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Um imenso lápis vermelho
Pensei em escrever sobre o meu professor inesquecível. Acarinho a ideia. Embalo, detono. Estouro de fl ashes, imagens incompletas. Misturança de traços, vozes, séries e matérias. Taquicardia. Relaxo. Foco. Lembrei e me revi em várias fases da minha vida escolar. Sorrisos e espantos alternados! Lembrava do nome, do jeitão, da cara das professoras do pré e do primário. Do ginásio, foi aos trancos e barrancos. Muitos professores. Do colegial e cursinho, só – forçando muito a memória – consegui redesenhar algunszinhos. A escola, decididamente, já não era o eixo da minha vida. Da faculdade de Pedagogia na USP recordo de todos. Não com nome e sobrenome, mas com o que tinham de marcante (empáfi a, megalomania, reacionarismo) e que pouco me marcaram. Como escolher o professor inesquecível? O abridor de caminhos? O sádico cobrante de rendimento? O folclórico? Aquele por quem me apaixonei para sempre aos 13 anos?
Elejo Dona Linda. Assim, sem sobrenome. Ela foi minha professora no terceiro ano primário. Fui sua aluna no Colégio Batista Brasileiro, onde fiz o semi-internato. Lá, maravilhada com os belos bosques, o enorme galpão pra jogar queimada, a bela escadaria da frente, a biblioteca recheada de livros, as inúmeras saletas com piano, os cultos protestantes e seus hinos glorificadores. Eu, menina judia, passeava por esse mundo durante todo o dia. Absolutamente fascinada! Na classe mista, meninos e meninas impecavelmente uniformizados viviam experiências pedagógicas marcantes com Dona Linda.
Pra mim, ela era uma mulher enorme, de tamanho descomunal, gordíssima, quase uma giganta. Não sei se era bonita ou feia para os padrões da época. Guardo a imagem dum rosto severo e de cabelos enrolados num coque. Roupa neutra, sem originalidade. Tão uniformizada quanto nós. Que idade teria? Pra mim, era velha. Talvez fosse uma garota recém-formada. Brava, sem sorrisos, incapaz dum gesto carinhoso ou dum afago especial. Durona, mal-humorada, seca, são os primeiros adjetivos que me ocorrem. Não me vem nenhuma imagem cálida, chamante.
Dona Linda enfatizava o aprendizado da dedoduragem. Quando saía da classe, escolhia um dos alunos para ir ao quadro-negro, onde deveria marcar com todas as letras os nomes de qualquer colega que piscasse ou se mexesse. E anotar quantas vezes estes atos atentatórios eram cometidos, contabilizando risquinhos. O bom estudante merecia controlar toda a classe, trair os amigos e até colocar os desafetos em dia. Ela possuía uma fé inabalável no processo de limpar a boca. Literalmente. Ouvindo um palavrão ou algo considerado por ela como impronunciável, imediatamente se munia de água e sabão para que o agressor mudasse seu repertório verbal e retirasse tal vocábulo de sua boca. Se não fosse suficiente, adicionava à água líquidos ou temperos de gosto intolerável. Daí em diante, silêncio ou gagueira.
O instrumento de trabalho favorito de Dona Linda era um imenso lápis vermelho. Ele era o todo-poderoso, que sublinhava erros do ditado ou cópia, anunciava desacertos nas respostas dos questionários, riscava soluções de problemas de aritmética, exigia repetição infinita de equívocos cometidos até a resposta única e certa ser incorporada. Vez ou outra, elogiava, mas sem muito entusiasmo ou eloquência. Terrorífico!
Passados tantos anos, ainda sinto calafrios com a lembrança desse lápis inclemente. Versado em apontar para exercícios extras durante o recreio, o dobro de lição de casa, ficar sozinho na imensa escola até terminar TUDO, copiar vinte vezes a grafia correta de cada palavra escrita de modo errado e outras alternativas lúdicas, divertidas e estimulantes para qualquer criança. Solidariedade e espontaneidade não faziam parte do repertório pedagógico de Dona Linda.
Lembro mal das informações escolares que recebi de Dona Linda. Tudo decorado. Afl uentes de cada margem do rio Amazonas, paradas em cada cidade de todas as linhas ferroviárias do Estado de São Paulo, datas de momentos históricos ditos relevantes. E as sabatinas? Provocadoras de insônia precoce, de tensão muscular. Com ela, vivi a rigidez, a dureza, a cobrança permanente. E o medo! Estilo militar à risca. Dona Linda me deixou a marca da déspota — não — esclarecida. Daquelas que têm e detêm o poder, pelo poder. Não como demonstração de experiência, de clareza, de levar a classe a efetivar uma proposta. Nada disso.
Voltei ao colégio alguns anos depois, para concluir o Normal (Magistério). Qual não foi o meu espanto quando, numa manhã, dei de cara com uma mulher pequena, nem magra nem gorda, nem velha nem jovem, que me cumprimentou sorridente. Era Dona Linda destituída do tamanho-do-medo. Foi aí que compreendi o que significa a proporção afetiva para a criança: os objetos, as pessoas, os lugares têm o tamanho da sua importância e significado interno, e nunca a sua dimensão real, concreta, exata, objetiva.
Quando comecei a dar aulas para crianças, busquei vários caminhos. Quis momentos divertidos, cheios de surpresas, momentos organizados, concentrados, produtivos, vivências, experimentações, sentimentos de gostosuras e importâncias. Encantamento e crescimento. Quis ter um relacionamento aberto, poroso, ser respeitada. Não sabia como, mas logo intuí que não seria — jamais — pelas vias, atalhos e pontes de Dona Linda. Com ela aprendi, claramente, como não queria ser. Nem remotamente. Pra nenhum aluno. Foi meu modelo, meu paradigma. Funcionou. Fui cúmplice e não carrasca de meus alunos. E como é bom encontrar aqueles que foram meus alunos quando pequenos, me olhando com olhos piscando como crianças, baita sorriso aberto, dizendo: “Oi, Fannyzinha.” Suspiro aliviada. Na maior contenteza!
Nunca fui dona... Consegui não ser Dona Linda
Fanny Abramovich é educadora e escritora. Versão reduzida do conto originalmente publicado na antologia Meu Professor Inesquecível - Ed. Gente- SP- 1997, devidamente autorizado pela autora e organizadora.
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