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Para além da “meteorologia da música no cinema”
Livio Tragtenberg nunca estudou música em uma escola. Autodidata, brinca que estudou com os melhores: os livros, as partituras e os discos. Na adolescência, começou a praticar, por conta própria, piano e saxofone. O acaso levou o músico ao cinema, quando o chamaram para tocar piano na gravação de um curta-metragem, e logo começou a propor alterações na trilha. Sua intervenção foi tão positiva que o fez entrar de vez para o ramo. Hoje, compõe música para teatro, cinema, dança, instalações sonoras e óperas. Foi professor, escreveu livros, gravou discos, fez apresentações no Brasil e no exterior. Criou a Orquestra de Músicos das Ruas de São Paulo, a Nervous City Orchestra, em Miami, e a Blind Sound Orchestra, com músicos cegos que dão ritmo a filmes mudos.
Você começou a compor música para cinema no início dos anos 1990. Como era o cenário naquela época?
Muitos diretores acreditavam que cabia à trilha sonora apenas tapar buracos, cobrir problemas de montagem do roteiro ou de interpretação dos atores. Por isso, era comum ver a filmes com muita música. Quando Tata Amaral convidou a mim e a Wilson Sukorski para trabalhar em Um Céu de Estrelas, tivemos a liberdade de compor uma trilha além da “meteorologia musical”, pois um dos grandes pecados do cinema nacional é achar que a função da trilha sonora em um filme é apenas criar climas. Discutimos bastante com a Tata e com o Eduardo Santos Mendes, que fazia o som do longa. Então pudemos trabalhar, pela primeira vez, som e trilha sonora juntos. Até aquele momento, o diálogo entre ambos era apenas teórico, na prática ele não acontecia: os filmes ficavam prontos, o som já estava praticamente montado e a trilha sonora era adicionada por último. Para mim, é essencial discutir sobre a trilha na fase de roteiro. Com a Tata foi assim também nos filmes Através da Janela e Hoje.
Qual a importância da música em um filme?
No cinema, a música é um importante elemento narrativo. Não basta enfatizar o que os olhos já veem, pelo contrário. Hitchcock sacou isso muito bem. A trilha sonora vem acrescentar o que o texto não pode dizer, o que a imagem não pode dizer, e que só o som pode dizer. Ele tem um espaço específico. Peter Brooke, que trabalha com teatro e cinema, tem um conceito que acho perfeito, sobre a ideia da completude. Nas encenações, o texto não diz tudo, o figurino não diz tudo, a luz não diz tudo, o som não diz tudo. É uma coisa que vai se compondo pelo espectador. Isso tudo evita o grau de obviedade da trilha sonora. O cineasta Alberto Cavalcante dizia que a capacidade narrativa do ruído é enorme. Porque o ruído mexe com referências concretas do espectador. Cavalcante ainda fala sobre o uso errado da trilha sonora, que é quando 1 + 1 = 1. Ou seja, o som tem de acrescentar algo na obra, senão, além de ser inútil, ele pode tirar o foco principal do filme.
É possível notar essa preocupação com o som e com a trilha sonora nas produções atuais?
Tenho visto alguns filmes e percebo que o eixo está mudando um pouco. A trilha sonora não vem mais no ápice da cena; ela vem, prepara o território e sai de cena. Hoje, temos uma capacidade fantástica de edição de som. Com novos sistemas, o detalhe de mixagem que você pode ter é maravilhoso. Então, no contexto de um filme, a questão espacial do som ficou mais importante e, às vezes, ela emociona mais. É a coisa da imersão, de botar o espectador dentro daquele espaço, ao invés de mantê-lo numa sala de concerto, em que, entre ele e a cena, há uma orquestra inteira tocando, como uma parede sonora. Abomino o uso da trilha sonora no cinema para emocionar o público. Esse tipo de curva dramática, que é uma coisa muito antiga, é usado para manipular o espectador. Cinema é mais do que isso. Essa manipulação reduz muito a interação do público com a obra.
O silêncio é tão importante quanto o som em uma obra?
O silêncio faz parte da trilha sonora. Mas, para que ele seja narrativo, ele tem de ser construído. É dificílimo. Nos últimos 20 anos, a edição de som ganhou espaço no cinema. Às vezes, uma emoção é transmitida ao público através de um ruído de porta, do som do ambiente. Com maior espaço para os elementos abstratos em um filme, o editor de som ganhou mais importância narrativa que o compositor. Isso é muito interessante, porque é acompanhado pela evolução da tecnologia. A “artesania” da edição de som chegou a tal sofisticação que o editor tem que conhecer sobre música, porque faz música com aquilo. Os papéis se inverteram. No passado, eu, como músico, fui estudar edição, aprender sobre ruído. Hoje, os editores começaram a aprender linguagem musical. Perceberam que, embora tenham as ferramentas, precisavam de elementos na construção da linguagem.
Como é composta uma trilha sonora?
Cada diretor entende a função do som e da música à sua maneira. Isso reflete na condução da composição da trilha, que vai de acordo com o pedido do diretor. As pessoas com quem tenho trabalhado nos últimos 30 anos são pessoas que se identificam com meu tipo de música e processo de criação. Hoje, temos acesso aos materiais de imagem ainda nas fases iniciais de gravação de um filme. É tudo muito rápido. O diretor filma durante o dia, à noite já está editando, e você recebe um pequeno preview disso por email. É um ganho de linguagem, porque um pode conversar com o outro durante o processo de criação.
Quais são suas referências na hora de compor uma trilha?
Minha maior referência, sem dúvida, é Stanley Kubrik. A forma como ele usava a trilha em suas obras e a relacionava com o roteiro é, para mim, o ponto alto da dramaturgia sonora no cinema. Ele trabalhava o som e o silêncio de maneira primorosa. Exemplo disso é a cena em que o osso voa em silêncio, no filme 2001: Uma Odisséia no Espaço. Aquele silêncio foi construído. Há também aí a questão do tempo, da temporalidade, que o filósofo Henri Bergson estudou bastante, no século XX, o tempo construído, o tempo subjetivo e o tempo do telespectador. O tempo que se constrói na cabeça do telespectador.
Existe diferença na composição de uma trilha para o teatro, a dança e o cinema?
O processo de criação é diferente porque a relação de tempo e de intensidade narrativa é diferente. Na Alemanha, trabalho muito com dança e com a ideia de não usar melodia. Deixo que os movimentos dos dançarinos preencham esse tempo. Crio só a harmonia. Essa ideia de incompletude é muito interessante de trabalhar. Não trabalho com ritmos muito certinhos, deixo sempre a rítmica variar um pouco, até chegar ao limite, porque nem os movimentos de um bailarino são sempre certos. Isso é a humanização do ritmo. Busco estratégias com o teatro e a dança, na hora da composição musical, que fazem sentido para aquele formato e aquela percepção, na qual a pessoa vai sentar, receber o material e se relacionar com aquilo naquele espaço de tempo. Diferente de uma instalação, em que você pode entrar, sair e voltar. A relação de atenção é completamente outra. A diferença é basicamente você trabalhar a relação com os diferentes elementos e o espectador.
Toda imagem tem um som, ou todo o som tem uma imagem?
Se eu te responder de uma forma sã, não. Mas é curioso porque, quando lancei meu primeiro LP instrumental, em 1980, as pessoas diziam que viam imagens na música. Eu nem pensava nisso. Mas comecei a me perguntar o que detonava essa ação de ver uma imagem na música. É um mistério de linguagem, um tipo de tradução que a pessoa faz da música e que varia de cada um. Quero manter esse mistério para mim.
Como é o mercado para compositores de trilhas sonoras no Brasil?
Hoje, há pelo menos dez vezes mais pessoas nesse mercado que há 20 anos. A tecnologia digital nos deu ferramentas, trouxe quantidade e qualidade, mas uma qualidade mais mercadológica do que criativa. Se, por um lado, há pessoas fazendo coisas incríveis, por outro, houve um aumento de compositores e produtores com pouca qualificação. A tecnologia também te leva a não ter tempo para uma coisa essencial, que é a formação dos sentidos - ouvir, ver, mexer. Como a produção e o consumo são muito rápidos, você dedica muito tempo à produção, e pouco à criação.