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A música erudita na televisão

Há três formas de transpor a música erudita para o meio visual – e em nenhum caso é tarefa fácil.

A primeira é a transmissão da situação de concerto propriamente, com ou sem informação adicional. A segunda consiste no gênero documental, a partir de uma investigação do fazer musical por um olhar poético ou pelo viés jornalístico. A terceira, e a mais dificultosa, é a de caráter didático, idealmente uma adequação entre conteúdo musical e formato televisivo, no propósito da formação de público leigo sem ferir o público informado.

Em qualquer caso, é um desafio. Música é uma matéria complexa, e a ausência do especialista – aquele que responde pela produção ou pela pós-produção de conteúdo, com pleno domínio do jargão e do léxico musical em vários idiomas – pode prejudicar, senão comprometer, fortemente a credibilidade do produto final.

Gravar um concerto exige a presença de ao menos um profissional da música altamente qualificado, capaz de ler com fluência partituras de toda espécie – incluindo a orquestral – para orientar os cortes e a movimentação das câmeras. A “microfonação” é
um complicador a mais. Na Alemanha, resolveu-se a questão com a formação, em nível superior, da figura interdisciplinar do tonmeister (mestre de som), um híbrido de músico e engenheiro de áudio na dupla competência de dimensionar e equacionar parâmetros de acústica e estética.

Já as implicações do gênero documental são de outra ordem. De forte teor autoral, o documentário vai além da “documentação” da performance, para buscar o intangível da música ou a subjetividade de quem a vive – imersão que demanda tempo de convivência
e de observação e, em boa dose, autoridade na interlocução com o tema ou o personagem.

É raro encontrar, mundo afora, núcleos audiovisuais independentes que cumpram com sucesso essas duas frentes – documento e documentário. Caso notável é o pequeno selo alemão Accentus Music, cuja valente aparição há menos de três anos surpreendeu o mercado dos clássicos. Com um padrão de cinema no registro audiovisual de concertos, sob o comando do premiado diretor e documentarista Paul Smaczny, o selo dispõe em catálogo de títulos documentais preciosos (como Abbado, Barenboim, a Orquestra Simón Bolivar), parcerias institucionais com o Festival de Lucerna, a Gewandhaus de Leipzig, a Staatskapelle e a Staatsoper de Berlim, além de cooperações estratégicas com emissoras públicas, como a WDR (Alemanha) e a NHK (Japão), e os canais online privados Arte (Bélgica) e Medici (França-Itália).

Há mais expansão que retração nesse campo, sobretudo nos países ricos, conforme avalia Claudia Toni, consultora de música e dança da Fundação Padre Anchieta. No Brasil, onde a prática e a apreciação da música erudita formam uma militância de poucos, e
igualmente poucos são os canais que investem recursos nesse repertório, a TV Cultura constitui exceção. Entre produções próprias e material estrangeiro, a programação de clássicos da emissora subiu para 60 programas anuais (o equivalente a cem horas). E esse número deve aumentar.

Replicada em território nacional, sua grade comporta concertos da Osesp e de grandes orquestras do mundo, documentários  internacionais antológicos (como o de Arvo Pärt ou da West-Eastern Divan Orchestra) e o concurso Pré-estreia, que, além do
prêmio em dinheiro, leva jovens talentos à Juilliard School. Em 2013 a Cultura contemplará efemérides (Verdi, Britten, Wagner e Stravinsky, nos cem anos da Sagração da Primavera), montagens de ópera dos grandes palcos do mundo e, em negociação, títulos da Accentus. “Nada substitui o exercício de estar na sala de concerto”, diz Toni. “Mas para a população fora dos grandes centros ou sem poder aquisitivo, a TV trará sempre a oportunidade da experiência auditiva.”

Se é verdade que a “espetaculosidade” do concerto bem televisionado aumenta em número e qualidade a audiência, resta às TVs não comerciais o desafio maior da produção educativa. Fazer uso legítimo das linguagens da música e da TV, porém, pressupõe não só um bom tanto de virtuosismo inventivo quanto um razoável aporte financeiro.

Curiosamente, a contribuição mais sofisticada nesse campo se deu ainda quando a TV era em preto e branco e um artigo de luxo: nos anos 1950. Modelo até hoje insuperável, os oito programas da série Omnibus, apresentados pelo gênio vulcânico e “telegênico”
de ninguém menos que Leonard Bernstein, foram resultado de um aporte conjunto de grandes redes (CBS, NBS e ABC) e a Fundação Ford. Histórico, o projeto ainda serve de modelo na comunicação de tópicos complexos, com seu formato inovador aliado a técnicas revolucionárias de câmera, iluminação, design, roteiro, cenário, marcação de palco e performance em estúdio. Mais: toda essa “coreografia” era transmitida ao vivo! A sobrevida desses filmes, hoje patrimônio dos Arquivos da Televisão Americana, pode e deve ser constatada em DVDs.

Regina Porto é compositora, curadora de concertos e pesquisadora.