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Depois do fim do mundo
SUPERAÇÃO, CRIATIVIDADE E FORÇA DEFINEM A CANTORA QUE DESAFIOU
O PRECONCEITO E IMPRIMIU SUA MARCA NA HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA
A menina negra e pobre que subia, cantando, a favela carioca de Moça Bonita, com uma lata d’água na cabeça, para ajudar a mãe, lavadeira, não imaginava que um dia seria eleita a cantora do milênio pela BBC de Londres. Elza da Conceição Soares tinha apenas 13 anos quando fez sua primeira apresentação no programa de calouros do radialista Ary Barroso. Na ocasião, vestia roupas largas da mãe, ajustadas por inúmeros alfinetes, o que levou a plateia às gargalhadas. Hoje quem ri é ela, que superou a pobreza, o casamento precoce, na infância, o racismo e a violência doméstica. Dotada de um espírito jovem, Elza não se preocupa com a idade, porque se tornou atemporal. Com mais de 70 anos de carreira, comemora o sucesso do disco A Mulher do Fim do Mundo, de 2015, que lhe rendeu o Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira e um lugar na lista dos 10 melhores álbuns de 2016, do jornal The New York Times. Criatividade, coragem e vivência que serão exibidas em Elza Soares – A Mulher do Fim do Mundo, dia 14 de fevereiro, às 22h, no SescTV. Atenta e vivaz, a artista conversou com a Revista E após uma apresentação dupla de seu novo show, A Voz e A Máquina.
Ser Mulher
Eu canto samba, jazz, bossa e rap. Misturo tudo porque minha arte reflete a minha vida e viver para mim é um ato político. Meu trabalho carrega minha força para contar um pouco do que eu passei na minha história. A vida me ensinou que a mulher, quando é sozinha, acaba aprendendo a se defender do jeito dela. Tem momentos em que você precisa recuar e não bater de frente, porque não vai conseguir chegar aonde quer. Eu não me arrependo de qualquer atitude que tomei na vida, mesmo diante de situações de violência, porque tudo o que eu queria fazer, fui fazendo. Mesmo porque, às vezes, quando você não sabe fazer uma queixa, pode acabar se prejudicando. A mulher agredida, quando dá queixa, tem que voltar para casa e enfrentar o bandido.
O Brasil é um país completamente machista. Eu sofri isso na pele. A figura masculina, quando é muito vaidosa, sempre deixa a gente com um pouco de receio. Mas o homem só amedronta quando estamos muito frágeis. Agora, nós mulheres sabemos que podemos enfrentar essa situação muito bem. O homem de hoje pensa e conta até três antes de fazer alguma coisa. Ele não está mais com essa bola toda.
Derrubando preconceitos
Eu grito contra uma série de abusos, sempre, desde uma época em que não havia mulheres fazendo isso, nem as negras. Hoje, ver essas jovens tendo voz e lutando por igualdade é uma benção. Por isso que eu digo que a nossa carne negra já não é a mais barata do mercado. Já temos um preço alto, somos mais valorizadas.
Sempre enfrentei o preconceito de cabeça erguida e sem olhar para trás. Já fui barrada em vários lugares, isso aconteceu muitas vezes. Teve gravadora interessada em mim, que mandou um funcionário me ver cantando em uma boate, numa época em que só se falava na Elza Soares, mas, no fim, disseram: “Que pena, ela é negra”. E eu não fui contratada pela minha cor.
O preconceito existe e antigamente era maior. Eu passei por isso tudo, mas você tem que ir em frente, ter confiança, sabendo qual é o seu objetivo e o caminho que quer seguir. Podem te chamar de negra, falar o que quiserem. Mas, se você parar e se entregar, você cai. Hoje, essa gravadora não existe mais: eles acabaram e eu continuo cantando.
Grito de liberdade
Hoje, o mundo está com raiva e as pessoas estão com muito ódio. São várias as manifestações de violência contra os gays, os negros e as mulheres. Eu sempre digo que a gente tem que ter muito cuidado porque vamos atravessar momentos ainda mais difíceis nesse país. Além de estar alerta, a gente precisa ter coragem de ir para as ruas e gritar de verdade contra tudo isso, para que as coisas mudem. Mas eu não sei onde está nosso povo, acho que está meio adormecido, não protesta contra essa sociedade careta e conservadora, não protesta contra a censura. É hora de mudar. Não tem que ter indiferença e passividade porque nossa força é muito grande. A gente tem que botar a boca no trombone.
Já dei muitos passos na vida e sempre andei pra frente, construindo meu caminho e deixando pra trás o passado. É tão difícil dar conselhos... Mas esse é o conselho que eu dou. Não podemos ficar calados. O país precisa de ajuda e só nós podemos fazer isso, juntos. Acredito muito no povo e acredito em mim, nunca parei de acreditar. Isso é o que faz com que eu siga em frente. O mundo não muda tanto, a gente é que muda.
Foto: Patricia Lino