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Tradição: passado, presente... e futuro?

Quando se fala em tradição, pensa-se em herança e transmissão. Há, no entanto, outra peça nesse tabuleiro: o tempo. No Brasil, diversas manifestações da cultura tradicional, a exemplo do Maracatu, do Fandango ou do Batuque de Umbigada, dialogam com o presente e com os desafios da contemporaneidade. O que está por vir? Uma tradição pode morrer ou se adaptar a novos contextos? Segundo o cientista social José Pedro da Silva Neto, consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) entre 2015 e 2018 sobre Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, “a tradição funciona como um padrão orientador da cultura de um povo”. Para isso, “é transmitida entre gerações, geralmente por meio da oralidade, e é passível de algumas mutações”, pondera. A exemplo do jongo (música e dança que vieram com negros angolanos escravizados no Centro-Sul do Brasil) e do martelo-agalopado (gênero do repente do Nordeste brasileiro com estrofes de dez versos decassílabos): ambas manifestações amalgamadas e presentes na cidade de São Paulo, como observa o etnomusicólogo Paulo Dias. “Há algum tempo venho me exercitando nesse gênero popular do Nordeste [martelo-agalopado] e achei oportuno utilizá-lo para falar do jongo em São Paulo, já que nossa cidade foi construída por afrodescendentes e nordestinos, responsáveis pela sua riqueza econômica e cultural”, explica o pesquisador, que fundou e dirige a Associação Cultural Cachuera. A entidade, criada em 1998, é sediada na capital paulista e tem o objetivo de pesquisar, registrar e divulgar festas, rituais e celebrações populares, bem como suas comunidades. Essa influência de manifestações tradicionais umas sobre as outras também mostra que quando se fala em tradição não se fala, necessariamente, em algo imutável. “A tradição é dinâmica e um aspecto vivo da cultura. Ela é reinventada sem perder as raízes e a perspectiva do movimento na construção do presente e do futuro”, complementa Neto.

 

Percursos da tradição

José Pedro da Silva Neto

Na definição de tradição mais comum e amplamente empregada pela sociedade abrangente, é comum dizer que sociedades ditas tradicionais são estagnadas, vivem num presente eterno sem alterações com o passar do tempo. A palavra tradição tem a sua origem etimológica no traditum, que significa transmitir, passar a outrem, dar para guardar.

Nesse sentido, tradição funciona como um padrão orientador da cultura de um povo que é transmitido entre gerações, geralmente por meio da oralidade, e é passível de algumas mutações. Não há, necessariamente, apego ao passado, a tradição é dinâmica e um aspecto vivo da cultura. Ela é reinventada sem perder as raízes e a perspectiva do movimento na construção do presente e do futuro.

Igualmente são as Culturas Populares, entendidas como um conjunto rico e heterogêneo de expressões simbólicas, econômicas e políticas, que constantemente são recriadas pelos indivíduos, grupos e comunidades que as praticam em função de seu ambiente e de sua relação dinâmica com a natureza e com a sociedade.

O território tradicional não é entendido meramente por seu aspecto material e comercial, mas também como o lugar indispensável para transmissão de conhecimento e preservação de identidades. O corpo, a terra, a árvore e toda sua complexa imaterialidade são também o território tradicional. Espaço de resistência onde um povo, por meio da sua cultura, ritualiza de forma tangível e intangível suas origens.

Não é à toa que, por exemplo, as culturas dos povos originários ameríndios e dos povos de matriz africana realizam suas ações e ritos em formato circular. A circularidade é uma das tecnologias desses povos para indicar essa junção indissociável entre material e imaterial. No círculo, as origens desses povos são recriadas, por meio de uma hierarquia horizontal e intergeracional.

A circularidade é justamente a mediação, a ampliação do espaço para outros aspectos da existência que dão significados e sentidos para as diferentes manifestações da vida. Uma mediação que inclui o cosmo e o outro, o próximo, o dotado de possibilidades de ações e de respostas. Nisso reside o significado de “humano”, como no princípio bantu do ‘ntu’, no qual o sentido da existência do indivíduo está no coletivo. O entendimento e a aceitação desses processos, que passam pelo domínio da língua e das linguagens corpóreas, rítmicas, musicais e alimentares, oferecem as condições para a identificação, para o reconhecimento da identidade.

Oralidade

A língua, parte indissociável do corpo, é um dos principais elementos da identidade de um grupo. Para os povos tradicionais, a palavra é uma força vital e fundamental, pois é o enunciado oral, é uma exteriorização e o resultado da integração de forças vitais das pessoas. Portanto, tudo precisa ser pronunciado, pois a palavra, ao ser dita, transmite energia, força e dinâmica, repletas de metáforas e símbolos que nenhum papel ou gravador dará conta de sistematizar.

A oralidade é outro princípio desses povos. É por meio dela que transmitem sua tradição e ancestralidade, transmitem/passam o ethos de cada comunidade para as futuras gerações. Pela oralidade, transmite-se a essência do ser, o ìwà[íuá] na tradição yorùbá [iorubá], que são características e qualidades que a pessoa possui ou pode vir a adquirir em sua vida. É também destino, que surge dos procedimentos diários da pessoa na terra, as virtudes e as peculiaridades que regem sua norma de conduta, consigo e com a sociedade, favorecendo ou não as oportunidades que surgem em sua vida.

A colonização, a escravização de seres humanos, a diáspora e todo o decorrente marcado pelas diferentes formas de violência contra os povos tradicionais são referências para a compreensão do processo de desterritorialização e desconstrução de referências e identidades.

O enfrentamento dessas violências, que incluem o racismo, a destruição das relações culturais comunais e de parentesco e das formas de solidariedade construídas nos territórios de origem, exigiu desses povos a criação de espaços para as tentativas de recriação e revitalização do universo cultural violentado e fragmentado.

A reprodução cultural desses povos é a retomada do contato mítico e místico com a matriz, com a origem, com a tradição, tanto geográfica quanto simbólica, fonte do existir original, tomada então como espaço existente ao mesmo tempo no campo físico e no imaginário.

Não se trata apenas de uma “apresentação”, mas, sim, de uma vivência que porta referências estéticas e afetivas importantes para a construção de identidades locais, regionais ou nacionais e, por isso, são transmitidas de geração em geração, na prática, no fazer, estruturando-se sobre raízes ancestrais, sedimentadas numa temporalidade que o relógio não dá conta de administrar.

Valorização

As culturas populares e tradicionais e suas manifestações não foram (re)conhecidas pela sociedade brasileira e pelo Estado em suas nuances. Nesse processo de generalização, os marcos civilizatórios inerentes a esses povos e seus detentores foram esquecidos e diminuídos em sua importância, o que colaborou para a diluição do reconhecimento do pertencimento étnico-racial.

Ao negar humanidade dos povos indígenas, de matriz africana e de seus descendentes, o racismo, amiúde, perpetua a negação da cultura de seus detentores, visto que é o componente cultural que diferencia, em primeira instância, o humano do inumano. Nesse processo desumanizador, por exemplo, a tapioca perde sua matriz ameríndia, o samba deixa de ser negro e o “axé music” é reproduzido fora do “terreiro”.

Um membro do povo indígena pode usar calça jeans e um membro do povo tradicional de matriz africana pode andar de Rolex. Isso não fará deles menos tradicionais, pois os valores tradicionais e princípios civilizatórios – noções de povo, tradição, sagrado, terra e território, identidade, ancestralidade, circularidade, oralidade, alacridade, senioridade, comunidade, uso sustentável do meio ambiente – de seus povos são perpetuados.

Nesses percursos da tradição, a cultura torna-se um importante instrumento de superação do racismo e de transformação social, pois é no campo da cultura que se processa a disputa “político-ideológica” que pode destruir o racismo e os preconceitos por meio da afirmação e positivação da ancestralidade indígena e africana no Brasil.

As referências garantirão as construções identitárias do “sujeito singular” como parte de uma continuidade histórica. Sem fontes e referências, a constituição do “si mesmo” torna-se por demais difícil e confusa, quando não impossível, inviabilizando as relações de conhecimento e reconhecimento de si e “do outro”. Por isso, torna-se fundamental proporcionar trajetos de encontros, trocas e aprendizados com as manifestações das culturas populares e tradicionais, pelo corpo de seus detentores.

Torna-se fundamental proporcionar trajetos de encontros,

trocas e aprendizados com as manifestações das culturas populares

Pedro Neto é iniciado no Ilé Àse Pàlepà Màrìwò Sessu – SP, diretor da Àgò Lònà Associação Cultural, cientista social, produtor cultural, documentarista e artista plástico. Foi consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (Pnud-ONU) entre 2015 e 2018 sobre o conceito de Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana.

 

Jongo e martelo-agalopado

Paulo Dias

A cantoria repentista nordestina apresenta grande profusão de formas poéticas com métrica e rima próprios. O martelo-agalopado é um gênero bastante requintado do repente e da literatura de cordel. Com estrofes de dez versos decassílabos, possui esquema de rima abbaaccddc. Cada verso tem acento na terceira, sexta e décima sílabas. A cantoria do martelo-agalopado mostra a habilidade dos repentistas em vazar suas ideias numa forma poética bastante complexa. Como fez o famoso trovador pernambucano Lourival Batista (1915-1992), o Louro do Pageú, citado na primeira estrofe. Há algum tempo venho me exercitando nesse gênero popular do Nordeste e achei oportuno utilizá-lo para falar do jongo em São Paulo, já que nossa cidade foi construída por afrodescendentes e nordestinos, responsáveis pela sua riqueza econômica e cultural.

Vou voltar a esse gênero ferino

O Martelo em dez que o Louro canta

É do Norte, e ao Sul também encanta

Elegância do verso nordestino

Na cultura eu andei desde menino

E com ela passava as minhas tardes

É aldeia de que eu faço parte

É a fonte onde todos vêm banhar

Força pura nas rodas do brincar

De pensar e sentir co’ engenho e arte

A cultura do povo é bem letrada

Cantador pra cantar não imagina

No arranco do verso vem a rima

No cordel ela fica bem grafada

Nas batalhas de rap da moçada

Nos fortes cururus dos Quatro Azes

Que na rádio e TV foram capazes

Hoje no celular e na internet

Vejo Jongo da Sul até a Leste

Renascendo no Embu e em Guaianazes

Caxambu, Embolada e Calango

Cururu, Puchirão, Partido Alto

Pro povão não existe sobressalto

Em repente versado vão mandando

As palavras são flechas avoando

Que com graça inté furam o mundo

Os castelos destroem num segundo

No freestyle e no jongo goromenta

O cantar repentista o povo inventa

Pra bulir com o que lhe toca fundo

Mas a arte do povo é milenar

É encontro de civilizações

Que já tinham antigas tradições

Antes dessa história começar

Cada qual com maneira de cantar

Seu viver e o seu estar no mundo

Em convívios de paz ou iracundos

De acordo com sua condição

Na aridez desigual da exploração

A poesia é que faz o chão fecundo

Jongo, cumba, angoma, candongueiro

Caxambu, tabiá, tambu, guaiá

São palavras que em Guaratinguetá

Estão vivas nas falas dos jongueiros

Mais parece língua de estrangeiro

Mas de fato é coisa popular

Vem de Angola esse jeito de falar

E chamar com tambor e pelos versos

Reunindo a quem está disperso

Para a roda da vida celebrar

Esses sábios jongueiros de renome

Que um dia feliz eu encontrei

Para lá de alegre eu fiquei

Pois o Jongo pra mim só era um nome

Que eu lera nos livros de Folclore

Conheci o Totonho e Tia Fia

Sá Mazé, Dona Tó e a família

Todos eles mui nobres criaturas

Recebendo a todos com finura

Na fogueira, durante a vigília

São três dias por ano que o saber

Do jongueiro é posto em liberdade

Nesse então junta a comunidade

Mutirão para o encontro promover

Elegendo Festeiros pra fazer

A coleta entre todos moradores

Que do pouco que tem são doadores

Para a canja que o povo vai comer

E a roda do jongo amanhecer

Partilhando na arte seus valores

Outro cargo demais interessante

Na função do Jardim Tamandaré

Capitão da Fogueira é de fé

E aí, eu repito, é importante!

Ele roda a cidade num rompante

Procurando madeira derrubada

Pra montar a fogueira arquitetada

Pra queimar uma noite toda inteira

Pois é mesmo no lume da fogueira

Que a goela da angoma é afinada

               

Mazé disse que o fogo dos quintais

(Aruanda que a tenha em bom lugar)

No terreiro do jongo a lumiar

Os tambus e as almas ancestrais

Comunica com quem não está mais

Pois o Jongo não é só dos viventes

O jongueiro Pai Velho está presente

Ajudando com seus conhecimentos

Quem quiser cantar ponto em bom momento

E entrar nessa roda bem contente

O tambor é o primeiro a ser saudado

Quando o jongo está pra começar

Cada um ao seu pé vai se curvar

Com profundo respeito e cuidado

Instrumentos carregam ao seu lado

Toda a força da ancestralidade

Que dos cumbas mais velhos, majestade

Irradia pra todos os jongueiros

Quando cantam seus pontos no terreiro

Hoje e ontem refundam a unidade

Jogar ponto não é cantar canção

Toda roda de jongo é uma escola

São provérbios que vêm lá de Angola

Ministrados por sábios da nação

Resistindo na triste escravidão

Bisavós dos jongueiros na senzala

Comunicam no canto a sua fala

E nos pontos comentam novidades

As revoltas e lutas da irmandade

Pois a língua do preto ninguém cala

É por isso que os pontos são sutis

E o jongueiro precisa conhecer

Artes finas de não esclarecer

A mensagem que o ponto diz que diz

E até mesmo na ponta do nariz

Do feitor de olho grande ou do soldado

Todo ponto de jongo é entoado

Na metáfora fica escondido

Com firmeza protege o sentido

Do segredo que não é divulgado

“Tanto pau, embaúva é coroné”

É assim que no jongo se dizia

Pra falar da pessoa sem valia

Que mandava dar cossa na ralé

E “o cumbi virou” a senha é

Pra avisar da chegada do patrão

Quando havia a hedionda escravidão

O feitor que a todos humilhava

Mas o espírito nunca aprisionava

E a voz ancestral calava não

Cativeiro era tudo controlado

Não podia sorrir e nem falar

Desse jeito Mazé vei’ me contar

Mas no jongo faziam seu louvado

Reverência pra os antepassados

E até os conflitos exprimiam

Com o canto a tudo referiam

Sua história pros novos aprender

O que foi e o que vai acontecer

Nos meandros da saga que viviam

Na fogueira em fala coletiva

Todos chegam pra dar o seu recado

Com uns pontos sutis ou engraçados

E alguns co’ intenção competitiva

Cada qual vai ficando na oitiva

Pois o jongo é como uma conversa

Eu respondo o ponto que outro versa

Alinhando o assunto e a imagem

O jongueiro mantém sua linguagem

Pra falar só daquilo que interessa

Em Angola onjango é a palavra

Que nomeia a “casa de conversa”

Onde o povo da aldeia vai sem pressa

E um grande diálogo se trava

Cada qual traz ‘ma fala de sua lavra

Com provérbios dá sua opinião

Põe saber ancestral na discussão

Quem se lembra dos ditos dos antigos

No onjango adquire mais prestígio

Bem mais forte é a palavra do ancião

Hoje em dia a galera tá ciente

Nas vielas e becos das quebradas

Que a ciência do Jongo é sagrada

E objeto de estudo paciente

Povo preto resiste bravamente

Ao assédio burguês que é racista

E poetas pintores e artistas

Vão dizer que o sistema tá furado

Já cansaram de sangue derramado

Tanta morte que não vira notícia

E pra minas e manos da quebrada

Jongo vem como prática de vida

E a fala rimada é conhecida

Pois no Hip e no Hop são formadas

A angoma e a goma achegadas

É história do negro brasileiro

O passado e o presente em relanceio

Com a força de todos ancestrais

Pra na roda jogar verso sagaz

Derrubando exclusão e preconceito

Na procura dos mestres mandingueiros

Jovens pretos urbanos vão com fé

Pesquisar com Jefinho e com André

Conhecer os preceitos dos jongueiros

Kilombaque em Perus vai nos terreiros

Jongo Dito Ribeiro em Campinas

E o Fios da Semente nos ensina

Rama velha brotando em terra nova

Guaianás lá na Leste são a prova

De que essa cultura frutifica

É na Sul que também tem gente forte

Candongueiros é o nome da nação

Campo Limpo é a sua região

E trabalham o jongo como mote

Cachuera é antigo lá na Norte

Brasilândia o quilombo Sambaqui

E a Preta Bandeira é logo ali

Para as bandas dos Campos de Bernardo

Salve todos irmãos aquilombados

Saravá pr’ esse jongo do devir

Juventude, agora eu vou calar

O meu nobre martelo agalopado

Na revista já fiz o meu versado

Garantindo que o Jongo vei’pra ficar

Os terreiros de Sampa vão brilhar

É assim que se inventa a tradição

Ajustando ao tempo a criação

Rastreando o passado no presente

Trabalhando em poema permanente

Esquentando os tambores da emoção.

 

Paulo Dias é pianista, percussionista e etnomusicólogo. Fundou e dirige a Associação Cultural Cachuera, entidade criada em 1998, sediada na cidade de São Paulo, com o objetivo de pesquisa, registro e divulgação das manifestações performáticas tradicionais brasileiras (festas e celebrações populares, rituais, autos) e de suas comunidades produtoras, junto a todos os setores da sociedade, em especial no meio educacional.

 

 

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