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Temos espaço público?
O que é um espaço público? Uma praça, um parque, uma rua, um shopping? A resposta parece simples, mas não é. Nos acostumamos, entre os arquitetos, a aceitar de forma acrítica a longínqua referência grega, segundo a qual a praça pública (ágora) é o lugar privilegiado do encontro e da realização democrática na cidade, o lugar onde as pessoas se manifestam livremente e exercem o seu papel político de cidadãos ativos. Assim, quando um arquiteto brasileiro abre um espaço vazio em seu projeto, e o chama de “praça”, está invocando ainda, muitas vezes, esses altos ideais. Mas como é que na prática se dá a passagem, aparentemente natural, de um espaço simplesmente vazio, chamado no desenho de “praça”, e a realização concreta de atividades públicas, entendidas como expressão de uma soberania cidadã?
Me parece que o problema principal reside no fato de que ainda não compreendemos bem, no Brasil, o que é a esfera pública. O Brasil é um país fortemente marcado por práticas sociais patrimonialistas, isto é, pelo costume de se tratar os interesses públicos como se fossem privados, segundo relações pessoais, de favor, que não raro redundam em tráfico de influência e corrupção. Essas práticas, como sabemos, remontam ao período colonial, à escravidão, e se perpetuam em nossa vida republicana nos modos pelos quais as elites agrárias se tornaram as elites industriais. De forma correspondente, nosso processo de urbanização e modernização foi e é altamente baseado em concentração de renda e segregação sócio-espacial, e nossas praças e parques são gradeados, e usados comumente como banheiros públicos a céu aberto.
Honrosas exceções existem, diga-se de passagem, como, por exemplo, o Parque Ibirapuera e os edifícios-praça do Sesc Pompeia e do Centro Cultural São Paulo, assim como o vão livre do Masp, por exemplo. Mas fica, portanto, a questão: como fundar o conceito de espaço público em uma sociedade que não conhece a esfera pública, isto é, que não se vê como um conjunto de cidadãos identificados por uma identidade comum em termos políticos?
É evidente que não poderemos, de uma hora para a outra, remediar tamanha falta na nossa formação histórico-social. No entanto, cumpre assumir de uma vez por todas que o espaço público em nossas cidades não é e nem será visto como um lugar pacificado, apaziguado, mas, ao contrário, como o lugar da disputa e do atrito. Para nós, no Brasil, o espaço público ainda é essencialmente algo que não temos, sendo, portanto, algo pelo qual precisamos lutar, mesmo considerando que os anos de redemocratização tenham trazido avanços inegáveis em termos de gestão do estado, sobretudo para as periferias, como no caso das praças de equipamentos dos CEUs (Centro Educacional Unificado), por exemplo. Daí o extremo interesse do que tem ocorrido com a nova Praça Roosevelt, que tem seu uso aguerridamente disputado por diversos atores sociais, como moradores do entorno, grupos de skatistas e famílias com crianças, sem falar nas companhias de teatro que povoam a rua lindeira. Ainda que, paradoxalmente, o processo de valorização imobiliária daí decorrente esteja expulsando progressivamente esses mesmos grupos teatrais, e que hajam fortes pressões para gradear a praça, restringindo o seu uso noturno.
Essa noção do espaço público como lugar da deflagração e da mediação dos conflitos é absolutamente vital, e relativamente nova entre nós. Com efeito, irrompeu de forma surpreendente nas manifestações de junho de 2013, com a bandeira do exercício democrático como realização de um “direito à cidade”.
Depois dos vários occupy que tomaram as cidades pelo mundo nos últimos anos, de Nova York, Istambul, às cidades brasileiras e do mundo árabe, está claro que as práticas sociais ligadas à apropriação coletiva do espaço público podem se contrapor de forma relevante à especulação imobiliária, ao consumismo exacerbado e à predominância dos interesses privados. Temos aqui fortes exemplos de ativismo urbano recente, tanto ligado a movimentos artísticos, quanto de “urbanismo tático”, ou referidos a causas sociais e políticas mais diretamente. Exemplos importantes são o movimento Ocupe Estelita, no Recife, a Praia da Estação, em Belo Horizonte, e movimentos como o Parque Augusta e A batata precisa de você, em São Paulo, entre tantos outros. Me parece que esses movimentos surgem propondo uma reversão da relação tradicional entre política e sociedade civil. São expressões de uma sociedade que cansou de esperar pelo espaço público vindouro, e decidiu batalhar por ele indo às ruas e usando esses espaços, mesmo que eles sejam praticamente inabitáveis, como o novo Largo da Batata, ou o Minhocão aos domingos.
Guilherme Wisnik é arquiteto, crítico e professor da FAU¿—¿Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.