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Mundo Indigesto

Tem dia que, de noite, perco o sono. Nenhuma novidade nisso. A insônia está ao alcance de todos. Há vários tipos de insone. Cito alguns entre os mais conhecidos. O mais comum talvez seja o tipo que fica na cama fritando feito um bife que não fica pronto nunca, por mais que você o vire e desvire e torne a virá-lo na frigideira-cama. Se você é esse tipo de insone e é vegetariano, pode substituir o bife por uma panqueca com farinha integral. Dá no mesmo, pra efeito de metáfora. Bife ou panqueca integral, o sol vai nascer aos trinados do sabiá-laranjeira e vai achar o pobre insone de olhão arregalado e ainda fritando na cama – e torcendo pra alguém apagar o sol e dar uma estilingada no maldito passarinho.

Outro tipo de insone é o tarja preta. Esse nem espera a insônia se manifestar. Mal deitou na cama, já abre a caixinha do seu hipnótico preferido e dá-lhe alprazolam, clonazepam, bromazepam, lorazepam, buspirona, entre os princípios ativos de tarja preta que te fazem capotar, mais melatonina, valeriana, passiflora, camomila, hortelã, entre os fitoterápicos. O efeito esperado de todos é o mesmo: desligar a consciência por vias químicas para que o sono sobrevenha. Os mais refratários à ingestão de drogas e mezinhas naturais partem para métodos que dispensam a ingestão de substâncias, como meditação, aromaterapia, acupuntura e auto-hipnose. Cada um desses recursos funciona melhor num do que noutro indivíduo. E desconfio que alguns deles não funcionem grande coisa pra ninguém.

Quanto a mim, sou da turma que se vale de um expediente assaz prosaico, encontrável na esmagadora maioria dos lares brasileiros: a televisão. No meu caso, abdico da cama em favor do sofá da sala, de modo a não atrapalhar o sono da minha mulher lá no quarto.

A bem da verdade, ela é das que não dispensam um tarja preta nas noites em que sua mente parece abrigar uma banda militar com tuba, corneta, trombone, trompa, bombarda, bumbo, caixa, prato e surdo, tudo tocando a pleno vapor. Televisão, pra ela, é uma ladra do sono. Mas, cada um é cada um, já dizia um filósofo de botequim. Ou, nas palavras do meu saudoso amigo, o escritor Caio Fernando Abreu, as pessoas são muito pessoais.

Vai daí que, noite dessas, tava lá a doce esposa sendo ninada pelo rivotrilzinho dela na cama, enquanto eu, assofazado na sala, clicava o remoto num zap alucinado à cata de imagens com potencial hipnótico. Fui passando por todo tipo de coisa, desde o acasalamento da foca-de-crista nos cafundós gelados da Noruega – a foca macho infla um bulbo vermelho na ponta do focinho que fica do tamanho de uma bexiga de aniversário, algo que a foca fêmea parece achar extremamente erótico – até a incrível aventura científica que foi a captura do famoso bóson de Higgs. Fiquei sabendo que o bóson de Higgs é uma partícula sub-sub-subatômica surgida com a eclosão do Big Bang. Até 2013 era apenas uma hipótese, até ser capturada num acelerador de partículas na Suíça. Mudei de canal quando o narrador sugeriu que, naquele exato instante, toda a matéria na Terra, inclusive o corpo de todos os seres vivos, estava sendo varada por uma chuva de quatrilhões de partículas bosônicas a cada nanosegundo. Sei lá, me senti vulnerável a ataques de alienígenas, estado que não me facilitaria a chegada do sono.

Enquanto, no quarto, minha companheira desfrutava de seu sólido sono quimicamente induzido, na sala acabei caindo num canal que exibia um documentário megatrash, Mundo Estranho, acho. Se não era esse o nome, podia e até deveria ser. O astro era um performer de feições andinas com uma jiboia instalada nos ombros e pescoço exibindo um pote de vidro transparente com coisas estranhas e escuras a se movimentar lá dentro. Um recuo de câmera permitiu ver que ele estava rodeado por um pequeno público numa praça arborizada. No chão, uma tigela com moedas e notas de dinheiro. O narrador em off logo explicou que estávamos na Bolívia.

Eis que o homem aproxima o pote do rosto de algumas pessoas que recuam apavoradas. Por último, faz o mesmo diante da lente da câmera. Até eu dei uma recuada de corpo no sofá diante daquele close. Difícil distinguir o que era aquilo, mas parecia algum tipo de centopeia, meia dúzia delas, ao menos. Falando uma língua indiscernível, quéchua talvez, ele ria da reação das pessoas, eu incluso. Daí, abriu a tampa do pote, enfiou uns dedos lá dentro e puxou uma robusta lacraia marrom escura de uns 15 ou 20 centímetros, com um corpo anelídeo e uma profusão de perninhas agitadas.

O que esse maluco vai fazer com essa lacraia?, pensei. Não... ele não vai fazer isso, disse a mim mesmo, incrédulo, ao vê-lo erguer a mão, com a lacraia pendendo no ar, a se contorcer toda, e posicionando o bicho logo acima de sua boca aberta.

As expressões na cara do público em volta denotavam o mesmo horror enojado que eu sentia naquela hora, e que só fez aumentar em grau máximo quando ele introduziu o bicho inteiro na boca e passou a mastigar sua presa viva. Dava pra ouvir o croc-croc da mastigação. Para não haver dúvidas sobre se aquilo era um truque, o artista escancarou a boca para mostrar o inseto semidestroçado ainda se retorcendo sobre sua língua.

Mas, o que é isso, pelas barbas de Polifemo, o ciclope antropófago da Odisseia? Um programa de culinária punk? Fosse o que fosse, meu sono bateu em retirada pra bem longe da lacraia. Lembrei-me vagamente de que lacraia é um bicho peçonhento, mas o comedor de lacraia não parecia sentir nenhuma dor de picada. Pelo contrário, fechava os olhos como quem saboreia a mais fina iguaria da face da terra. Juro que senti um gostinho estranho na boca. Um gosto de lacraia virtual, achei, influenciado pelas imagens na tela.

Antes que eu me decidisse a mudar de canal, o performer me tira um calango vivo e esperneante de uma caixinha e, crau, manda o pequeno réptil pra dentro de seu aparelho digestivo, que deve ter algum tipo de roto-rooter biológico em algum lugar do tubo gástrico. Não sei como é lá na Bolívia, mas, aqui, passarinho que come pedra... bem, você sabe o resto do ditado. O calanguinho logo teria a companhia de outros quitutes vivos no estômago absurdo do cara, como minhocas, gusanos, que são uns vermes gordos e reluzentes que se contorcem o tempo todo e que, a confiar na informação do narrador, têm grande reputação de ser um poderoso afrodisíaco. Sei lá, pensei. Se minha vida sexual dependesse de vermes bolivianos eu optaria pela mais santa castidade, sem dúvida.

Depois das minhocas e dos gusanos, o próximo prato a ser degustado foi um siri pouco menor que a palma da mão do artista. O siri, claro, estava vivíssimo e em estado de alerta máximo.

Eu até gosto de siri, mas só da carne já devidamente extraída do bicho morto. Vivo, jamais comi ou comeria, embora o genial Guimarães Rosa já nos tenha advertido de que a necessidade tem mãos de bronze. Deve ter também um estômago feito do mesmo material, eu diria. Só sei que, mais uma vez, ouviu-se o croc-croc do exoesqueleto do artrópode sendo triturado na boca do comedor.  

Quando o performático cidadão puxou de um saco um morcego espadanando as asas de aflição, decidi que era hora de desligar a tevê, mesmo fritando na insônia. Nunca fui fã do Ozzy Osborne, que costumava comer cabeças de morcego em seus shows, ou pelo menos era essa a lenda envolvendo o Black Sabbath, sua banda de metal pesado. E bota pesado nisso. Fato é que, naquela hora, mais do que desperto, eu estava enjoadíssimo e prestes a chamar o Hugo. Pensei até em pedir pro tal do Hugo aproveitar pra me trazer um sal de frutas e algum tarja preta hipnótico. Eu estava precisando urgentemente dos dois. Caramba, suspirei eu, olhando para a tela preta da TV desligada, mais teria me valido contar carneirinhos. Se bem que vai saber se o boliviano omnívoro não iria me aparecer de surpresa pra comer os carneirinhos vivos, um a um, croc-croc-croc.

Reinaldo Moraes é escritor e tradutor; entre suas obras estão Tanto Faz (1981) e Abacaxi (1985), ambos reeditados em 2011 num volume único pelo selo Má Companhia; além de Umidade: Histórias (2005, Companhia das Letras), Pornopopeia (2009, Objetiva) e, o mais recente, Maior Que o Mundo (2018, Alfaguara).

 

 

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