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O que resta de Glauber no cinema brasileiro?

RUY GARDNIER

Quando se está diante da obra de Glauber Rocha, a tendência é recorrer logo a superlativos para caracterizar sua contribuição não somente ao cinema brasileiro mas à cultura brasileira do século XX em geral: além de cineasta, ele foi também homem de letras – poeta, romancista, dramaturgo –, agitador cultural e um incansável polemista que discutia com propriedade e tinha olhares originais sobre nosso processo cultural, sobre nossa literatura e, como um esquerdista utópico/cósmico/heterodoxo, sustentava teses singulares sobre política e economia mundial. A tendência aos superlativos é, portanto, natural, mas ela exprime pouco. De um lado, ela é um atalho fácil para dar conta da diversidade e da intensidade de sua obra no ambiente intelectual/estético da segunda metade do século passado. Do outro, ela suscita um endeusamento automático que não faz nenhum bem ao artista, sobretudo alguém que viveu e criou no meio do turbilhão – e cuja arte não só exprime, como, sim, é o próprio turbilhão, um “riverão”, parafraseando o título de seu único romance publicado, traduzindo o opulento riverrun de James Joyce.

Uma das teses comuns afirma que a existência de Glauber Rocha se confunde com a existência do cinema brasileiro. É um evidente exagero, porque o cinema brasileiro era ativo e potente muito antes de Glauber rodar seu primeiro metro de filme – desde o forte apelo popular das chanchadas até os prêmios no exterior, especialmente o prêmio concedido em Cannes em 1953 para O Cangaceiro, de Lima Barreto – e sua morte não impediu que nosso cinema continuasse a seguir seu curso. Esse exagero, no entanto, carrega uma real carga de verdade: foi graças aos filmes de Glauber Rocha e a seu sistemático bombardeio nos meios intelectuais que o cinema brasileiro passou a ser um tema sério de discussão em termos de arte e indústria no país, fazendo um giro brutal de 180° em relação ao desprezo e achincalhe habituais com que era recebido nos círculos dos doutores.

Mesmo antes de rodar seu primeiro longa, Glauber Rocha foi o principal artífice do que veio a ser denominado de Cinema Novo, um cinema jovem, ágil, que afrontasse os ilusionismos e a ideologia de entretenimento do cinema vigente – Hollywood em primeiro lugar – para ser um instrumento de compreensão das formas de vida do brasileiro e das estruturas (mentais, políticas, sociais etc.) que norteiam sua existência. Esse tipo de olhar já era visível em cineastas surgidos nos anos 50, como Nelson Pereira dos Santos (Rio 40 Graus) e Roberto Santos (O Grande Momento), mas foi Glauber aquele que unificou todos esses esforços individuais na busca de um movimento. “Cinema Novo é quando o Glauber está no Rio”, dizia Nelson Pereira. Mas foi muito mais que isso: foi uma fonte de inspiração, autoestima e energia para toda uma geração de cineastas que se empenharam em captar o espírito do tempo e do lugar, como Paulo Cezar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, David Neves, Gustavo Dahl, Leon Hirszman, Carlos Diegues e outros.

Mas são os filmes, não a movimentação ideológica, que dão a maior envergadura à trajetória e eternizam o nome de Glauber Rocha na história do país. Em termos de repercussão, dois filmes se destacam, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, lançados respectivamente em 1964 e 1967.

O primeiro dramatizava a vida de um trabalhador nordestino explorado que recorria primeiro à fé, simbolizando a insurreição de Canudos, e depois às armas, simbolizando o cangaço, em busca de justiça. Mais importante do que a fábula, no entanto, era a linguagem visual: uma luz áspera e a exaustão do tempo, associados a um modo épico, febril, de atuação, e a uma montagem por vezes abrupta, de choque, criavam um estilo intenso e original. No ano seguinte, em 1965, num congresso em Gênova, Glauber falava em “estética da fome” (em francês ele preferia chamar de “estética da violência”) para tentar definir um estilo terceiro-mundista que seria o do Cinema Novo mundial, brasileiro, cubano, africano etc. Com Terra em Transe, seu longa seguinte, Glauber carnavalizou o processo político brasileiro, criando um redemoinho desesperado em que populismo, messianismo religioso, exploração multinacional, entreguismo da burguesia e impassibilidade do povo eram jogados na cara do espectador, ofendendo teses da direita a da esquerda.

Apesar de sua indelével permanência no imaginário do cinema brasileiro, nossos filmes parecem não beber muito de sua fonte. Mesmo aqueles filmes que se querem mais radicais não fazem uso da principal articulação criada por Glauber, a de linguagem visual e política (a vanguarda brasileira hoje, se há uma, aponta mais para lirismo do que para a provocação e a investigação – o que é lícito, diga-se, pois os tempos são outros). Em todo caso, mesmo sem influência direta, sua aura ainda faz diferença, às vezes até como um ícone confortável. A marca radical, porém, jamais será apagada.

Ruy Gardnier é jornalista e crítico de cinema. Trabalhou durante cinco anos com Paloma Rocha, filha de Glauber.

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