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Pluralismo Religioso no Brasil

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Pluralismo Religioso no Brasil

Segundo o Artigo 18º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Na mesma direção, no Brasil, segundo a Lei nº 7.716, de 1989, podem ser punidos com reclusão de dois a cinco anos os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Mesmo assim, podemos considerar que o pluralismo religioso está garantido no Brasil? Como a questão da religião é tratada na esfera pública? Discutem o tema a professora da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) Ana Keila Mosca Pinezi e o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Silas Guerriero.


Igualdade e tolerância

por Ana Keila Mosca Pinezi

O Brasil é um país cuja diversidade cultural é emblemática. Ao contrário de muitas teorias que atribuíram os problemas sociais brasileiros, como a miséria e a desigualdade social, a essa diversidade, aqui a apontamos como uma das maiores riquezas da identidade nacional e a possibilidade de uma mestiçagem que dela decorreu, processo que se deu em uma trajetória histórica que incluiu violências, imposições, mas também trocas recíprocas e colaborativas.

Esse processo de mestiçagem não significou, como se poderia imaginar, o apagamento da heterogeneidade de repertórios culturais dos mais distintos grupos, mas fez alargar e nascer outros tantos espaços socioculturais com visões de mundo as mais variadas. Citamos a culinária, por exemplo, para apontar como se deu a mistura e a hibridez, frutos da contribuição e reciprocidade dos e entre os diversos grupos sociais regionais e étnicos. A variedade de pratos, mas também a composição de novos, híbridos, remete à ideia desse processo de mestiçagem que queremos enfatizar aqui, o que não deixou de lado uma hierarquização das comidas correlacionada aos hábitos alimentares dos diversos segmentos sociais.

Houve nesse trajeto histórico não só aproximações, mas separações entre grupos sociais, atravessadas e fundamentadas por preconceitos, discriminações, segregações, racismos, estereótipos e outras sortes de violências. A diferença é usada como pretexto para justificar essas violências sejam elas físicas ou simbólicas), o que, por sua vez, coloca em xeque a ideia de que, no Brasil, a onvivência é harmônica, a despeito da diversidade cultural (o que, em sua essência, não deveria constituir um “problema”) e da desigualdade social (esta, sim, um grave e persistente problema na sociedade brasileira).

Relacionada a essa questão está outra, a da suposta unicidade de uma identidade nacional brasileira. Essa ideia utópica, portanto, traz em seu bojo a noção fantasiosa de uma cordialidade das relações sociais brasileiras que beira ao paraíso na Terra. O brasileiro como um ser intrinsecamente cordial já foi tema de muita discussão e de desmascaramento, assim como a ideia persistente de democracia racial. Se olharmos para a história, veremos como preconceitos, estereótipos e discriminações alimentaram intolerâncias expressas das mais variadas formas na sociedade brasileira. As intolerâncias, portanto, não são algo recente na nossa história.

A internet e a ampliação dos espaços dos meios de informação e comunicação só fizeram amplificar a publicização dos casos de intolerância que não são isolados. Esse termo, a intolerância, é importante frisar, tem sido utilizado para nomear os conflitos decorrentes dos contatos entre diferentes, entre os que não se reconhecem como sujeitos de direito ou cidadãos ou, ainda, os que decorrem da dominação de um grupo sobre outro sob a égide de uma pretensa superioridade. Seu antônimo, a tolerância, é, por outro lado, um termo que carrega conotações que evocam, na nossa sociedade, condescendência, por um lado, e um esforço para suportar o diferente, por outro, o que muitas vezes parece amenizar a carga de violência que sustenta e caracteriza os atos intolerantes.

Como dito anteriormente, vivemos em um país plural, cuja diversidade é, talvez, sua mais marcante característica identitária. Isso significa que os diferentes, em várias das situações e apesar das segregações sociais, acabam por conviver entre si em algum momento, o que poderia ser uma excelente oportunidade para aprender democraticamente como lidar com a diferença e a reconhecer respeitosamente a pluralidade de ideias e posicionamentos, sejam eles políticos, de orientação sexual, religioso etc. Se esse convívio entre diferentes não se der a partir de um processo de empatia, compreensão e reconhecimento mútuos, o que não se dá de forma voluntária ou mecânica, o que vemos é justamente aflorarem casos de intolerância, protagonizados por atos de violência das mais variadas formas.

No que se refere especificamente à diversidade religiosa brasileira, há registros não apenas recentes de casos não isolados de intolerância, mas que remontam à história do país e que apontam como grupos religiosos minoritários, marginalizados, segregados, inclusive racialmente, foram perseguidos por entidades e religiões hegemônicas. Por exemplo, as religiões mediúnicas e as de matriz africana por muito tempo foram consideradas religiões afeitas ao ‘mal’ e sinônimo de charlatanismo. Seus rituais foram criminalizados e, por essa razão, suas manifestações ocorriam na clandestinidade. Recentemente, esses grupos saíram da invisibilidade, embora ainda sofram, com maior frequência e intensidade, com atos de intolerância por parte de outros grupos religiosos.

Marcadores sociais como classe social, raça e gênero estavam e estão inter-relacionados com os preconceitos e as intolerâncias a determinados grupos religiosos. Disputas identitárias, proselitismos, imposição de moralidades, em uma arena de intensas relações de poder, são dimensões importantes para compreender as intolerâncias religiosas, apesar de termos uma lei que as criminaliza, a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989; Art. 1º, que diz o seguinte: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997), com pena de reclusão de dois a cinco anos. Sabe-se, no entanto, que embora sejam importantíssimos esses instrumentos
jurídicos, não são apenas eles que garantirão que os casos de intolerância religiosa deixem de existir. Se assim o fosse, também já teríamos assistido ao fim do racismo e da violência contra a mulher, por exemplo, em nosso país. Juntamente com esses instrumentos, enfatizo, de fundamental importância, há de se ter outras ações que promovam a aberta discussão e o total repúdio a práticas discriminatórias de qualquer natureza.

A escola é um espaço bastante importante nesse sentido, entre outras instituições sociais. É nesse contexto, ainda, que o Estado laico tem um papel fundamental. É ele que deverá garantir, de igual modo, a liberdade dos cidadãos de expressarem, publicamente ou não, suas crenças e valores, de realizarem seus rituais religiosos, sem perseguição, censuras ou discriminações. Todos os grupos religiosos, portanto, com base em um Estado laico e democrático, devem ter garantidos igualmente direitos no que tange às suas manifestações. Essa igualdade, por sua vez, pressupõe não apenas a laicidade, mas um Estado democrático que a garanta no universo do pluralismo religioso brasileiro.

A religião, equivocadamente pensada após a secularização como um sistema cultural que ficaria circunscrito à esfera privada, evidencia-se também na esfera pública, o que coloca em foco a importância não da destituição ou da interdição dela nesse espaço, mas de rigoroso tratamento igualitário a todo e qualquer grupo religioso por parte do Estado democrático e laico. Se assim não for, se grupos religiosos se impõem, instalam-se no espaço estatal e utilizam-se das instituições políticas e jurídicas para propagar suas verdades e moralidades, então a democracia encontra-se em risco, os direitos humanos podem ser facilmente violados e a intolerância é institucionalizada e sacralizada, levando à instauração de uma espécie de guerra santa em que qualquer vestígio de alteridade deve ser rechaçado e eliminado.

Lembramos aqui o Artigo 18º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos”. Esse é um direito universal que, contrariamente ao que se poderia pensar, valoriza as particularidades socioculturais e suas dinâmicas e coloca em questão a liberdade de expressão de um dos atributos mais caros e intrínsecos à própria humanidade: a diversidade cultural.

Ana Keila Mosca Pinezi é docente da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e suas áreas de interesse em pesquisa são religião e saúde; relações etnicorraciais; gênero, inclusão educacional e identidades.


Percurso histórico

por Silas Guerriero

É comum ouvir que o Brasil é um lugar tolerante e que aqui as diferenças desaparecem e convivemos em harmonia. No campo da fé, vemos religiões por todos os lados e até as mais diferentes parecem coexistir pacificamente. Estamos acostumados aos eventos “ecumênicos” com a presença de representantes de muitas denominações religiosas.

Portanto, somos um povo pacífico e a religião promove a paz entre nós. Verdade? Em parte. É bom ter em mente que não vemos, por aqui, conflitos religiosos de grande intensidade. Porém, isso não significa que não haja violências religiosas. A primeira delas foi, sem dúvida, a imensa violência física e simbólica contra os primeiros habitantes indígenas. Quando os portugueses por aqui chegaram traziam uma concepção de que religião era apenas a cristã e a fé em Deus era única. Logo, os diferentes povos que aqui
habitavam não possuíam religião, sequer tinham alma. Como tarefa esses primeiros colonizadores deveriam evangelizar os povos então tidos por selvagens. De forma pacífica, para alguns, ou à força, para a maioria, a religião cristã foi se tornando a única em todo o território colonial.

Há quem diga que não faz sentido afirmar que esses povos possuíam, ou possuem, religião. Se pensarmos em religião como organização institucional, com dogmas, verdades últimas e doutrina, é certo que não caberia falar em religiões nativas dos nossos índios. Mas esse é apenas um ponto de vista. Convém pensar a religião como um sistema simbólico, ordenador de sentido (de visão de mundo) e de práticas, que tem por base concepções de ordem metaempírica (ou seja, que não é desse mundo empírico, mas do “outro mundo”). Assim, os índios têm religião com certeza.

Cada etnia indígena tinha sua visão de mundo. Ou seja, sempre houve uma pluralidade religiosa por aqui, mas pluralismo é coisa mais recente. Envolve a ideia de Estado laico e liberdade religiosa.

Os colonizadores de então impuseram sua fé cristã como única possibilidade. Igreja e Estado estiveram unidos indissociavelmente por longos séculos. Somente com a República é que nosso país passou a ser laico. Nesse período, outros sistemas de crença já estavam presentes, seja com os indígenas, seja com as tradições de matriz africana ou até mesmo com as múltiplas formas de viver o catolicismo, híbrido e misturado com as anteriores. Uma maneira própria de viver o cristianismo, muito festeiro e, principalmente, democrático e acolhedor de diferenças. Talvez esse fato tenha marcado profundamente nossa sociedade e deixado “aquela” marca de tolerância apontada anteriormente.

No entanto, esse nunca foi um movimento totalmente tranquilo. Os negros jamais tiveram total liberdade de cultuar suas divindades, seus orixás. A própria devoção popular aos santos católicos nunca foi bem aceita pela ortodoxia da Igreja. Quando os primeiros imigrantes alemães chegaram, trouxeram o protestantismo e logo começou uma discriminação a essa outra vivência cristã. Pouco depois vieram da Europa novas mentalidades, como o espiritismo e outros esoterismos. Aos poucos o cenário brasileiro foi se transformando. Novas religiões surgiram, como a umbanda e outras, que combinavam elementos de distintas matrizes. As religiões orientais também chegaram por aqui tendo os imigrantes como portadores. Na segunda metade do século 20, novas espiritualidades ajudaram a compor esse rico mosaico que é a paisagem religiosa plural brasileira.

Um olhar mais acurado dirá que essa pluralidade não é tão grande assim. De acordo com dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), os cristãos formam um contingente de praticamente 87% da população. Imensa maioria. Os sem religião, aqueles que não se identificam com nenhuma denominação ou são ateus e agnósticos, são 8% e todas as demais, aí incluídas a umbanda, o espiritismo, o candomblé, as religiões orientais e as novas religiões, somam pouco mais de 5%. Muito pouco, portanto. Claro que há nessas categorias uma enorme variedade, como é o caso dos cristãos. Temos as mais diferentes maneiras de ser católico, assim como também uma infinidade de denominações evangélicas pentecostais, que formam uma miríade de igrejas.

É por isso que podemos afirmar que entre nós existe um grande pluralismo religioso. Além do mais, a nossa sociedade é laica e o Estado garante a coexistência das diferentes manifestações de fé. A secularização, isto é, a separação das coisas religiosas das coisas “deste mundo”, tornou o pluralismo uma realidade cada vez mais presente.

Mas se a verdade é uma só, por que existem diferentes religiões? Por que chama atenção falar da existência de diferentes religiões? Um palpite é que elas falam de verdades do “alto”, de “coisas sagradas” e, portanto, “não deveriam existir tantas assim!”.

Não é possível pensar a religião se não for na cultura. E cultura é fruto da imensa criatividade e plasticidade humanas. Basta que um grupo se separe que logo teremos a constituição de novas maneiras de viver, de novas formas de linguagem e, também, novas visões de mundo. Enquanto as sociedades humanas foram (e muitas ainda o são) pequenas, o sistema religioso era comum a todos os indivíduos de um mesmo grupo. Quando os grupos se separam, tendem a formar novas etnias e as marcas identitárias, entre elas a religião, serão utilizadas no jogo de estabelecimento de fronteiras entre os povos. Surgem cada vez mais conflitos entre os grupos, inclusive de ordem religiosa. Quando as sociedades começam a crescer em complexidade, surgem diferenças internas. A modernidade trouxe mudanças muito profundas, colocando nas subjetividades a possibilidade da busca da verdade. Isso mudou radicalmente a maneira de ver o mundo. A religião não é mais a única detentora da verdade. Isso acentua a pluralidade. O indivíduo ganhou autonomia. Hoje temos uma exacerbação desse processo. Deus, ou verdade última, deixou de ser algo distante, fora de nós. Para muitos, a verdade está no interior dos sujeitos, numa íntima relação do Eu com o Cosmos.

Podemos enxergar duas grandes tendências. De um lado, há os mais fundamentalistas, que com suas verdades únicas procuram desmerecer todos aqueles que pensam de maneira diferente. De outro, há os mais relativistas, principalmente aqueles mais voltados às novas espiritualidades, em que a verdade está dentro de cada um e, assim, todas as religiões passam a ser verdadeiras, pois são tidas como diferentes caminhos de chegar a uma mesma verdade.

Nossa sociedade moderna não produziu uma democratização pacífica de posições distintas. Há conflitos, sem dúvida. Muitas tradições religiosas são agredidas a cada dia no Brasil. Se há inúmeros exemplos de convivências múltiplas e sincretismos, há também intolerâncias. Nosso país é, portanto, um campo bastante complexo e nada uniforme (como nossa própria gente!). Um campo em constante movimento.

Silas Guerriero é doutor em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor associado do Departamento de Ciência da Religião, da Faculdade de Ciências Sociais na mesma universidade e professor titular da Universidade Paulista.