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Cinema livre
O poeta Sérgio Vaz, 47, criador da Cooperifa, movimento de valorização da cultura na periferia promovido na região do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, inaugurou em 2008 o Cinema na Laje, projeto que fomenta a produção e a exibição de documentários pela comunidade local. Realizadas em uma sala de cinema montada ao ar livre, na cobertura do Bar do Zé Batidão, as sessões contam com a presença de diretores, atores e produtores, que após os filmes participam de debates. As projeções, gratuitas e com distribuição de pipoca, ocorrem na primeira e na terceira segundas-feiras do mês.
Qual a importância do cinema nacional na inclusão da parcela mais carente da população?
A arte tem o poder de transformar as pessoas em cidadãos. O Cinema na Laje busca fomentar o público de cinema. Hoje, imaginar que o cara na periferia de São Paulo não tem dinheiro para ir ao cinema é um engano. Não vai porque não tem esse hábito. Eu sempre fui ao cinema, mesmo sendo pobre. É uma grande contradição: cada dia há mais filmes e menos cinemas no Brasil, e cada dia se vendem mais filmes piratas.
Portanto, as pessoas gostam de filme e não gostam de cinema. Nossa ideia não é exibir o filme pelo filme, pois é preciso haver o debate para a formação de público. Assistir a um filme do Glauber Rocha e discuti-lo são duas coisas diferentes. Um filme como Titanic é lindo, mas não gera discussão.
As salas de exibição, de uma maneira geral, afastam esse público?
Elas intimidam, o shopping intimida, elitiza. E não é pelo preço da sessão. O Cinema na Laje tem um lanterninha vestido a caráter, como havia nas salas antigas, e a pipoca é grátis. Chegamos a receber pessoas de 60 anos indo pela primeira vez ao cinema, a um projeto de cinema.
Como surgiu a ideia do Cinema na Laje?
Sempre gostei muito de cinema. Lembro-me de certa vez ter assistido a Cinema Paradiso e pensado: “Que coisa mais simples! Quem quer fazer cinema, que faça. Quem quer ser visto, é visto”. Um dia falei pro Zé, dono do bar do Batidão, que podíamos fazer um cinema, e ele topou. Disse a ele que, se desse a pipoca, eu arrumaria alguém para projetar. E assim surgiu o Cinema na Laje, um lugar para passarmos documentários pertinentes à nossa realidade – nada de reproduzir filmes de Hollywood. Não é o caso de tratar as pessoas da comunidade com se elas fossem pobrezinhas e estivéssemos fazendo alguma coisa por elas. Projetamos curtas feitos por garotos da comunidade. No ano passado fizemos nossa primeira mostra, com oito documentários de curta metragem, com o apoio do Itaú Cultural. Em agosto devemos realizar outra. O foco é dar vazão à produção da periferia. Não temos apoio do governo – a maioria das coisas que fazemos é na raça. Nunca participamos de editais. Há editais que só um escritório pode fazer, um ser humano que faz arte não consegue – são cem páginas, termos técnicos.
E nem sempre as empresas gostam de associar sua marca a projetos que despertam as pessoas. É legal quando uma empresa patrocina, participa, discute, mas não interfere na produção. Algumas interferem. Eu sou um entusiasta, sou o cara que acorda o bando, que bota fogo e depois vê como apaga. O sonho é assim: às vezes dá certo, às vezes dá errado. Se você fizer a conta, fizer cálculo, não é sonho.
Como você percebe a receptividade dos diretores brasileiros ao projeto?
Eles não só liberam os filmes como vêm aqui ou mandam alguém da produção para o debate. Já exibimos Utopia e Barbárie [2010], do Silvio Tendler. Quando exibirmos Quebrando o Tabu [2010], o Fernando Grostein [Andrade] virá para o debate. Vamos passar Febre do Rato [2012] com a presença do Cláudio Assis. Para eles é um orgulho que seus filmes passem na “quebrada”.
Esse envolvimento alimenta a produção cinematográfica na própria periferia?
Surgem diretores e atores. Só os saraus culturais na Cooperifa geraram cerca de dez documentários. Arrisco-me a dizer que a periferia de São Paulo hoje vive a mesma efervescência cultural que a classe média vivenciou nos anos 1960 e 70. Estamos vivendo a nossa primavera periférica, o que alguns não enxergam, veem como uma moda. Não é uma moda; as pessoas estão se apoderando da arte.
Em sua opinião, qual o potencial criativo dessa população?
A arte desperta o jovem. A juventude não cabe na gente, é necessário extravasar, e muitos fazem isso na violência, na bebida, na droga. A arte oferece um caminho diferente, o cara consegue ser pulsante produzindo, com autoestima, com cidadania. E, como ela está chegando agora à periferia, uma coisa nova para todos nós, há muito mais paixão, muito mais entrega. Esse tem sido o fator de multiplicação. Sem serem coitadinhas, essas pessoas agora são os protagonistas, com uma outra linguagem, um outro foco. Não se trata de alguém que chega com R$ 10 milhões para fazer uma ONG na periferia para evitar que todo mundo seja drogado, como se todo mundo fosse virar drogado se essa ajuda não viesse para nos salvar. Essa é a lógica dos jesuítas, a de catequizar. Nós queremos manter a nossa pegada, a nossa cultura de periferia, o jogo de várzea, o samba na laje, a feijoada, a pipa. Começamos a escrever sobre nossas histórias sem um atravessador, por isso às vezes as lâminas parecem mais afiadas.
Que tipo de linguagem predomina nessas produções?
Sempre a de denúncia. Não chegamos ainda à fase da ficção. Somos privilegiados porque não temos a arrogância daqueles que dizem saber tudo sobre cinema: todo mundo aprende junto. E, nos documentários e nos curtas, as pessoas se parecem com a gente, são os pardos, os negros, os brancos pobres. O cara da sua cor beija na boca e diz “Eu te amo”. Cria-se uma empatia.
O grande cinema nacional de hoje ajuda nessa identificação?
Acho que ajuda. Nas novelas, não vejo personagens negros relevantes, estão sempre na cozinha. O cinema consegue fazer essa reparação. O 5 x Favela – Agora por Nós Mesmos [2010] é um filme sem violência feito na favela. É um olhar que começa a ser um pouco mais romântico sem ser pedante.
Os cineastas que frequentam o Cinema na Laje incorporam o engajamento da comunidade a suas ideias? Essa integração ajuda a constituir uma linguagem característica, forte, do cinema brasileiro?
O cineasta deve entender o povo, e não o povo entender o cineasta. É muito mais fácil para ele pegar os R$ 20 milhões de uma lei de incentivo e fazer o filme que quiser, sem se preocupar se o público vai gostar ou não. Ele já tem o dinheiro, não precisa da bilheteria. Se ele se preocupar em fazer um filme que gere discussão nos bares, nas praças, aí teremos um cinema brasileiro, sem imitar o europeu, o iraniano ou o americano. O cineasta precisa ser engajado.
Uma parte do valor que recebe da lei deveria ser obrigatoriamente destinada à formação de público, e já no projeto ele teria de especificar como se daria essa formação, se seria levar o filme às escolas, se os artistas fariam palestras, ou se haveria exibições em praças públicas. O Estado tem a obrigação de fomentar a cultura, mas não há contrapartida. Se existe prato popular, se existe albergue, por que não criar um cinema popular via leis de incentivo?
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