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A construção do som

Ao assistir uma obra audiovisual, seja ela no cinema, pelos canais de televisão ou pela internet, a maioria dos espectadores tem a impressão que todos os sons que se ouve foram gravados no mesmo momento que a imagem estava sendo captada. Talvez nem todos. Afinal, existe uma música que vem de lugar nenhum que, com certeza, não foi executada na hora da filmagem. Na verdade, o processo de construção dessa trilha sonora é tão intenso e criativo como em todas as etapas da realização audiovisual. Importante: quando me refiro à trilha sonora, quero dizer todo o universo aural apresentado, ou seja, as vozes, as músicas e os ruídos que compõem a obra. Quando estamos apenas no universo da música, utilizamos o termo trilha musical.

O som gravado simultaneamente à imagem está longe de conter apenas as vozes e eventuais ruídos. O som direto, como chamamos o som captado nesse momento, contém informações insubstituíveis da interpretação dos atores, da reverberação de suas vozes pelo espaço onde a cena é gravada que constroem uma imagem tridimensional e dos sons que envolvem esses espaços. Todos os outros elementos que se escuta num filme, como os sons ambientes e outros efeitos sonoros, são acrescentados numa segunda etapa, a finalização. E a escolha desses novos elementos dependerá de decisões narrativas e da proposta estética da obra.

Da mesma forma que o diretor de fotografia traduz em luz a proposta do filme e o diretor de arte, em formas e cores, existe um profissional encarregado em transformar a proposta do filme em sons: o sound designer. Idealmente, sua participação se inicia antes da filmagem, nas primeiras reuniões de criação a partir da leitura do roteiro e termina após a mixagem da trilha sonora. O sound designer, termo consagrado a partir dos anos 1970, possui conhecimentos que vão além da técnica de gravação e reprodução sonora. Psicoacústica, narrativa, teoria musical e a relação dinâmica entre imagens e sons fazem parte de sua formação.

Esse jogo entre o que se vê e o que se ouve num filme começa a se formar no fim dos anos 1920, quando a reprodução tecnológica do som cinematográfico se torna um fato comercial. A partir desse evento, a percepção que os espectadores têm com os filmes se transforma por completo. Nos filmes silenciosos, grande parte do processo de criação do universo sonoro partia da imaginação do próprio espectador. As vozes das personagens, os ruídos mostrados na tela ou aqueles que compõem o ambiente onde se passa ação se formavam a partir das referências de cada um. Era uma participação ativa e singular. Com a materialidade da reprodução do mesmo áudio que será escutado por todos, a independência do espectador desaparece e em seu lugar surgem novos vínculos entre imagem e som.

Cabe ao som levar a sensação da continuidade tempo/espaço diante de uma imagem. É a escuta dos sons contínuos do ambiente, como pássaros, ventos ou crianças brincando ao longe, que faz com que uma sequência de imagem que varia entre planos de diferentes dimensões com diferentes ângulos não pareça descontínua. Outros desses vínculos o pesquisador Michel Chion definiu como contrato audiovisual. A partir do momento em que imagem e som são apreendidos simultaneamente, ambos perdem seu valor de origem. Nunca mais veremos um objeto da mesma forma quando nós o ouvimos; e ao mesmo tempo, nós nunca ouviremos da mesma forma quando o vemos. Um terceiro valor indissociável se cria a partir dessa união.

Levando a ideia de Chion ainda mais adiante, o som irá dizer ao espectador como ler a imagem. É pela associação audiovisual que se interpreta a imagem como verossimilhante ou que se retira essa característica dela. O som pode definir força ou fragilidade de um personagem ou um objeto.  Pensemos num personagem que seja um homem grande e forte. Ao falar, sua voz pode ser potente e grave ou fina e esganiçada. A forma que veremos e ouviremos esse personagem irá definir muito de sua personalidade.  

Há outras características da trilha sonora na relação audiovisual que foram estabelecidas com o passar dos anos. Uma dessas características foi expandir o uso de sons ambientes para além da continuidade tempo/espaço já apresentada. Pelos timbres dos sons escolhidos na sua composição e pelo ritmo que seus elementos apresentam, essa sonoridade costumeiramente relegada a um segundo plano de escuta e quase imperceptível ao espectador pode conduzir a percepção da imagem, acelerando ou retardando sua leitura; gerando sensações de amplitude ou confinamento; criando tensões ou relaxamentos.

Há muito mais na trilha sonora do que o áudio gravado na filmagem e a música criada a posteriori e cabe ao sound designer criar uma paleta de sons que mais se adequem à estética proposta e conduzam o espectador cada vez mais para dentro da narrativa. Seu grande parceiro é o autor da trilha musical. Juntos com o realizador, irão traçar a dinâmica da trilha sonora ao longo da obra para que todos os seus elementos soem como um uno continuo mas, isso já papo para uma outra conversa.
 

Eduardo Simões dos Santos Mendes é mestre em Ciências da Comunicação, doutor em Artes e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.