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Hilda Hilst

Dona de uma vivência densa e alheia a rótulos, expressa na poesia, na ficção e no teatro, Hilda Hilst tem sua obra relançada em meio a homenagens

 

Uma das frases mais repetidas publicamente por Hilda Hilst era: “quero ser lida”. Esse desejo vem gerando frutos nos últimos anos. Mesmo que de forma póstuma, a palavra da escritora ressoa em leitores que vem arrebatando gradualmente e deve ganhar ainda mais visibilidade com a homenagem que receberá da Festa Literária Internacional de Paraty em julho. Sim, há cada vez mais apaixonados pela obra de Hilda, com a qual o primeiro contato não é fácil. Na série de encontros do Centro de Pesquisa e Formação (leia boxe Obra decifrada) foi recorrente ouvir dos presentes as dificuldades com a leitura. Uns fechavam o livro e retomavam no dia seguinte, outros liam num misto de voracidade e espanto.

A escritora não se deixava enquadrar, nem categorizar, em pensamentos institucionalizados ou discursos já assimilados, de acordo com Flávio Aquistapace, mediador cultural, professor e escritor. “De tal forma que, quando falamos de qual âmbito de reconhecimento ela reivindicava, me parece que é o de ser compreendida em sua complexidade literária, tendo tributado sua vida à labuta da língua, maturada no tempo de sua existência, dada pelas leituras, e a circulação refinada pelo pensamento filosófico, literário e também científico”, analisa.

 

Olho no retrovisor

Hilda nasceu em Jaú, no ano de 1930, mas viveu na capital paulista, onde se graduou em Direito. Filha única, ela acompanhou, ainda criança, o fim do casamento dos pais, Bedecilda Vaz Cardoso, de ascendência portuguesa, e Apolônio de Almeida Prado Hilst. Também viu as idas e vindas do pai em internações psiquiátricas devido ao quadro de esquizofrenia.

Sua entrada oficial na literatura se deu cedo, na poesia, com a publicação de Presságio, aos 20 anos. A obra caiu no gosto de Cecília Meireles e de Jorge de Lima, ambos com estrada literária. O término do curso de Direito não lhe fez escolher essa via profissional. E, a partir de 1952, tornou-se figura carimbada na noite paulistana, vivendo intensamente o circuito social. Ousada e liberal, destacou-se e se descobriu nesse contexto até chegar à conclusão de que não era mais parte dele.

Em 1964, troca São Paulo por Campinas, construindo sua morada, a Casa do Sol, em uma propriedade da família, no Parque Xangrilá. Um ano após sua morte, em 2004, o local se transformou no instituto que leva o nome da autora, iniciativa de seu amigo, o escritor José Luis Mora Fuentes, morto em 2009. Hoje, as atividades do instituto – que é aberto à visitação e onde funciona um programa de residência artística – são conduzidas pelo filho de Mora, Daniel Fuentes, que detém, sob seus cuidados, os direitos autorais da escritora.

Ecos de uma história

A obra da autora ganhou as livrarias da França nos anos 1990. Traduções em língua inglesa se oficializaram em 2012, nas versões americanas de Obscena Senhora D. e Cartas de um Sedutor. No Brasil, o ano de 2017 trouxe a reunião de sua obra poética, em Da Poesia (Cia. das Letras). Contudo, este ano será a vez da prosa.
A Casa do Sol guarda tesouros. Daniel Fuentes conta que se enroscam no dia a dia descobertas de desenhos, poemas e cartas de Hilda. Material digitalizado progressivamente na sala de memória do local. “Não consigo imaginar uma herança mais rica do que essa! Nem um prazer maior do que ver esse tesouro saindo das caixas-arquivo e prateleiras do nosso acervo e se tornando público”, comemora.

“Isso possibilita realizações como o livro Da Poesia, que a Companhia das Letras lança com magistral trabalho editorial, e o Clube Obscena Lucidez, nossa mais recente iniciativa, que busca aliar democratização de acesso à obra de Hilda e preservação do próprio acervo, criando uma ligação direta entre leitores e a preservação desse patrimônio cultural”, complementa Daniel Fuentes.

Uma vida em palavras

Além de lida, a escritora também é ouvida. Entrevistas, como as compiladas no livro Fico Besta Quando Me Entendem (Biblioteca Azul, 2013) e a concedida a Caio Fernando Abreu, que pode ser encontrada como extra do livro Pornô Chic (Biblioteca Azul, 2014), revelam o pensamento cristalino da autora. Ao falar sobre mulheres na literatura, Hilda é incisiva: “Existe um grande preconceito contra a mulher escritora”.
A posteridade também é objeto de seu discurso. “Você tem que morrer para ser lembrado. Eu até propus à Lygia Fagundes Telles: você atira em mim e eu atiro em você. Pode ser que assim falem da gente”. Os pontos de vista afiados eram fruto de uma vivência múltipla num conjunto literário formado por poesia, ficção e teatro. Essas afirmações foram feitas quando Hilda tinha 60 anos de idade e fazia uma visita à cidade de São Paulo para exames médicos.

A fala, o pensamento, o domínio da língua, questões existenciais, morte, transcendência, sexo e desejo foram temas que atraíram a autora e constituem seu legado literário. Para além das palavras, Hilda desenhava e pintava aquarelas. Na música, foi transmutada por Zeca Baleiro, que musicou suas poesias no disco Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé – De Ariana para Dionísio, lançado em 2005, um ano após a morte de Hilda, que acompanhou o seu processo de feitura.

“A Hilda gostava muito de ouvir a voz das pessoas. Vivia com um radar ligado para todo mundo ao redor dela”, observa Daniel Fuentes. A memória mais fresca carrega data dos anos 1990, quando a autora colaborava para o Jornal de Campinas: “Na hora do café da manhã, ela lia [a coluna] para todo mundo e fazia as últimas correções antes de entregá-la ao jornal”. Estas e outras memórias podem ser consultadas no acervo online do instituto Hilda Hilst (www.hildahilst.com.br)

Voz no teatro

Peças escritas durante vivência da autora na Casa do Sol dialogam com período ditatorial brasileiro


Oito textos teatrais, finalizados entre 1967 e 1969, compõem a produção da escritora nas artes dramáticas. Rubens da Cunha, crítico teatral e pesquisador da obra dramática de Hilda Hilst destaca:

As Aves da Noite (1968)
Alegoria sobre sistemas ditatoriais tendo, por pano de fundo, uma cela da morte, onde prisioneiros judeus eram jogados como punição pela fuga de um terceiro. Nessa peça, Hilda trabalha com alguns arquétipos e questiona os limites humanos, a violência, a fé e a ausência de fé diante de uma situação extremamente injusta.

O Novo Sistema (1968)
Bastante calcada em obras como Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley) e 1984 (George Orwell), trata-se de uma distopia satírica sobre a ditadura da física e da ciência sobre qualquer outro tipo de saber.

O Verdugo (1969)
Dilema ético de um verdugo [algoz] que não quer cumprir sua função: a de executar um condenado. A peça faz uma reflexão sobre escolhas individuais, manutenção da ordem ditatorial e o perigo do linchamento público. Recebeu o Prêmio Anchieta de Teatro e foi a primeira montagem profissional de uma peça da Hilda. Ficou quatro meses em cartaz, no ano de 1973, com um bom reconhecimento de público e crítica.

 

Obra decifrada

Novos olhares contribuem para desvendar nuances do legado da escritora
 
Em janeiro, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc recebeu o curso Hilda Hilst: Presente, uma série de encontros mediados pelo jornalista e escritor Flávio Aquistapace. Durante a programação, a prosa tardia da autora foi analisada com foco em quatro de seus títulos – Contos D’Escárnio: Textos Grotescos; O Caderno Rosa de Lori Lamby; Cartas de um Sedutor; e Rútilo Nada.

A Casa do Sol também fez parte da agenda do Turismo Social do Sesc, que promoveu, pela unidade do Sesc Campinas, uma visita monitorada em 2016. Localizada no bairro Xangrilá – Campinas (São Paulo), a casa foi o refúgio e centro de produção literária da autora e hoje abriga o Instituto Hilda Hilst. Foi nela que os quadrinistas Laerte, Angeli e Rafael Coutinho orientaram a residência artística do projeto Baiacu – uma releitura da “Era de Ouro” dos quadrinhos brasileiros que resultou numa publicação da Editora Todavia.
Além dessas atividades, unidades do Sesc São Paulo já realizaram programações em homenagem a Hilda Hilst. Como a mostra de dança, teatro e literatura E se eu ficasse eterna? 10 anos sem Hilda Hilst, no Sesc Belenzinho, em 2014, e a exposição Hilda Hilst – 70 anos, que levou documentos, retratos e outros objetos pessoais da autora ao Sesc Pompeia, em 2000.

Foto: Juvenal Pereira

 

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