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Como se faz um Clássico

Euclides da Cunha, autor da saga Os Sertões,

foi também jornalista, militar e engenheiro, e empreendeu

uma jornada de vida para revelar um Brasil desconhecido

Retrato de Euclides da Cunha  de 1906

 

Natural de Cantagalo, cidade do estado do Rio de Janeiro, Euclides da Cunha (1866-1909) viveu infância e adolescência alternando o colo dos parentes, devido ao falecimento precoce da mãe.

A mudança para a capital do Império se deu por volta de 1887, onde os estudos e atuação militar entrelaçaram sua formação.

Foi aluno do militar republicano Benjamin Constant, que, em 1889, se envolveria com a Proclamação da República. Imbuído dos ideais republicanos, o jovem Euclides acaba preso em 1888 e depois é expulso do Exército por confronto com Tomás Coelho, Ministro da Guerra. O quiproquó motivou sua viagem para São Paulo, onde o jornalismo ganhou espaço. Torna-se colaborador do diário republicano A Província de São Paulo (atual O Estado de S. Paulo).

O republicano

Com a Proclamação da República, o Exército volta a fazer parte da sua rotina: agora é alferes-estudante, mas não abandona o jornalismo. Passa a escrever para o carioca Gazeta de Notícias enquanto avança nas ordens militares – é promovido a segundo-tenente e frequenta a Escola Superior de Guerra.

Os círculos militares lhe conduzem ao matrimônio com Ana Ribeiro, filha do general Solon Ribeiro, também combatente durante a Proclamação da República. Com Ana, tem três filhos. Em 1896, já afastado da carreira militar, trabalha como engenheiro em São Paulo, quando aceita o convite que mudaria sua vida: assume a função de correspondente do jornal O Estado de S. Paulo para a cobertura da Guerra de Canudos, ocorrida no sertão baiano entre 1896 e 1897. Está plantada a semente de um clássico da literatura brasileira, Os Sertões (1902), no qual Euclides da Cunha alia reportagem e análise crítica ao propor um retrato literário do embate.

Caderno de viagem

Pouco mais de 1.400 quilômetros separam as cidades do Rio de Janeiro e de Salvador. Um trajeto que, hoje feito de avião, leva duas horas e que foi percorrido por Euclides da Cunha de navio, ao aceitar a proposta do jornal paulistano.

Em agosto de 1897, Euclides começa seu percurso rumo a Canudos, a bordo do navio Espírito Santo, numa viagem descrita pelo jornalista como “torturante”, com duração de quatro dias.

O convite aconteceu depois da publicação do artigo A Nossa Vendeia, para o mesmo diário. O título é a forma como o autor se refere ao conflito liderado por Antônio Conselheiro, em referência ao episódio da Guerre de Vendée. Esse movimento político antirrepublicano ocorrido no período da Revolução Francesa (1789-1799) foi citado pelo escritor francês Victor Hugo – influência notória na obra do autor brasileiro – no romance Quatre-Vingt-Treize (Noventa e Três), lançado em 1874.

Foi na capital baiana que escreveu o primeiro dos dez artigos que ganhariam corpo em Os Sertões, obra publicada originalmente em 1902, cinco anos após o fim trágico de Canudos e de seus moradores. Em suas 637 páginas, o livro é um esforço de reportagem que se tornou um compêndio literário, histórico e sociológico, numa época em que a imprensa escrita atingia apenas uma pequena parcela dos brasileiros, já que a maioria da população era analfabeta (85%). A junção das linguagens foi inovadora: jornalismo, arquitetura, sociologia, história e geografia, aliadas aos recursos literários dramáticos e épicos.

A obra notabilizou o autor, originando debates sobre conteúdo e contexto de criação. A opinião comum era que Euclides da Cunha havia se deitado obscuro e acordado célebre. Envolto nos acontecimentos, o escritor conversou com moradores e acompanhou o martírio dos feridos, e serviu-se da geografia local ao se posicionar analiticamente sobre o conflito e escrever sua saga, a qual é dividida em três partes: A Terra, O Homem e A Luta.

A primeira aborda a constituição geológica do continente americano, até chegar a Canudos, retratando aspectos naturais e morfológicos, entre solo, fauna, flora, clima e a seca. A segunda trata do povoamento e do processo de miscigenação, e a terceira subdivide-se em seis capítulos, sendo a mais extensa de todas, apresentando-se como uma crônica da guerra.

“Em Os Sertões, Euclides realizara um mapeamento de temas que se tornarão centrais na produção intelectual e artística do século 20, ao debruçar-se sobre o negro, o índio, os pobres, os sertanejos, a condição colonizada, a religiosidade popular, as insurreições, o subdesenvolvimento e a dependência”, explica a professora emérita aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) Walnice Nogueira Galvão, organizadora da edição comemorativa da obra lançada pelas Edições Sesc São Paulo e Ubu Editora (relançada em edição especial para a Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, realizada de 10 a 14 de julho). “Aí fincam suas raízes não só o modernismo, mas também o romance regionalista de 1930 e o nascimento das ciências sociais no país na década de 1940.”

Considerando a dificuldade de realização das reportagens, o trabalho de Euclides da Cunha já seria notável por si só.

Os correspondentes de guerra no fim do século 19 lutavam contra o tempo para terem seus textos publicados. No caso de Canudos, poderia demorar até um mês para que os artigos fossem a público, já que antes tinham que passar pelo crivo da censura e da verificação de conteúdo, depois eram transportados em tração animal até Salvador, onde podiam ser transmitidos por telégrafo ou conduzidos de trem ao destino.

Mais significados

O livro originou manifestações artísticas diversas, como pinturas, gravuras, espetáculos teatrais, músicas e filmes. “O cinema novo dialogou com a visão euclidiana da sociedade sertaneja. Os três filmes rodados em 1963 no sertão nordestino, Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha), Os Fuzis (Ruy Guerra) e Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos), representam os dramas do atraso da sociedade sertaneja, acentuando as dificuldades representadas pelas condições do meio físico local”, exemplifica Walnice.

Em 2005, o texto foi revisto em espetáculo teatral adaptado pelo Teatro Oficina – por Zé Celso, Tommy Pietra e Flavio Rocha –, sendo dividido e encenado em quatro partes. Uma montagem especial e reduzida da peça, realizada por atores do Teatro Oficina, foi preparada para a Flip deste ano, que homenageou Euclides da Cunha.

A quebra de paradigma literário de Os Sertões se mostra também nas artes visuais. No Brasil, a leitura particular da artista Elida Tessler resultou em Desertões, obra constituída por 1018 lupas, que hoje integra o acervo do Sesc São Paulo e está instalada em uma das paredes da biblioteca da unidade da Avenida Paulista (entre nos bastidores do Acervo Sesc de Arte Brasileira na matéria “Fora do museu”, nesta edição).

Elida classifica o livro como uma obra dos sonhos, na qual as camadas de realidade se fundem com as da imaginação. “Sua narrativa nasce das entranhas da caatinga, que inventa a caligrafia do próprio autor. Quem seria o homem brasileiro? Qual é a terra que ocupa e qual o devastamento que provoca em sua luta pelo que chama progresso?”, questiona. “As inspirações e interpretações vêm da noção de embaralhamento que está presente desde os relatos detalhados da vida cotidiana do sertanejo e do gaúcho.”

A artista viajou à Serra da Capivara, no Piauí, onde releu o livro articulando o conteúdo com a extensão da paisagem, percebendo-a de forma ilustrativa a cada passagem do texto: “Incluindo a oralidade dos habitantes, a cor da vegetação, a aridez da terra e a luz do Sol, que queima e perfura a geografia das páginas do livro”.

Vida e morte

A morte do escritor se deu em circunstâncias trágicas. Acabou assassinado pelo amante da sua esposa, no ano de 1909. Ao partir para o confronto com o jovem Dilermando, foi alvejado por um tiro, considerado pela Justiça como legítima defesa. Assim, Dilermando foi absolvido e casou-se com Ana, com quem permaneceu por 15 anos.

Antes disso, em 1903, Euclides da Cunha foi eleito para a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras na sucessão de Valentim Magalhães. Após seu grande clássico, ainda vieram a público por sua pena, entre outros textos: Contrastes e Confrontos (1906), Peru Versus Bolívia (1907), Castro Alves e o Seu Tempo (1908) e A Margem da História (1909), publicado um mês após sua morte.

 

Tradução livre

INFLUÊNCIA PARA MARIO VARGAS LLOSA E SÁNDOR MÁRAI,

A ESCRITA DE EUCLIDES TAMBÉM CONQUISTOU O MUNDO

Os Sertões ganhou inúmeras interpretações, extrapolando fronteiras e criando uma imagética da narrativa euclidiana. Na linhagem de autores que dialogam com a obra estão o peruano Mario Vargas Llosa (A Guerra do Fim do Mundo, Alfaguara Brasil, 2008), que neste texto publicado pela primeira vez em 1981 dá uma nova dimensão ao mito formado por Canudos, e o húngaro Sándor Márai (Veredicto em Canudos, Companhia das Letras, 2002). Márai atualizou a história do final do século 19, relacionando as últimas horas da luta e a morte de Antônio Conselheiro, abordando os limites entre civilização e barbárie, bem e mal. O livro, lançado no Canadá na década de 1970, foi escrito a partir da leitura da tradução inglesa de Os Sertões.

Para a professora emérita aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) Walnice Nogueira Galvão,, a derivação por autores de países e contextos diferentes se deu por causa da “alta qualidade literária”. “Penso que os autores foram atraídos pela força do livro, construída pelo tratamento dado pelo autor à linguagem”, na qual vemos paradoxos, antíteses “e outras figuras da contradição que são muito encontradas no livro”. A saga foi objeto de várias traduções, chegando a países como Alemanha (1994), Argentina (1942), China (1959), Dinamarca (1948), França (1947), Holanda (1954), Itália (1953), Estados Unidos (1970), Portugal (1959), Rússia (1959) e Suécia (1945).

História revisitada

LIVRO E PROGRAMAÇÃO PÓS-FLIP

NAVEGAM PELA OBRA DO MESTRE

Faz parte do catálogo das Edições Sesc São Paulo e Ubu Editora a edição comemorativa de Os Sertões, obra fundamental de Euclides da Cunha. O livro traz conteúdo extra: quadro com atualização ortográfica, textos analíticos escritos por Antonio Candido, Antônio Houaiss e Gilberto Freyre, entre outros, reprodução da caderneta de campo do autor e fotos realizadas na época por Flávio de Barros, único registro visual conhecido do conflito. A nova edição foi organizada por Walnice Nogueira Galvão, que dedicou parte de sua vida acadêmica – hoje é professora emérita aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – aos estudos sobre Euclides da Cunha e Guimarães Rosa.

Em parceria com a Festa Literária Internacional de Paraty, o Centro de Pesquisa e Formação promoveu durante o mês de junho uma série de encontros sobre Euclides da Cunha (1866-1909). Autor de dicção originalíssima, Euclides da Cunha foi o homenageado pela Flip 2019. Também houve a Pós-Flip, composta de encontros gratuitos com autores que estiveram na Festa Literária carioca e desembarcaram em São Paulo: a escritora nigeriana Ayòbámi Adébáyò, a canadense Sheila Heti, o angolano Kalaf Epalanga, Solange Ferraz de Lima, Alexander Kellner, Giselle Beiguelman, José Teles e Lauro Lisboa Garcia.

 

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