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Vida longa à obra audiovisual
Fernanda Coelho é museóloga, especializada em arquivos audiovisuais. Desde 1979, integra a equipe de preservação do acervo da Cinemateca Brasileira. É graduada em Cinema pela FAAP e pesquisadora da experiência brasileira na conservação de acervos audiovisuais.
Como se define um material de acervo audiovisual e como nasce a ideia de cinemateca?
Hoje o termo que se usa é audiovisual, porque os suportes se diversificaram: há filmes, vídeos, documentos digitais, internet. Mas antes, o termo usado para esse acervo era cinemateca ou filmoteca, porque a natureza era a película. Qualquer obra audiovisual organizada de determinada maneira, e possível de se reproduzir, é um documento audiovisual e, portanto, pode estar num arquivo.
Os arquivos audiovisuais têm histórico diferente dos museus. Várias cinematecas do mundo nasceram dos clubes de cinema, porque compreendiam esse acervo como uma forma de arte e não apenas como entretenimento. Na passagem do cinema mudo para o sonoro, os clubes de cinema começam a ir atrás dos filmes mudos e percebem que muitos já haviam desaparecido. Esses grupos tomam consciência da perda que o cinema já estava sofrendo. Surgem as cinematecas e o pensamento de arquivo, como uma fonte histórica. Hoje, sabe-se que houve no mundo uma perda de 80% do acervo de cinema mudo; e no Brasil, de 92%.
Quais critérios são usados na escolha do material a ser arquivado?
A princípio, não há seleção, você aceita tudo, porque você já começa tardiamente esse processo. Aceita-se tudo, porque é memória audiovisual e vai para um acervo audiovisual. Apenas com o surgimento da televisão, e especialmente após a década de 1950, com o videotape, é que se passa a trabalhar com a ideia de seleção, porque a produção de TV é diária e, portanto, muito volumosa. Hoje, por exemplo, já não se guardam sobras de filmes de ficção, o que vale é a obra finalizada. A discussão de seleção é mais recente.
Que fatores podem interferir na preservação do acervo audiovisual?
Há duas camadas num acervo audiovisual: a física e a informação. Na física, falamos de dar longevidade ao suporte, o que envolve a maneira de manipular. A questão mais importante para ter sucesso nessa missão é climatizar a área de guarda. Do ponto de vista da informação, a maior ameaça no mundo digital é a obsolescência tecnológica. Em três anos, substitui-se o software. Em cinco, a mídia. Ou seja, em dez anos você perde aquele arquivo, porque já não tem mais o programa ou a player para acessá-lo. Então, a conservação física pode até ser garantida, mas o arquivo se perde por conta dos avanços tecnológicos.
Por ser um País de clima tropical, o Brasil tem desafios ainda maiores na conservação de acervos?
O Brasil e todos os países de clima quente e úmido têm um problema extra para resolver. Nossa média anual de umidade relativa é de 70%. O fungo não se desenvolve com umidade inferior a 60%. Sabemos que nada é eterno. Todas as atitudes da equipe de preservação são para alongar essa obra e dar tempo para duplicá-la. Quando você não climatiza esse material, otimiza a velocidade de reação dos processos degenerativos. Se estamos num país cujo clima não é favorável e contamos com poucos recursos, é preciso ganhar tempo para a duplicação. Duplicando, eu estou salvando esse arquivo. Mas o processo de duplicação também implica uma perda natural pela migração de mídias. Por isso, quem trabalha com preservação sabe que não deve eliminar os originais, a menos que estejam em condições que ponham em risco o restante do acervo. O tempo é o maior teste. Então, é preciso ter cuidado. Não sou contra o mundo digital, mas cada objeto tem sua especificidade e é preciso compreender bem e tomar as atitudes corretas para preservar a longo prazo. Isso também ocorreu quando passamos do preto e branco para o colorido ou do cinema mudo para o sonoro.
A preocupação com preservação está presente entre os realizadores de obras audiovisuais?
Essa preocupação é crescente, mas ainda é uma batalha junto aos produtores para que entendam que estamos na mesma cadeia. Uma obra preservada é ponto de partida para outras obras. Alguns cineastas, como o Cacá Diegues ou o Hector Babenco, sempre se preocuparam em deixar obras em arquivos. Os curta-metragistas também costumam levar suas obras para arquivos. Mas, de modo geral, não é uma relação tranquila, porque o pensamento de preservação a longo prazo conflita com interesses mais urgentes que estão presentes no lançamento de uma obra, como a distribuição. Uma master para arquivamento pode custar mais do que três cópias de fitas para distribuição. Com o orçamento enxuto do cinema brasileiro, se o produtor não se preocupou com a questão logo no início do processo, pode não contar com verba para essa finalidade. Mas sinto que nos últimos anos essa consciência também é crescente e que ficou, com o advento da tecnologia digital, ainda mais evidente.
Do ponto de vista histórico e social, existe uma consciência de preservação de acervos audiovisuais como um patrimônio cultural?
Não, mas isso também está mudando. E quando os produtores mudam, isso provoca uma mudança no público também, porque eles são formadores de opinião. Antes, era mais comum recebermos pessoas com arquivos audiovisuais da família para entregar à Cinemateca Brasileira (que passa a ser depositária), quase numa postura de se livrar desse material. Hoje, a pessoa já entende esse acervo como um documento histórico com valor. E, no fundo, acho que esse comportamento reflete uma mudança do próprio Brasil com relação à sua memória e sua história.
Como se dá a relação entre preservação e o acesso ao acervo por pesquisadores, realizadores de audiovisual e a população em geral?
Os pesquisadores, particularmente, reclamam da dificuldade de acesso. Entendo a reclamação deles, porque de fato muito material não está acessível. Mas arquivar não é só guardar e dar acesso. É preciso preservar, impedir que aquilo sofra danos. É uma responsabilidade que vai além. O processo de guardar, documentar, catalogar é complexo. Implica em indexar, colocar na base de dados, formar pessoas – porque não existe curso próprio para formar profissionais para preservação de audiovisual –, criar processos dentro do arquivo. Só depois de feito tudo isso é que você consegue dar acesso ao acervo.
Além de ser um processo grande, é caro. E dar acesso, hoje, significa digitalizar o acervo, porque você não vai disponibilizar numa mídia que o pesquisador não consiga manipular. Não temos a situação ideal. Penso que o maior desafio dos arquivos de países como o nosso é o que fazer até conquistar esse ideal, qual passo dar agora, dentro das condições que se têm.
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