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Ópera na TV
Uma das minhas mais antigas lembranças relativas à ópera está também, curiosamente, ligada a uma das minhas primeiras lembranças da televisão, a qual fez seu triunfal ingresso em nossa casa quando eu andava entre meus sete ou oito anos de idade, sob a forma de um moderníssimo aparelho Invictus branco e preto de dezessete polegadas.
Meses depois, minha mãe, após o jantar, sentou-se diante da TV para assistir a um programa especial: a falecida Tupi, PRF3TV canal 3, ia transmitir uma ópera ao vivo diretamente do Theatro Municipal de São Paulo! Corria o ano da graça de 1957, e, como rezava nossa legislação familiar naquela época, criança tinha de dormir cedo. Eu já tinha sido devidamente posto na cama, mas fiquei curioso em saber o que era aquela tal de ópera, e mesmo correndo o risco de um puxão de orelha, resolvi me esgueirar e assistir de pé, atrás da porta entreaberta.
A primeira imagem que vi foi a do saudoso Heitor de Andrade, mestre de cerimônias impecável em seu smoking, a explicar o argumento da ópera do qual eu não entendi nada. Para ser honesto, devo confessar que não enganei ninguém. Minha mãe, como me contou anos depois, logo percebeu que eu estava ali e resolveu fingir que nada vira para ver o quanto eu aguentava. Devo ter aguentado bem, pois após algum tempo de pé trocando os pés um pelo outro, ela ficou com pena – mãe é assim mesmo – e me chamou para assistir à televisão a seu lado, dividindo a poltrona.
Ao evocar hoje esse programa, lembro-me perfeitamente de como fui ficando cada vez mais fascinado com a música e com a representação que dela emanava com os artistas se movendo no palco. Fiquei totalmente absorto. Transcorrido mais de meio século, não me recordo bem de toda a récita, mas alguns flashes voltam periodicamente à minha memória. A lembrança mais nítida que tenho é a de uma cena com uma moça de longos cabelos louros, sozinha no palco enorme, cantando uma melodia que depois não me saiu da cabeça – eu a assobiei durante meses –, feita de trinados e belos agudos.
Anos depois identifiquei o trecho e, por tabela, a primeira ópera que vi representada em minha vida. A ária era Caro Nome, da ópera Rigoletto de Verdi, da heroína Gilda, a moça de cabelos loiros, cantada, naquela noite, como uma pesquisa posterior determinou, pelo grande soprano brasileiro Niza de Castro Tank. Não é à toa que, até hoje o Rigoletto é minha ópera favorita, tenho dela uma infinidade de gravações diversas em áudio e vídeo. E gosto de pensar que o meu grande amor à ópera foi em parte estimulado por essa fascinante experiência infantil proporcionada pela TV.
Quando se fala em ópera, a primeira coisa que nos ocorre é o prazer auditivo de belas vozes cantando bem. Mas devemos nos lembrar de que a ópera, embora se movendo num universo todo particular onde os cantores são fundamentais para o sucesso do espetáculo, não é somente um recital de canto lírico. É principalmente teatro, um teatro que escolheu contar suas histórias, quer sejam comédias, dramas ou tragédias, através da combinação do canto humano com os sons dos instrumentos da orquestra sinfônica.
Os intérpretes, portanto, além de vozes adequadas, devem ser dotados no mínimo de razoáveis habilidades cênicas para que o faz-de-conta que se estabelece entre o público e os artistas funcione. Só assim poderemos nos emocionar ao ouvir um soprano chorar em italiano ou um tenor exultar em alemão. Como todas as outras artes performáticas, o público só experimentará a fruição total da apresentação ao vê-la ao mesmo tempo em que a ouve.
Mas, infelizmente, nem todos conseguem ter acesso ao teatro de ópera. Há impedimentos de ordem financeira e geográfica. Montar uma ópera envolve, entre cantores, músicos e pessoal técnico, mais de uma centena de pessoas, o que implica num ingresso caro, e, no Brasil, salvo raras e honrosas exceções, apenas os grandes centros urbanos têm equipamentos culturais que permitem tais produções, alijando do processo os moradores de cidades menores e mais afastadas que não se proponham a viajar.
É ai que a televisão pode fazer a grande diferença. Com sua hoje comprovada capilaridade tanto nas residências do país quanto nos estabelecimentos comerciais do país – hoje vemos aparelhos de TV em restaurantes, salões de barbeiro e salas de espera de consultórios –, quando seus programadores têm a sensibilidade necessária em apostar, como alguns têm feito, na transmissão de cultura, a mídia televisiva se transforma num poderoso instrumento democrático de divulgação das várias formas de arte, entre elas a ópera. Exibir gravações de óperas ao vivo representa franquear virtualmente o acesso ao teatro lírico à toda população interessada, divulgando o repertório e criando um novo público.
E quem sabe se, assim como aconteceu comigo no século passado, algum – ou mais de um – menininho travesso, espiando a telinha por trás da porta, se apaixone pela ópera tanto quanto eu.