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O vasto mundo do futebol
Relações entre arte e futebol é assunto para acadêmicos preparados e capazes. Por decorrência, cinema e futebol também. Nesse ultimo caso, no entanto, me atrevo a dar algumas opiniões. É claro que o que se vai ler são apenas vagas reflexões de quem, embora sem nenhuma especialização teórica na matéria, trafega em torno dela há muitos anos.
Dito isso, quero lembrar, para começar, que o futebol chegou ao Brasil trazido por ingleses e foi abraçado, em princípio, pela alta burguesia nacional. Senhoras iam ver um Fla X Flu em trajes formais, dos quais ainda certos eventos nos Jockeys Clubs brasileiros são uma lembrança. O futebol não era um esporte do povo, ao contrário. Essa é a razão, me parece, de um grande escritor como Lima Barreto, por exemplo, ter detestado o futebol. Negro, pobre e discriminado, Barreto odiava o futebol talvez por ressentimento contra uma sociedade que, ao mesmo tempo, o discriminava e apoiava o futebol. Infelizmente, morreu cedo, não teve tempo para ver o inverso: o futebol cair nas graças do povo e, num processo previsível, ser abandonado pela elite. Talvez se tivesse alcançado o período em que o futebol se tornou o esporte do povo e dos negros, Lima Barreto poderia ter escrito um grande livro tendo como elemento fundamental esse esporte. E tudo talvez tivesse mudado de figura nas relações entre futebol e arte brasileira.
Mas não foi assim. O que aconteceu é que o futebol, exatamente quando passou a pertencer às classes mais desfavorecidas, despareceu também do universo da arte, onde, aliás, a rigor, jamais chegou a figurar. Durante anos não se falou nisso. Era um tema não considerado nobre. Talvez porque fosse verdadeira diversão popular, alegre e despreocupada. Sendo diversão, alegre portanto, não poderia ser levado a sério. Durante muito tempo o povo foi, pela arte pelo menos, visto apenas como sofredor. O escravizado, injustiçado, mal pago, explorado, no âmbito do qual era impossível qualquer tipo de alegria de viver. O futebol, essa manifestação feliz seria, portanto, algo sem qualquer propósito, quando não empostado, falso e francamente alienante.
Houve quem, pelo menos de maneira superficial, visse o futebol tal como era: manifestação autêntica, original e valiosa da cultura popular brasileira. Os modernistas, por exemplo, em especial Antonio de Alcantara Machado, com seu Brás, Bexiga e Barra Funda, onde há um conto, um solitário conto, que se chama Corinthians 2 X Palestra 1. Fora isso, nada. Mesmo o cinema, como arte popular que é, pouco se ocupou do futebol. Lembro de um só filme, podem ter havido outros, não sei, mas eu lembro apenas de um filme, O Craque, de José Carlos Burle, de 1952, dedicado ao futebol. Nas artes plásticas só consigo lembrar de Gerchman e, no teatro, Vianinha e um pouco Plinio Marcos. Mesmo Nelson Rodrigues, cronista do Jornal dos Esportes – e Fluminense fanático – jamais, em seu teatro, se ocupou do futebol.
O artista brasileiro, apesar dos esforços de alguns modernistas, em geral sempre olhou para temas que pudessem ser valorizados no exterior, em particular na Europa. Pena que não se preocupassem em olhar também para o que acontecia nos EUA. Lá, ao contrário, sempre viram no esporte uma fonte preciosa de dramaturgia. Basta atentar para a quantidade de grandes livros e filmes que produziram sobre boxe, por exemplo. Mas não futebol, que lhes era desconhecido ou indiferente. Ficamos inteiramente alheios a essas produções americanas, sem nos atentarmos que, bem nas nossas vistas, havia uma manifestação brasileira no esporte que era um verdadeiro manancial de humanidade em todas as suas formas.
Enquanto esse assunto não for recuperado pelas elites intelectuais do Brasil, enquanto não for considerado como fonte de experiências que merecem ser analisadas através da arte, com seu componente de miséria, drama e também a alegria e exaltação, jamais haverá qualquer relação entre arte e futebol. Algumas poucas ficções e alguns, mais numerosos, documentários significativos podem indicar um caminho. Devo reconhecer, por outro lado, que, nos últimos anos algo dessa situação dá a impressão de mudar. É inegável que o futebol, embora ainda timidamente, finalmente parece emergir das sombras onde estava. E não só no cinema. Na literatura e em ensaios acadêmicos de grande qualidade tenho a impressão de ver o futebol sendo tomado como assunto importante. Espero que seja mais do que mera impressão. Está à disposição de todos que trabalham com o material da arte um campo precioso, ainda quase inexplorado e vasto. Muito vasto.