, dentre eles, carrega em si algum tipo de demência? Seguimos com uma palestra de Viviane Mosé, que discorreu por duas horas sobre os questionamentos: quais são os limites entre consciência e inconsciência? Como podemos identificar estados de demência? Senilidade representa problemas cognitivos? Existe fuga do Alzheimer? Todas as questões são disparadoras desse projeto.

No mês de dezembro, trouxemos os filmes Longe Dela e Poesia, que mostraram diferentes casos de pessoas com Alzheimer e suas relações com entes queridos. Janeiro foi o mês do curso Envelhecimento, Patologias e Gerontecnologia, que apresentou de forma técnica as dimensões do envelhecimento, do Alzheimer e as possibilidades de criação em Gerontecnologia. Em fevereiro, exibimos o documentário Alzheimer na Periferia e esteve presente o diretor, Albert Klinke, e o criador do argumento, Prof. Dr. Jorge Felix.

O setor esportivo explorou o âmbito das memórias por meio dos movimentos cotidianos. O público foi provocado a repensar cada gesto, desde o ato de levantar-se de uma cadeira, subir escadas, carregar compras, dançar ou praticar esportes. Nesse contexto, as vivências promoveram, de forma simples e dinâmica, atividades que desenvolvem a consciência corporal e aumentam o repertório motor e cognitivo.

O teatro de formas animadas também esteve presente em fevereiro, apresentando a temática com dois espetáculos – Fios de memória, da Cia. Espirral, e Pequenas Coisas, com a cia. Morpheus.

Março foi o mês mais intenso do projeto, seis palestras contribuíram para ampliar o olhar dos participantes sobre a temática. A primeira palestra, com o Dr. Paulo Fernandes Formighieri, apresentou tipos de demências, esclareceu dúvidas sobre os motivos do aparecimento da demência e esclareceu sobre o Alzheimer de maneira científica e acessível. O Dr. Ramón Lopes Neto orientou sobre as questões jurídicas e qual o momento em que a interdição é indicada. Apesar de a primeira vista parecer uma violência, na verdade,  pode ser uma proteção à pessoa idosa, quando por vezes ela não consegue cuidar de si mesma ou de seu patrimônio. Explanou sobre custódia e curatela, deveres e direitos da pessoa demente e seus familiares.

Daniela Arbex revelou a história de sua pesquisa, que culminou no livro: Holocausto Brasileiro, quando, durante décadas, milhares de pacientes foram internados à força, sem diagnóstico de doença mental, num enorme hospício na cidade de Barbacena, em Minas Gerais. A temática da Gerontecnologia foi apresentada pela professora Dra. Carla da Silva Santana Castro. Marcos Rodrigues, pesquisador da Universidade McGhill, de Montréal, abordou a importância da atividade física regular na prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças relacionadas ao declínio cognitivo.

A Nutrição e os cuidadores em casos de Alzheimer foram a temática da palestra com Marcela P. de Oliveira Dias – nutricionista, Natália Benedetti - Mestra em Saúde do Idoso EERP-USP e Terezinha Corbani – proprietária do Residencial Divina Lola.

Como objetivamos abordar o tema de maneira suave e envolvendo os mais diversos públicos, julgamos fundamentais as ações artísticas. O espetáculo Kintsugi – 100 Memórias, do Grupo Lume, de Campinas, somou com sua pesquisa que propõe, a partir da exibição de 100 memórias, uma dramaturgia autoficcional desconstruída de maneira não narrativa, que transita perifericamente pela história dos intérpretes, suas histórias em grupo e, como projeção, pela história dos espectadores. Kintsugi, ou a beleza da imperfeição, é uma palavra japonesa que significa emenda com ouro. Essa arte consiste em reparar cerâmica quebrada com uma mistura de laca e pó de ouro, prata ou platina. Assim, os objetos guardam em si suas memórias. O grupo propõe a possibilidade de encontrar a superação a partir do encontro com a dor.

Matheus Nachtergaele integrou o projeto com seu espetáculo Processo de Conscerto do Desejo. No palco, ele apresenta uma personagem construída a partir das memórias deixadas por sua mãe, num conjunto de cartas escritas por ela.  A palavra “conscerto”, escrita dessa forma, sem nada a mudar no título – com um concerto, Nachtergaele busca consertar desejos.

Ocorreram ainda intervenções artísticas na área de Convivência, leituras dramáticas e contações de histórias, além da vivência Café com Memória, facilitada pelas psicólogas Mariana Guendelekian Della Pietra e Isabel Alonso, que possibilitou um espaço de encontros cujo objetivo era o de socialização de idosos com perda de memória ou demências, acompanhantes e comunidade em geral. A proposta proporcionou a horizontalização das relações, onde o foco não era a doença e sim a possibilidade de troca entre todos. Dessa forma, o idoso saiu do lugar de paciente e retomou seu lugar de cidadão participativo, que vai a um café conversar e interagir.

Toda a programação foi frequentada por um público plural, formado de estudiosos a cuidadores, de curiosos a pacientes, crianças, adultos e idosos, possibilitando a desconstrução de estigmas relacionados à temática, desmistificação do diagnóstico, informação, conhecimento e muita poesia.