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Música para ser vista

Marcelo Andrade sempre foi fanático por música. Aos 23 anos, se mudou para Barcelona, onde viveu por 17 anos. Dividia o trabalho de criação em agências de publicidade com um programa de rádio que tinha em uma emissora livre, chamado Caos Brasilis. Seu programa era especializado em música brasileira e democrático, tocava de João Gilberto à Sepultura. Cansado da vida de publicitário e com as dificuldades econômicas que começavam a preocupar a Europa, Marcelo decidiu voltar ao Brasil, trazendo na mala um dos festivais mais representativos de documentário musical do mundo, o In-Edit, que chega à oitava edição neste ano.

Qual a importância do cinema falar sobre música?
A importância é total, principalmente no Brasil. Nós somos o segundo país que mais consome música própria no mundo. Acima da gente, só os Estados Unidos. Boa parte da nossa cultura passa pela música. Num país onde a música é tão forte e a gente tem uma carência enorme até de arquivar a nossa história, é fundamental associar música ao audiovisual. Você cavuca arquivo, registra atuações, até etnográficas. Isso faz parte do registro da nossa cultura. Quando o cinema fala sobre música, principalmente no Brasil, é uma maravilha.

O que faz de um filme um documentário musical?
A música tem de ser o tema central. Mas isso não significa que tenha de ser a biografia de uma pessoa, ou de uma banda. Pode ser um filme sobre um movimento musical ou uma casa de show. O último Festival de Sundance premiou um documentário sobre musicoterapia, por exemplo. Há ainda o documentário Waiting for B, de Paulo Cesar Toledo e Abigail Spindel, sobre os fãs que ficaram acampados por dois meses na fila do primeiro show da cantora Beyoncé, no Brasil. Enfim, você pode fazer um documentário sobre um disco ou sobre uma canção.

Há espaço para a música no cinema e na televisão?
A gente tem uma televisão aberta com uma quantidade enorme de canais, temos uma quantidade gigantesca de canais a cabo, além do Netflix, e ainda temos a Lei da TV Paga. Hoje, o problema dos documentários musicais talvez esteja no fato de muitos diretores não conseguirem finalizar seus projetos por estarem envolvidos com outros trabalhos, mais comerciais, para algum canal. Filmes sobre bandas como Blitz e Ira!, por exemplo, estão parados há anos.

Como foi trazer ao Brasil um festival como o In-Edit?
Em 2008, quando o [presidente do governo espanhol José Luis Rodríguez] Zapatero mencionou a palavra crise, perdi meu último cliente e também meu programa de rádio. Não tinha mais trabalho. Na época, minha namorada organizava o primeiro Festival de Cinema Brasileiro em Barcelona, e quem fazia a assessoria de imprensa era o pessoal do In-Edit, que também presta esse tipo de serviço, além realizar o festival de documentários. Pensei: e se eu levar isso para o Brasil? A gente fez o primeiro, na cara e na coragem, sem patrocínio. No segundo, a gente ganhou um edital e já começou a pagar as dívidas [a oitava edição do festival irá ocorrer entre 1º e 12 de junho e recebe inscrições de longas-metragens até o dia 21 deste mês para a mostra competitiva].

 

“Há uma coisa muito clara no documentário musical:
ninguém ganha dinheiro fazendo isso. Quem faz, faz por
pura necessidade artística, pela necessidade de contar aquela história”

 

Qual relevância do festival no cenário nacional e internacional?
Quando eu trouxe o In-Edit para cá, ele já estava na sexta edição em Barcelona e na quinta no Chile. O festival já nasceu com uma via internacional. O Brasil talvez seja o país que mais tem festivais de cinema no mundo, em torno de 200 por ano. Ou seja, a concorrência é muito grande. A gente veio com um “ovo de Colombo”. Foi muito difícil, porque eu não conhecia ninguém. Então, me associei ao Léo [produtor Leonardo Kehdi] e fomos adiante. Eu acredito que o segredo de tudo está na seriedade e na constância. Fazemos uma boa curadoria. A gente chega a receber uma média de cem filmes brasileiros por ano. Assisto entre 250 e 300 documentários nacionais e internacionais para fazer a seleção do festival.

É possível traçar um panorama atual da produção de documentários musicais?
Temos as grandes produções, de grandes cineastas. Depois, um segundo escalão, com produtoras médias, que conseguem fazer projetos bons. E por fim, tem a galera da guerrilha, com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, que quer contar a história. Há uma coisa muito clara no documentário musical: ninguém ganha dinheiro fazendo isso. Quem faz, faz por pura necessidade artística, pela necessidade de contar aquela história. Nesse sentido, a produção brasileira de documentário continua muito ativa, não parou. Temos documentários belíssimos no Brasil, como Dzi Croquettes [de Raphael Alvarez e Tatiana Issa], Vou Rifar Meu Coração [de Ana Rieper], Loki - Arnaldo Baptista [de Paulo Henrique Fontenelle]. O documentário Vinícius [de Miguel Faria Jr.] é de 2005 e continua sendo o documentário mais visto do Brasil. Tem muita coisa bacana para ser feita, desde os grandes, dos medianos e dos guerrilheiros.

Hoje, grandes produtoras e até o Netflix produzem documentários musicais. Dá para dizer que eles estão em alta?
De certa forma, sim. O termo documentário musical é recente, apesar dessas produções já existirem. Ninguém inventou a roda. O que aconteceu foi que colocamos o foco nelas para deixá-las em evidência; a gente só apontou onde estavam. Humberto Mauro fazia documentário musical na década de 1930, no Brasil. A descoberta do jargão abriu possibilidades para que o documentário musical entrasse em várias programações; a imprensa gosta muito, porque é uma desculpa maravilhosa para você botar uma foto do Jimmy Hendrix enorme na capa do jornal, por exemplo. É possível dizer que documentário musical está em alta porque ele acaba sendo um produto muito popular.

O videoclipe, que teve seu auge nas décadas de 1980 e 1990, ainda é essencial para a divulgação do trabalho de um artista/banda?
O videoclipe dos anos 1990 veio realmente como uma ferramenta de divulgação. O que passou a ser uma coisa espetacular, principalmente para o mundo da publicidade. Era uma delícia. Tinha uma TV na agência em que eu trabalhava que ficava passando videoclipes. A gente ficava o dia inteiro de olho, seja em uma referência de roupa, de um cenário, de uma linguagem diferente. Hoje, para as grandes produtoras, com os artistas consagrados, os videoclipes talvez tenham ficado um pouco para trás. Mas isso já não ocorre com artistas mais populares, como MC Guimê, por exemplo, que tem milhões de acessos a seus vídeos no Youtube. Nesses casos os videoclipes continuam funcionando muito bem.

O documentário musical pode exercer a função de divulgação do videoclipe?
Quem vê documentário não vê na televisão aberta. Isso é uma adequação ao público. Você tem que ir onde o público está. A linguagem do documentário não é popular e não vai substituir ninguém. Mas talvez a indústria fonográfica encontre nos documentários musicais uma maneira de divulgar os artistas. Talvez as produtoras comecem a investir em um audiovisual para determinados artistas com outro tipo de visão. Não tão imediatista como o videoclipe, mas como um show. O videoclipe não está morto. O que acontece é que ele está “dando um rolê por outras trevas”.

Os avanços tecnológicos possibilitam a democratização na produção?
As novas tecnologias ajudam muito a produção de filmes, democratizam, mas não garantem talento. Pegar uma câmera e ir para sua quebrada não garante que você se torne um grande cineasta. Muitos dos que pegam o equipamento e vão para a rua têm um registro de linguagens audiovisuais apenas da TV. Essa galera não faz filmes, faz reportagens. Acho isso válido. Há vários resultados legais. E se você quer ser visto, mesmo que não seja selecionado em um festival, as mídias sociais ajudam bastante na divulgação. Por isso eu brinco que o pior que pode acontecer com o seu filme é ele ir para o Youtube, o que significa que, mesmo assim, todo mundo pode ver. Você pode colocar em alta definição, em qualquer idioma, que todo mundo vai te ver. Você pode atrair público e tornar seu trabalho conhecido.