Postado em
“Não dá para impor uma cidade para a sociedade”
Sergio Roizenblit e Paulo Markun compartilham o gosto pela arquitetura e pelas questões da cidade. Os dois se conheceram durante a Bienal de Arquitetura de São Paulo, no início dos anos 1990. Markun, jornalista e documentarista, já havia sido repórter, editor, chefe de reportagem e diretor de redação em emissoras de televisão, jornais e revistas. Apresentou por mais de dez anos o programa Roda Viva, na TV Cultura de São Paulo, e foi presidente da Fundação Padre Anchieta. Roizenblit atua como documentarista desde 1988. Produziu vários trabalhos: de instalações e videoclipes, a programas de TV. Seu primeiro longa-metragem, O Milagre de Santa Luzia, foi adaptado em uma série homônima, veiculada pela TV Cultura, em 2012. Juntos, já dirigiram diversos projetos, como as séries Arquiteturas e Habitar Habitat, realizadas pelo SescTV.
Como surgiu a ideia de abordar a arquitetura em uma série de TV?
Sergio Roizenblit: Vimos que havia espaço para falar sobre urbanização e arquitetura na televisão, e precisávamos explorar. O projeto já nasceu claramente delineado com essa intenção. Nós dois temos muita ligação com o tema. Sempre gostamos de arquitetura. Na adolescência, o Paulo frequentava a casa do arquiteto Vilanova Artigas, já eu, fui casado com uma arquiteta e participei também da gestão da Escola da Cidade, que foi pensada praticamente aqui em casa. Hoje, a cidade como espaço público está sendo debatida no mundo inteiro, na mesa de bar e não mais no gabinete do arquiteto, do urbanista ou de políticos. Queríamos levar essa discussão para a TV.
Qual a importância de discutir arquitetura na atualidade?
Paulo Markun: Essa discussão tem os ingredientes de um debate intenso e polêmico, porque não há uma receita mágica. E não há solução sem problemas. A cidade é pública, mas isso não quer dizer que você pode ocupar as ruas de repente, porque isso atrapalha a vida de outras pessoas, dos moradores. Ao mesmo tempo, não se pode proibir o uso das ruas para manifestações e festas populares. Em Belo Horizonte, a prefeitura chegou a proibir manifestações em uma praça. Então, a sociedade se organizou e fez uma praia nessa praça, no meio da cidade, onde as pessoas se banhavam com mangueira. E dali nasceram 200 blocos de carnaval de rua.
Houve mudança de foco nos novos episódios da série Arquiteturas?
Paulo Markun: A segunda temporada da série foi fruto da experiência do programa Habitar Habitat. Não queríamos fazer mais um programa sobre construções, nem sobre algo que se destacava na paisagem por si só, mas que envolvesse as questões urbanas, as pessoas que habitam, frequentam e ocupam os espaços. Há um processo que é mundial de discussão sobre as questões da cidade, que faz com que o urbanismo não esteja mais no território exclusivo dos arquitetos e dos acadêmicos. Ele é das pessoas. Uma parte da nossa sociedade está entendendo que para viver numa cidade melhor, o cidadão também tem que fazer a parte dele: tem que querer viver e conviver na cidade.
Essa mudança pautou os novos espaços e temas abordados?
Sergio Roizenblit: Procuramos olhar o que estava acontecendo nas ruas, que têm uma dinâmica e uma vida própria. Conversamos com as pessoas, que sugeriam lugares. A praia de Belo Horizonte foi uma sugestão de uma menina que entrevistamos no Rio de Janeiro. E eu nem sabia que existia. O Largo da Batata, o rio Capivari, o Largo da Ribeira são projetos interconectados, cujos participantes trocam experiências entre si. Descobrimos, inclusive, que eles têm uma rede de ação social de intervenção nas cidades. Ou seja, existe um grupo de pessoas agindo anônima e fortemente na ocupação dos espaços públicos, que não é vinculado a partidos políticos. São pessoas que têm uma inquietação social.
Há semelhanças nas ações de ocupação dos espaços públicos nas diferentes cidades do Brasil?
Paulo Markun: Sim. É um movimento jovem que tem em suas lideranças pessoas entre 20 e 30 anos. Há um sentido libertário e transgressor nesse movimento, o de não aceitar a cidade e a sociedade do jeito que ela é.
Sergio Roizenblit: Com o tempo, a gente percebeu que há uma tentativa de inverter a pauta e fazer com que a sociedade paute o governo. Não se pode mais esperar que apenas ele tome uma iniciativa. Sinto que há uma mudança muito mais profunda sobre o papel do Estado. Ele deixa de ser um pai que cuida da sociedade, e passa a ser um mediador. Para isso, a população vai ter que achar um jeito de viver coletivamente, vai ter que achar formas de viver sem a participação do Estado. Do ponto de vista urbano, isso é essencial.
Como a sociedade pode se apropriar de um espaço e ressignificá-lo?
Paulo Markun: O Centro Cultural São Paulo é um bom exemplo de espaço público que foi apropriado pela população e que fez dali um território de total liberdade. Isso não foi planejado pelos arquitetos. O prédio foi projetado para ser uma biblioteca. Mas a quantidade de edificações no Brasil que carregam a arquitetura em seu DNA é muito pequena. As cidades, principalmente suas periferias, são um amontoado de coisas feitas pelas próprias pessoas, em ambientes miseráveis, sem planejamento e sem espaço público, em geral.
Sergio Roizenblit: É interessante você pensar na transformação de Brasília também. Não dá para impor uma cidade para a sociedade. O projeto do Lúcio Costa veio em um momento de mudança do país, quando ocorreu sua verticalização. Mas ele dizia: “A cidade é assim”. Tudo totalmente definido e planejado. Aí, vem a população e se apropria do espaço e o transforma. As cidades satélites foram surgindo de maneira espontânea e caótica.
A população brasileira valoriza sua arquitetura?
Paulo Markun: O brasileiro tem pouca intimidade com arquitetura e, muitas vezes, não consegue enxergá-la. Tivemos uma experiência curiosa na gravação do episódio da primeira temporada da série sobre a Fábrica da Natura, projetada por Roberto Loeb. Um funcionário entrevistado nos disse: “Eu gosto muito daqui. Parece um shopping center”. Na verdade, aquele prédio é o oposto de um shopping center, cuja arquitetura é pensada para comprar. Isso nos mostra que talvez a única coisa construída e planejada que aquele funcionário conheça seja um shopping center, que é lindo, bem-acabado e grande.
Mas a supervalorização urbanística não pode contribuir para o fenômeno da gentrificação, ao revitalizar uma área e aumentar seus custos de moradia, afetando a população local?
Sergio Roizenblit: A gentrificação é um problema e não há solução. Nenhum bairro no mundo conseguiu resolver, infelizmente. Arrumou, o pobre tem que sair. Inclusive, essa é uma questão permanente na série. Na Gamboa, um entrevistado alerta seus vizinhos para não venderem seus imóveis “Porque eles vão valorizar”. Ou seja, ele está falando para não venderem agora, e sim depois, porque, no fim, eles vão ter que vender. Algo parecido acontece com os mercados centrais, que viraram uma praça de alimentação.