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Entrevista: Cheda Name Saad

Cheda Name Saad, dono de uma energia e alegria contagiantes nos recebeu para esta entrevista e compartilhou conosco muitas histórias. Sobre sua família, sua vida em São Paulo e, principalmente, suas ações em prol da comunidade. Aos 84 anos é incansável em sua proposta, na verdade filosofia de vida, de doar seu amor ao próximo. Em 1999 ligou-se a um grupo que propunha a organização de pessoas que estavam fora do mercado de trabalho, que até hoje orienta e acompanha a instalação de cooperativas de trabalho. Atualmente, dispõe-se a ensinar e auxiliar outras cooperativas na sua organização e administração. Cheda, cujo nome significa “dádiva de Deus” nos ensina que há muitas formas de voluntariado e que não necessariamente exigem grandes ações. Por vezes, agir de forma simples e compartilhar o que se sabe, é o que basta.

REVISTA - Fale um pouco sobre sua infância, suas relações com seus pais. Sua família é grande?

Cheda - Não, minha família é relativamente pequena. Meus pais vieram do Líbano, casaram-se e tomaram o navio para o Brasil fugidos do Império Otomano que, naquela época, havia tomado toda aquela área da Palestina, do Líbano. É por isso, vocês já devem ter ouvido falar, que aqui no Brasil todos que vinham daquela região eram chamados de turcos, inclusive porque quem emitia os passaportes era a Turquia. Então, todo mundo era turco, embora saísse do Líbano. E, na verdade, os libaneses não gostavam de ser chamados assim, justamente porque deixaram a região por causa dos turcos.

REVISTA - Em que ano foi isso?

Cheda - Isso por volta de 1909. Meus pais se casaram e vieram para o Brasil. Minha irmã mais velha nasceu dez meses depois que eles chegaram. Ela foi concebida praticamente na viagem. Nós já tínhamos um tio, irmão de meu pai, que estava aqui no Brasil, e convidou meus pais para virem.

REVISTA - Seus pais instalaram-se em que região?

Cheda - Para uma localidade chamada Aramina, próximo a Igarapava, entre Ribeirão Preto e Uberaba, exatamente na divisa entre São Paulo e Minas. Meu tio já tinha vindo, também fugindo da guerra, tinha formado um negócio. Meu pai ficou sócio dele, montaram uma loja que depois foram melhorando.

REVISTA- Seu pai dedicou-se à loja da família.

Cheda - Sim, meu pai tinha a loja, mas não ficava lá, ele fazia papel de mascate. Punha as roupas em cima do cavalo e percorria os sítios vizinhos. Esse era seu trabalho.

REVISTA - Então, ele ficava muito longe de casa.

Cheda - Ficava. Meu pai faleceu muito cedo, eu tinha quatro anos e isso transtornou minha mãe, porque ela estava fora da sua terra natal, longe de qualquer parente. Meu tio foi uma companhia espetacular para ela, mas mesmo assim ela ficou desnorteada.

REVISTA - Nessa ocasião eram apenas você, sua irmã e sua mãe?

Cheda - Não, minha irmã nasceu em 1910 e eu nasci em 1928, são dezoito anos de diferença. Mas, entre minha irmã e eu são treze filhos. Faleceram cinco, daí veio mais um, morreram mais cinco e depois eu vinguei. Nessa altura, quando meu pai morreu eu tinha quatro anos e meu irmão médio estava internado num colégio, porque por lá onde morávamos não havia colégio. Para estudar tinha que sair de lá. Quando meu pai morreu minha mãe tirou meu irmão do colégio. Ela ficou com medo, queria que ele ficasse na direção da loja.

REVISTA - Quer dizer que era para sua família ser bem maior.

Cheda - Isso mesmo e, aproveitando, eu gostaria de contar algo muito importante. Quando minha mãe ficou grávida de mim,
ela já tinha perdido dez filhos. Isso gerou muito sofrimento. Como ela já estava com mais de trinta anos de idade, ficou
receosa e convenceu meu pai a vir para São Paulo para tirar o filho e já fazer a operação para não engravidar mais. Quando
minha irmã nasceu não havia recurso algum mas, quando eu nasci era diferente. Bem, felizmente, o médico não concordou
e a convenceu que o motivo das perdas das crianças era por ela ser prima do meu pai. O falecimento das crianças havia
ocorrido por falta de tratamento por conta desse parentesco com meu pai. O médico a convenceu e eu nasci. Por força do meu
nascimento, minha mãe dizia que eu era um Cheda para ela, uma dádiva de Deus. Isso, Cheda significa dádiva de Deus. Conto isso por ser significativo.

REVISTA - E como foi sua infância e sua vida escolar?

Cheda - Passei minha infância em Aramina. A gente vivia ali na rua com a molecada. Jogava bola, ia caçar passarinho com  estilingue e nós tínhamos a uns seis quilômetros de distância o rio Grande. A gente ia pescar, tomar banho no rio, então, o rio Grande era uma distração para nós. Era realmente aquela vida rural, bem rural. Quando meu pai morreu minha mãe tirou meu irmão do colégio e, depois de um tempo, ela percebeu o mal que tinha feito. Quando chegou a minha vez de ir para a escola, tinha uma escola rural onde estávamos e uma na cidade vizinha, distante uns oito quilômetros, tinha um ginásio particular. Fiz os três anos da escola rural e minha mãe não queria saber, tinha que estudar! Fui ao ginásio.

REVISTA - Era em outra cidade.

CHEDA - Sim, ia a cavalo, a pé, de bicicleta, de qualquer jeito, mas tinha que ir. Foram quatro anos de muito sacrifício, porque eram oito quilômetros, tinha que levantar bem cedo. Com chuva ou com sol tinha que ir à escola. Minha irmã não tinha estudado, porque nem escola rural tinha quando ela nasceu. Meu irmão estudou no colégio interno de Ribeirão Preto, e então, eu fiz minha vida em Aramina. Quando terminei o ginásio, disse para minha mãe que queria ser alfaiate. Ela disse “__ não, você vai para São Paulo, vai estudar em São Paulo”.

REVISTA Qual era sua idade?

CHEDA Eu tinha 14 anos e meio e vim para São Paulo. Sozinho, fiquei numa pensão no Brás, na Rua Vasco da Gama. Na época, o único curso noturno que havia era o de Contabilidade. Eu me inscrevi nesse para poder trabalhar. Como tinha terminado o ginásio pude me matricular na escola de contabilidade, era uma escola perto da pensão.

REVISTA - E como foi esse período de adaptação, sentia-se sozinho?

CHEDA - Não, na verdade não. Fiquei amigo das pessoas da pensão, só no meu quarto moravam cinco pessoas. Gente mais velha, gente da minha idade, os colegas do curso de contabilidade. Os primeiros seis meses foram de adaptação, e, depois de seis meses consegui um trabalho no banco. Sabe para fazer o quê? Entregar carta na rua. Imagina, saí de Aramina para entregar cartas nas ruas de São Paulo. Eu disse “__vou aprender” e consegui, fiz meu trabalho. Eu era bem dedicado. Comecei a entregar cartas e não ficava fazendo rodinha na rua. Eles começaram a perceber, eu terminava o trabalho, não ficava enrolando e datilografava meus envelopes. Eu aprendi lá em Aramina a datilografar. Consegui uma máquina emprestada, um método e aprendi sozinho. Isso me ajudou muito porque me possibilitou passar para o trabalho interno do banco. Eu melhorei de condição, passei para o serviço interno que necessitava de mais habilidade.

REVISTA Qual o banco e o que o senhor fazia?

CHEDA - Banco Holandês Unido. Hoje existe com outro nome, fizeram sociedade e mudaram o nome, ficava na Rua da Quitanda. Como eu datilografava rapidamente, eu fazia os comunicados para o caixa, para poder fazer o pagamento daquele cheque, ou fazer o depósito.

Cada depósito tinha que ser comunicado por um funcionário e já saía para entregar. Pelo fato de datilografar bem, eu passei
logo para o controle de caixa, datilografava envelope para os outros, e depois fui para controle de caixa, até chegar a chefe do controle de caixas, com vinte anos.

REVISTA - Ainda estava sozinho em São Paulo?

CHEDA - Não, depois de um tempo começaram a vir parentes nossos, um primo meu veio morar em São Paulo, outras pessoas
que minha família conhecia. Eu ficava doido para ser convidado para almoçar no domingo. Vocês não imaginam como era ficar
na pensão no domingo. De vez em quando, a gente passava durante a semana na casa de algum conhecido ou parente para ver se convidavam para o almoço de domingo “__olha, estou aqui.” era assim mesmo. ((risos)). Nessa época, era tempo de guerra, tudo muito difícil, tudo racionado. E mesmo depois da guerra, porque o trigo vinha todo da Europa.

REVISTA - Foram anos difíceis.

CHEDA - Exatamente. Quando terminei o curso de Contabilidade foi aberto o curso noturno de Química Industrial. Na ocasião,
as indústrias começaram a se instalar aqui em São Paulo e criou-se a necessidade de ter químicos industriais. Daí surgiu o curso
de Química Industrial. Eu não tive dúvida...

REVISTA - O senhor fez contabilidade e depois química industrial?

CHEDA - Isso mesmo. Auxiliava num escritório de contabilidade, mas não era do meu gosto, então, me inscrevi no curso de Química Industrial que era da minha índole e foram quatro anos difíceis, também. Eu entrava no banco ao meio dia, saía às seis e quinze e terminava a aula de Química às onze e quarenta e cinco. Era puxado e tinha que ir lá da Paulista, onde era a escola de química até a Mooca, onde eu morava. Chegava em casa à uma hora. E tinha aula de sábado também. No último ano de Química, fiz um estágio de três meses numa indústria em Ribeirão Preto, na fábrica de óleo e sabões da Moinho Santista.

Quando terminei o estágio, as empresas procuravam muito os químicos industriais. A Matarazzo e a Antártica me chamaram ao mesmo tempo e fiquei na encruzilhada. Optei pela Antártica, E, foi assim, passei a trabalhar na Antártica, primeiro em São Paulo, visitando algumas fábricas, substituindo alguns colegas. Quando foi criada a fábrica de Campinas já tinha a de Belo Horizonte. Pedi para ficar em Campinas, porque minha mãe morava em Ribeirão Preto, e, assim, eu estaria mais perto dela.

REVISTA - O senhor se estabeleceu em Campinas e não deixou mais a cidade. Fale um pouco de sua vida familiar.

CHEDA - Bem, quando vim para Campinas ainda estive dois anos sem casar. Depois de um tempo de ter chegado a São Paulo, comecei a namorar minha esposa. Passamos nove anos namorando. Para falar desse namoro, posso dizer o seguinte, nós casamos dia oito de dezembro, e o primeiro filho nasceu no dia 16 de setembro do ano seguinte. Isso quer dizer que ela casou virgem. Veja o que é a questão da época, naquela época, era assim, o namoro era com todo respeito.

Eu acho muito significativo para mostrar a época como era. Depois de dois anos de Campinas, eu consegui a estabilidade que precisava e a gente casou. Tivemos três filhos, dois homens e uma mulher. O terceiro veio de contrabando, porque nós tentamos evitar, mas ele veio com a graça de Deus. Meu gosto era ter quatro filhos e da minha esposa era ter dois. Então vieram três. ((risos)). Moramos inicialmente com minha mãe, ela veio para Campinas, mas depois nós mudamos,  porque nasceu o filho, e passamos a morar na nossa casa e minha mãe em outra casa. Trabalhei na Antártica 22 anos como empregado e mais 34 como distribuidor. Fiquei 15 anos como gerente geral e quando surgiram as distribuidoras da Antártica eu me candidatei, e com mais três colegas nos tornamos distribuidores e trabalhei mais 34 anos como distribuidor.

REVISTA - Como teve início suas ações junto à comunidade?

CHEDA - Na verdade, na minha casa pela forma do meu nascimento, pelo espírito dos familiares que eu tive, somos agradecidos a Deus pela minha vinda. O espírito em casa sempre foi de amor ao próximo e de gratidão a Deus. Essa ligação foi primeiro com a igreja católica, porque nós éramos católicos. Minha mãe era maronita, mas aqui frequentávamos a igreja católica. Eu acabei tendo a ligação de amor ao próximo através da igreja. Atrás da igreja do Botafogo (na cidade de Campinas/SP) tem um prédio que é da assistência social da igreja.

Eu era presidente da assistência social que construiu esse prédio. Claro que eu não construí sozinho, foi a equipe toda, mas eu fui o
presidente da assistência social o tempo todo da construção. Meu trabalho para comunidade surgiu daí.

REVISTA - E o seu envolvimento com o Rotary também em ações junto à comunidade?

CHEDA - Eu passei a ser rotariano desde 1958. Fui sócio fundador do Rotary Clube de Campinas Norte. O trabalho do Rotary foi uma continuidade daquele espírito que eu tinha sempre e que me levou a entender que amar ao próximo era servir, não é só amar, você tinha que servir. E o espírito do Rotary é servir, então, caiu para mim de mão cheia, porque eu entendi que podia amar ao próximo, servindo. Para você ter ideia, não fomos nós que fundamos, mas a Unicamp saiu do nosso clube do Rotary. Campinas estava  lutando para obter uma faculdade de Medicina e nós tínhamos um rotariano muito ativo que vislumbrou a possibilidade de uma universidade em Campinas, o Carvalho Pinto entrou na dança. Ele visitava o Carvalho Pinto com frequência, até convencê-lo que tinha que botar uma universidade aqui.

REVISTA - O senhor lembra do nome dessa pessoa?

CHEDA - Eduardo de Barros Pimentel. Fui o presidente do serviço de assistência da comunidade dele. Nós trabalhamos em conjunto para ter a Unicamp em Campinas. Nasceu em nosso grupo. Só para vocês terem ideia, ele foi do conselho consultivo da Unicamp durante os primeiros quatro anos. A Unicamp surgiu com essa luta. Ele foi convencendo que só faculdade de medicina era pouco, Campinas comportava uma universidade e acabou surgindo a Unicamp.

REVISTA - É importante esse olhar para a comunidade.

CHEDA Sim, certamente havia muitas ações. Distribuíamos material para as escolas que não tinham nada, muitos livros, muita assistência, e eu, felizmente, sempre participei disso. Ontem, por exemplo, ocorreu, o encerramento da viagem ao zoológico.

REVISTA - Foi em 64 que o senhor criou o projeto que levava as crianças das escolas públicas ao Zoológico de São Paulo?

CHEDA Na verdade foi em 62 que criamos o projeto. O Eduardo de Barros Pimentel era o presidente, e eu presidente do serviço comunitário. Nas férias de junho, eu e minha esposa levamos nossos filhos no zoológico, passamos o dia todo lá. Na viagem para cá, eu disse para minha mulher “ __Que coisa gostosa, nossos três filhos, quanto aprendizado vendo os animais, quanta gente em Campinas não vai nem ao bosque. Não tem possibilidade nem de ir ao bosque. Eu não sei, vou levar essa ideia para nosso clube”. E levei a ideia. Naquela época, as empresas tinham ônibus próprios para transportar seus funcionários e, como não se trabalhava aos sábados, eu sugeri solicitar às empresas para cederem os ônibus para levar as crianças ao zoológico de São Paulo. A primeira viagem ocorreu já em 62 com 14 ônibus. Levamos 14 ônibus, mais ou menos 400 crianças. Fizemos o lanche em nossas casas, foi meio no improviso. Surgiu dessa forma, e foi tão grandioso o valor dessa visita que não parou. Temos levado todo ano crianças ao zoológico.

REVISTA - E o senhor nos contou que ontem foi o encerramento anual do projeto?

CHEDA Sim e eu fiz a palestra contando aos meninos como surgiu o projeto. Os rotarianos encerram a viagem estimulando as crianças que participaram da visita a escreverem uma redação e um aluno de cada classe é premiado. Os meninos vão acompanhados da família ao Rotary para receber os prêmios. Consideramos importante trazer a família para essa ação educativa, para essa comemoração. Trata-se de uma iniciativa, pequena, mas que carrega um grande significado.

REVISTA - As crianças participantes são de escolas públicas?

CHEDA - Quase sempre. Nós procuramos lá longe, nos lugares mais distantes, para aqueles que não teriam possibilidade de ir, apesar de hoje ser mais fácil. O projeto tem uma função educativa. Em cada ônibus vai um rotariano explicando “__ esse é o rio tal, aqui é Jundiaí, aqui é o Tietê” levamos informações às crianças. A viagem é educativa, independente do passeio propriamente dito. Ontem eu contei essa história. Como eu fui convidado para fazer a palestra, elogiei as crianças, agradeci aos pais, aos professores e falamos da viagem. Eu disse que foi um rotariano do nosso clube que teve essa ideia. Contei a ideia sem dizer que foi minha. No final, o presidente contou que era eu. Foi muito bonito, vieram me abraçar.

REVISTA - Sabemos de sua ação junto à comunidade no apoio a cooperativas de trabalho aqui na cidade. Como teve início?

CHEDA - Quando moramos em Cambuí (bairro da cidade de Campinas) passei a frequentar a igreja Nossa Senhora das Dores, com Monsenhor Busch. Em 99, o tema da Campanha da Fraternidade foi “Sem trabalho, por quê?” e Monsenhor Busch entendeu que poderíamos fazer alguma coisa em benefício das pessoas que estavam sem trabalho e criou um grupo de geração de trabalho. Eu comecei a atuar junto com esse grupo de geração de trabalho, por que isso? Minha esposa havia falecido e eu senti que poderia dar um pouco mais de mim. O tempo que eu dedicava a ela, eu poderia dedicar a alguém. Bem, esse grupo não deu certo, sabe por quê? Nós começamos a conseguir trabalho para as pessoas, mas percebemos que nós estávamos apenas substituindo alguém que havia deixado a vaga, então, isso não era geração de empregos. Não criávamos novas vagas, novos postos de trabalho. Paramos para pensar como fazer para gerar trabalho. Diante do desemprego e de suas consequências sociais, nos preocupávamos
como empregar sem prejudicar os que já ocupavam postos de trabalho.

Foi quando pensamos em criar a coleta de material reciclável. O trabalho com recicláveis respondia a essa demanda. A coleta, triagem e comercialização dos materiais era um nicho subexplorado com grande potencial para geração de renda. Começamos a coleta de material reciclável em Campinas, a partir dessa ideia. A primeira coleta foi em agosto de 99 e começou com a campanha da fraternidade. Depois disso fomos a Belo Horizonte, ao Rio de Janeiro conhecer o que existia. A primeira coleta seletiva aconteceu em um sábado, na igreja. Tínhamos a ideia de receber meio caminhão, e recebemos quatro. Foi incrível. Em outubro, criamos a primeira cooperativa.

Nessa oportunidade, em 2000 fundamos uma ONG chamada “EDH: Ecologia e Dignidade Humana” que conduzia as cooperativas. Criamos essa primeira cooperativa, logo em seguida, a igreja Nossa Senhora Aparecida - que já vinha estudando o assunto – viu que dava certo e nos unimos. Levamos à prefeitura a proposta - nós e a igreja Nossa Senhora Aparecida, na época era o Toninho o prefeito de Campinas -, de criar uma cooperativa em cada unidade da prefeitura, em cada região e ele aceitou a ideia. Ele criou por decreto, uma cooperativa em cada Administração Regional, eram 14 no total, foi ótimo. Nós cuidávamos de seis e Caritas de oito
cooperativas. Em 2002, foi constituído o CRCA (Centro de Referência em Cooperativismo e Associativismo) – do qual sou sócio até hoje – com apoio da Caritas Arquidiocesana de Campinas que tem parceria com a Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da PUC-Campinas. Juntos CRCA e EDH desenvolvem projetos e traçam parcerias entre diferentes setores da sociedade, estimulando as cooperativas rumo à gestão autossustentável.

REVISTA - As primeiras cooperativas criadas ainda existem?

CHEDA - Quase todas, algumas não tiveram continuidade. Se não me engano temos onze cooperativas, ainda. Até meados
do ano passado eu as acompanhava. Em cada dia da semana eu visitava uma cooperativa. Então eu fui assaltado. Roubaram
meu primeiro carro, depois roubaram o segundo carro, ambos na porta da cooperativa. Meus filhos ficaram preocupados com minha segurança. Certamente não eram participantes das cooperativas, mas por ser um tipo de trabalho que precisa de grandes espaços abertos estão sempre situadas em locais distantes e, muitas vezes, perigosos.

Então, as ações que iniciei em 1999 com o pessoal de reciclagem, com as cooperativas fui obrigado a deixar. Esse trabalho nesses anos foi voluntário. Esse trabalho eu sempre fiz voluntariamente.

REVISTA - O senhor encerrou suas ações?
CHEDA Não, nesse meio de tempo, nós passamos a assistir uma cooperativa de pessoas deficientes. É uma cooperativa que presta serviços de finalização gráfica, como manuseio de mala direta para agências de correio, serviço de envelopamento, encarte. São pessoas que têm vários tipos de deficiência, inclusive, mental. O nome é “Cooperativa da diversidade humana” e localiza-se na Vila Teixeira. O trabalho é muito importante para autonomia dessas pessoas, para sua autoestima. Você não imagina o valor que tem para essa pessoa levantar pela manhã e dizer “__eu vou para a cooperativa”. É um valor extraordinário.

REVISTA - De que forma o senhor participa?

CHEDA Nossa participação é colaborar e ajudar para que percebam que a cooperativa é deles. Nós apoiamos, mas eles administram. Fazemos o registro, fazemos o balancete, auxiliamos, mas eles têm o seu diretor que está lá o dia inteiro. Ele é cadeirante, tem boa memória, ele cuida muito bem de vários assuntos. Então, realizo esse trabalho há seis anos. Agora, estamos atravessando um momento difícil, porque muitas pessoas estão sendo chamadas pelo mercado de trabalho em função da nova legislação. Por volta de onze pessoas foram para empresas e olhe que já tivemos dezoito, estamos com sete agora. De qualquer
maneira, ficamos felizes porque ajudamos na preparação das pessoas para o mercado trabalho.

REVISTA - O senhor ainda está ligado à ONG EDH: Ecologia e Dignidade Humana?

CHEDA - A EDH fundiu-se com a CRCA (Centro de Referência em Cooperativismo e Associativismo). Eles queriam que eu continuasse no CRCA, mas eu prefiro ficar no suporte, no conselho fiscal. Para vocês entenderem o espírito que tenho dentro de mim, a primeira coisa que fiz, foi procurar um curso de voluntariado para eu fazer. ((risos)). Eu sabia que o que eu ia ouvir lá. Já sabia, mas eu não queria chegar em algum lugar para um trabalho voluntário e me perguntarem “__Mas  o senhor já fez alguma coisa?”. Então, eu já tenho o diploma em voluntariado. ((risos)).

REVISTA Toda sua vida o senhor praticou a filosofia de voluntariado, o que esse diploma significa?

CHEDA Veja bem, por exemplo, o trabalho que faço no hospital. Eu fui ao Boldrini (hospital filantrópico da cidade de Campinas que cuida de crianças, adolescentes e adultos jovens portadores de doenças sanguíneas ou de câncer) e me ofereci para prestar trabalho voluntário e estou ajudando na nota fiscal paulista.

REVISTA - E precisa do curso de voluntário?

CHEDA Eles têm o curso deles mesmo, que chamam de capacitação. Fiz o curso de três sábados de oito horas cada sábado. O  propósito é dar informações sobre o hospital etc. Conheci o próprio Boldrini que foi rotariano do nosso clube, foi médico de meus filhos.

REVISTA - Quer dizer que o senhor continua, apesar de ter deixado as cooperativas, trabalhando muito.

CHEDA Bem, minha semana é dividida assim: segunda-feira vou ao Boldrini, quarta-feira vou ao grupo Primavera. É um grupo que tem por objetivo estimular a autoestima da mulher. Há um espaço para que as crianças permaneçam fora do período escolar, ficam lá só com mulheres durante o dia. Lá também ajudamos com a nota fiscal paulista. Eu estou lá porque eles sabem que tenho  conhecimento de organização, de administração. O grupo faz artesanato e estamos esperando uma oportunidade para mexer com essas coisas. Enquanto isso, separo e digito nota fiscal paulista. Para mim não tem problema faço com prazer e alegria. Então, voltando. Na segunda tem Boldrini, Primavera na quarta e na sexta-feira vou ao Pró Menor, lá em Barão Geraldo, que é uma entidade particular, que cuida das crianças no mesmo estilo do grupo Primavera, só que é misto, até os dezoito anos. Lá estamos organizando a biblioteca e tentando obter doadores de nota fiscal. Nesses dias, deixei meu carro na oficina, perto do Pão de Açúcar, para pegar daí duas horas. Entrei na loja e percebi que não havia coletor de nota fiscal. Procurei o gerente e disse “___Olha,
assim, assim, eu trabalho no Pró Menor...” e ele respondeu “__ No Pró Menor? Nós doamos alimentos para eles” então eu disse “__Que ótimo mas, olha, nós estamos precisando de nota fiscal etc etc” e ele colocou à minha disposição as notas e, agora, vou coletando. Passo lá e pego todas as notas. No meu carro tem uma caixa com notas fiscais, que vou juntando. Então, para mim é assim, esse espírito de servir, prestar o melhor trabalho que for possível independente do que seja. Sabe certa vez fui a uma entidade, mostrei meu diploma e me ofereci para auxiliar. A pessoa que me atendeu disse “__ Puxa, estamos precisando de gente, nós vamos falar com o presidente” até hoje não recebi resposta. Mas, não é por isso que vou deixar de fazer.

REVISTA - As atividades comunitárias, o voluntariado, fazem parte da sua vida de forma natural.

CHEDA Fazem. Atualmente fala-se em trabalho voluntário, mas antigamente não se ouvia falar disso, então, por isso quando precisou fazer o curso, eu fiz. É válido, porque eles transmitem informações gerais, e eu já tinha esse espírito de voluntário, quando visitava as cooperativas e cada uma com direção diferente uma da outra, cada uma com um espírito, mas tinha coisas mínimas que cada uma precisava fazer.

Fomos dando apoio e suporte para que cada uma pudesse se organizar e autossustentar. Primeiro, nada de circular dinheiro internamente. Não tem recebimento em dinheiro, todo recebimento é no banco. Você entregou material, vai ao banco. Todo pagamento deve ser feito com cheque. A administração passa a ter como base de funcionamento o extrato bancário, tudo que sai, tudo que entra, está no balancete. Faz-se a conferência bancária, cada dívida, cada despesa administrativa, tem que fechar. Muitos grupos acabam se desfazendo por falta de organização. Nós damos apoio para organização.

REVISTA - O senhor nos mostra que há muitas formas de voluntariado, não são necessárias grandes ações, mas pode dar algum tempo e agir por vezes de forma simples e doar seu tempo para quem está precisando.

CHEDA - Olha, eu vou à cooperativa de pessoas deficientes. Às vezes me ligam e dizem “__Estamos com um problema aqui que não conseguimos resolver”. Então eu vou um dia fora do horário, ou fica na terça ou quinta para ir lá, porque não quero resolver o problema sozinho, quero que eles entendam o que fazer. Há coisas que não conseguem fazer de início, demora um pouco para aprender, mas vai indo, indo, acabam aprendendo. Então, é isso que faz sentido.

REVISTA - E quando o senhor cuida de si, o que o senhor faz? Lê, usa computador, o que o senhor faz com seu tempo?

CHEDA Na realidade, a minha diversão é televisão. Eu gosto muito de esporte. Não vejo novela, já vi. Minha esposa via novela e eu comecei a ver um pouco, mas eu gosto muito de esporte pela televisão. Eu recebo e-mails, respondo, tenho uma rede de e-mails, recebo muitas informações, artigos. Eu gosto de ler, quando percebo algo que possa ser útil, eu boto na rede.

REVISTA - E a família?

CHEDA Quando minha esposa faleceu, eu e meus filhos passamos no nosso apartamento para conversarmos e minha filha perguntou “__ Papai, eu não vi a aliança da mamãe. Eu gostaria de ficar com ela” eu disse “__Claro minha filha está aqui.” Meu outro filho disse “__Papai e aquela medalhinha que a mamãe usava? Eu gostaria de guardar de lembrança” fui buscar a medalha e disse “__Está aqui meu filho” quando meu outro filho disse “__Tá bom, tá bom eu fico com o velho!” ((risos)). Ele morava em um prédio de apartamentos e sem eu saber ele já havia alugado outro, em outro andar, para que eu ficasse perto dele. Há uns três anos ele mudou para uma casa e eu moro com ele e sua família, em um espaço totalmente independente.

REVISTA - Que idade o senhor tem?

CHEDA - Já completei 84 anos. Quando a gente vai ficando velho, a gente  fala, oitenta e quatro anos e onze meses. ((risos)), então, agora em dezembro eu completo 84 anos e meio.

REVISTA - Como o senhor percebe seu envelhecimento? Que desafios o senhor considera que tem aos 84 anos? Como se relaciona com pessoas mais jovens?

CHEDA Na realidade, eu não me considero com 84 anos, eu me considero jovem. Falo com meu neto como se fosse da idade dele e, evidente, quando eles começam a falar de computador, eu estou fora. Eu não faço questão de entender, mas não faço questão de não entender, faço parte da conversa e vivo como se fosse ontem e sou feliz. Eu estou vivendo. Dirijo, analiso minha direção, vai ver onde estacionei meu carro agora, se eu não tivesse habilidade, eu não estaria estacionando lá. Mas tem coisa que eu não faço. Se for para São Paulo, eu não vou de carro, porque sei que para mim é um pouco difícil, a própria direção fica difícil, mas aqui na cidade eu ando cerca de cem quilômetros por dia, sem receio nenhum. Obedeço a todos os sinais, obedeço ao colega que está dirigindo ao meu lado, o outro motorista, não quero privilégio nenhum. Outro dia, entrei numa fila, tinha um rapaz na minha frente e outro sendo atendido no balcão. Era uma fila única, quando chegou a vez do rapaz, ele falou “__Passa o senhor na frente”, eu falei “__Não, o senhor chegou antes”, e ele falou “__ É, mas o senhor veio muito antes”. ((risos)). Eu acabei passando na frente dele.

Então, eu não questiono isso, mas não faço questão de passar na frente por causa de idade. Não quero privilégio nenhum, eu quero
viver a minha vida, nada mais do que isso. Vivo feliz, moro com meu filho, tenho um filho que mora no Rio, com ele tenho pouco contato pessoal, só por telefone. Tenho a minha filha que mora aqui e no domingo eu escolhi para almoçar com ela, combinamos isso. Fazemos uma vida normal, eu cuido de mim pessoalmente, se tem que levar o carro na oficina eu que levo. Hoje meus filhos são meus pais,.... agora sou filho dos meus filhos ((risos)) e isso funciona muito bem há 14 anos. Tudo que eu preciso meus filhos me dão assistência, mas eu procuro fazer tudo sozinho. Enquanto eu puder ser eu, eu vou ser eu. Estou fazendo assim, eu faço a minha vida como se eu tivesse vinte anos. Dirijo, tudo que posso dirigir, vou às cooperativas, faço tudo que preciso. Nas  cooperativas, como tenho alguma experiência, posso ser útil para eles. Eu não perdi ainda o senso de capacidade, desculpe-me,
estou falando de mim para dar sua resposta e não para me vangloriar, absolutamente. É índole que tenho, e eu faço, aproveite ou não, fiz minha obrigação.

REVISTA - Gostaríamos de agradecer em nome do SESC a sua gentileza, sua alegria em nos receber.

CHEDA Na realidade, eu que fico agradecido com essa deferência. Espero que a minha colaboração - o que apresentamos e falamos - possa ser útil para alguém. Minha vida tem sido digna, graças a Deus, fico feliz quando posso doar alguma coisa para o outro.