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Uma trajetória pela memória do Brasil

Sempre importante conhecer ou rever a obra de Humberto Mauro, criador de mais de 350 filmes. O cineasta nasceu em Cataguases, cidade singular da Zona da Mata mineira que, beneficiada pela riqueza do café, moderniza-se rapidamente no início do século 20, com uma vitalidade cultural que repercute em outras regiões do País. Após realizar três longas-metragens ficcionais (e já algumas experiências documentais), Humberto Mauro segue para o Rio de Janeiro, onde vivencia o início do cinema sonoro com passagens pela Cinédia, de Adhemar Gonzaga, e Vita Filmes, de Carmem Santos, principais expoentes do cinema brasileiro do período. Em 1936, é convidado por Edgar Roquette-Pinto, para a fundação do INCE (Instituto Nacional do Cinema Educativo), do qual se torna diretor técnico.

Interessante estratégia do governo getulista: enquanto coube ao DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) as atividades de censura e a produção dos filmes de propaganda, a área de Educação e Cultura, liderada pelo ministro Gustavo Capanema (cujo chefe de gabinete era o jovem poeta Carlos Drummond), foi deixada a cargo de quadros progressistas, tendo como colaboradores intelectuais do porte de Anísio Teixeira e Roquette-Pinto, e artistas modernistas como Villa Lobos ou Mario de Andrade, em São Paulo.

Ao fim do Estado Novo, Humberto Mauro permanece à frente do INCE pelos governos sucessivos, até se aposentar, em 1967. Diante da precariedade industrial do cinema nacional, o fato de ser funcionário público e produzir especialmente curtas e médias-metragens documentais lhe permitiu uma produção extensa e contínua que poucos cineastas brasileiros sonharam alcançar.

Ainda que estivesse distante dos debates políticos associados ao Cinema Novo, foi uma referência fundamental para essa geração: de uma forma ampla, como o cineasta que dedicou sua obra a representar a cultura nacional; e de forma pontual, por exemplo, cedendo equipamentos para que jovens paraibanos (Linduarte Noronha e Vladimir Carvalho) realizassem Aruanda (1959), considerado um marco no Cinema Novo no campo documentarista.

Nas últimas décadas, a partir do restauro de parte de sua obra, lançamentos em VHS, DVD e, mais recentemente, disponíveis online, seus filmes adquirem um alcance que dificilmente poderiam ter tido na época em que foram realizados. Tornaram-se objeto de reflexões por um grande número de pesquisadores, fato demonstrado pelo maior número de dissertações, teses e livros sobre o autor, seguindo uma trilha (como tantas outras) aberta por Paulo Emilio Sales Gomes, com sua tese defendida em 1972.

A extensa obra de Mauro acompanha um período de forte industrialização e profundas transformações na sociedade brasileira, quando boa parte da população migra do campo para as cidades. Por isso, embora explore os avanços da ciência e da medicina de seu tempo, revela uma forte melancolia pelos elementos da cultura rural em risco de extinção pela modernidade. Transitou por diferentes formatos, durações (curtas, medias e longas-metragens) e temáticas, como filmes científicos, noções de higiene, conservação de alimentos, construção de fossas, até o registro de práticas tradicionais como a construção do carro de boi, biografias, adaptações literárias, até representações visuais do cancioneiro popular, como na série Brasilianas, entre tantas outras abordagens.

Obras que, se não tinham finalidade educativa ou relação direta com conteúdos programáticos das escolas, como bom mineiro, discretamente, provavelmente construiu um dos mais completos registros da cultura tradicional brasileira em imagens e sons. Sua experiência no campo ficcional também fica evidente em sua produção documentarista, como o apuro técnico na fotografia e composição dos planos ou em sua estrutura narrativa e cenas dramatizadas, permitindo diálogos com as reflexões contemporâneas sobre as fronteiras entre esses gêneros.


Para quem quiser conhecer melhor a obra de Humberto Mauro, recomendo os livros: Humberto Mauro e as Imagens do Brasil , de Sheila Schvarzman (editora UNESP, 2004), e o recém lançado livro de Eduardo Morettin, professor da ECA/USP, Humberto Mauro, Cinema, História (Alameda editorial, 2013). Cito ainda o volume da Coleça~o Educadores, iniciativa do MEC, disponível gratuitamente na web: Humberto Mauro, de Jorge Antonio Rangel (Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010).

Flavio de Souza Brito é historiador, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela USP. Professor de História do Cinema da FAAP, é editor do site Mnemocine, memória e imagem, especializado em cinema e fotografia: mnemocine.com.br.