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Eleazar, maestro genial e espirituoso

por Cecilia Prada

Comemoramos em 2012 o centenário de nascimento de Eleazar de Carvalho (1912-1996), músico extraordinário, dotado de personalidade marcante e que se tornou, indiscutivelmente, o maestro brasileiro que obteve maior representatividade no cenário internacional. No Brasil, foi diretor artístico e regente titular da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) por mais de um período, da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) de 1973 até o ano de sua morte, em 1996, e igualmente das sinfônicas de Porto Alegre, do Recife e da Paraíba. De 1947 em diante, dividiu seus compromissos no país com a regência das maiores orquestras do mundo, ora como titular, ora como convidado – entre as quais as filarmônicas de Viena, de Berlim e de Nova York, e as sinfônicas de Boston, Londres e Paris. Sobe a 61 o número de orquestras estrangeiras em que atuou, 43 delas na Europa e 18 nos Estados Unidos, sem contar suas passagens pelo Japão e pelo Oriente Médio. Foi titular da Saint Louis Simphony Orchestra, de 1963 a 1968, tendo com ela realizado mais de mil concertos. E também, de 1968 a 1973, da Pro Arte Symphony Orchestra, em Nova York.

Além de maestro, Eleazar foi professor de regência em várias universidades americanas, notadamente em Tanglewood (local do Festival de Verão de Boston), na Juilliard School, de Nova York, e em Yale. Entre seus alunos despontaram muitos maestros que se tornariam famosos, como Zubin Mehta, Claudio Abbado, Seiji Osawa, Gustav Meier, Harold Farberman e Charles Dutoit. No Brasil, em 1973, Eleazar reformulou o Festival de Inverno de Campos do Jordão (criado em 1970 pelo maestro Camargo Guarnieri e Luís Arrobas Martins), colocando-o nos moldes do realizado em Tanglewood, qual seja, direcionando seu foco para a descoberta e o estímulo de jovens talentos musicais.

A Osesp, que fez em agosto passado uma turnê rápida mas espetacular pela Europa com a atual titular, a americana Marin Alsop, elevou mais uma vez – segundo a crítica especializada – a cotação do Brasil, internacionalmente, no campo da música erudita. Basta ver o que, no artigo “Encanta a Holanda”, publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, em 21 de agosto de 2012, disse uma crítica de Amsterdam, Biella Luttmer: “A Osesp é a nova sensação do circuito mundial. [...] A América do Sul se tornou um jogador sério no cenário mundial das orquestras”. O maestro cearense que, em 1973, assumiu como compromisso principal de sua carreira a reorganização de uma orquestra que, fundada em 1954, chegara a ser desativada logo depois, e aceitou o desafio de colocá-la no nível das sinfônicas internacionais que dirigiu teria motivos de sobra para se orgulhar de sua obra. No final da vida, Eleazar conseguiu ter forças suficientes para ver os sinais iniciais da reorganização da Osesp e reger o primeiro concerto em espaço da Estação Júlio Prestes, onde mais tarde seria instalada a sede oficial da orquestra, com a criação da Sala São Paulo.

Apesar das homenagens que lhe foram prestadas em vários estados – entre as quais três concertos especiais da Osesp em sua honra –, há unanimidade entre músicos de que representaram pouco em relação à importância de sua figura e do legado que nos deixou. O que é preciso fazer, isso, sim, é chamar a atenção e exigir tanto dos setores oficiais quanto do meio empresarial o apoio a projetos que tenham como propósito salvaguardar e divulgar o material sobre Eleazar hoje conservado em arquivos espalhados pelo mundo. Muita coisa está com a família (principalmente no acervo da pianista Jocy de Oliveira, sua primeira mulher), em arquivos de orquestras e instituições, e nas teses e trabalhos de pesquisa. Só assim será possível elaborar uma biografia bem documentada e, paralelamente, lançar CDs e DVDs dos concertos que ele realizou.

Fernando Hashimoto, músico e docente do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é um dos que possuem material de pesquisa inédito e importante sobre o grande maestro. Ele recebeu o Barry Brook Award pela tese de doutorado “Variations on Two Rows for Percussion and Strings by Eleazar de Carvalho”, defendida na City University of New York e classificada como “a melhor do ano 2007/2008”. Ela versa sobre a peça criada pelo percussionista Richard O’Donnell, da orquestra de Saint-Louis, por solicitação do maestro Eleazar.

Hashimoto realizou também um levantamento minucioso do material deixado nos Estados Unidos sobre o maestro brasileiro, durante os quase 30 anos em que viveu no país. Visitando as principais orquestras e instituições em que Eleazar atuou, o professor do Instituto de Artes conseguiu reunir – como disse ao “Jornal da Unicamp” (edição 403, agosto/2008) – um conjunto composto por aproximadamente 300 críticas, publicadas em jornais e livros, sobre o desempenho dele como regente: “Isso me deu uma visão mais precisa e abrangente de sua importância no cenário da música erudita. De modo geral, os críticos o qualificavam, desde o primeiro concerto oficial, como um intérprete profundo e sério”.

Tocador de tuba

Eleazar Segundo Afonso de Carvalho – tal era seu nome completo, um tanto extravagante, pois “Segundo” foi dado por seus pais em memória de outro filho do mesmo nome, que não vivera. Um nome que resultou forte, adequado à personalidade marcante daquele filho de um capitão do exército e de uma descendente de índios tabajaras, nascido em 28 de julho de 1912 em uma cidadezinha perdida no interior do Ceará, a 380 quilômetros de Fortaleza. Pode-se imaginar o que seria o moleque Eleazar Segundo, um superdotado de inteligência, de sensibilidade, naquela vida limitada, destinado a talvez embotar em bebida, em amargura, seus dons não aproveitados – não fosse, segundo ele mesmo contava, uma circunstância dessas que o destino coloca pelos caminhos dos humanos. Era tão arteiro que, para puni-lo, a fim de que “tomasse jeito”, o pai resolveu mandá-lo, aos 11 anos – outros biógrafos falam em 13 anos – para a Escola de Aprendizes de Marinheiros, em Fortaleza. Essa era, pelo menos, a versão que o próprio maestro dava de como deixara sua cidadezinha natal. Bem-humorado, dizia ainda que “se tornara músico por ser guloso”, pois, na Marinha, notava que os meninos que tocavam na banda recebiam uma alimentação superior, e por esse motivo pediu para entrar nela.

Um testemunho curioso do início da carreira de Eleazar pode ser encontrado na internet, no blog do advogado Alberto Murray Neto, que pertence à família Padilha, de forte tradição tanto nas carreiras militares como no campo dos esportes e da cultura. Ele relembra que seu bisavô materno, o capitão de mar e guerra da Marinha João Avelino de Magalhães Padilha, viu limpando o convés de seu navio um menino pobre que nas horas vagas tocava flauta. E resolveu dispensá-lo do serviço, para que pudesse se dedicar ao estudo da música.

O maestro Eleazar de Carvalho, muitos anos depois, teria oportunidade de mostrar sua gratidão, seu respeito à memória do homem que lhe permitira uma vida de glória. Na década de 1970 – conta Murray Neto –, seu tio, Pedro de Magalhães Padilha, ao assumir a Secretaria de Esportes, Turismo e Cultura do Estado de São Paulo, queria renovar a Osesp. Então, mandou uma mensagem ao maestro, que passava férias no Rio de Janeiro. Queria nomeá-lo diretor da orquestra paulista. A resposta pronta foi: “Não. Estou bem nos Estados Unidos. O Brasil não dá atenção à música clássica, à cultura”. Mas o secretário tinha uma carta secreta convincente que tirou da manga, transmitida assim pelo intermediário: “Maestro, então vou lhe contar uma coisa que me pediram para dizer somente em último caso. O secretário em São Paulo é o Pedro Padilha, neto do capitão João Avelino”. Eleazar então respondeu: “Diga ao secretário que estou indo imediatamente para São Paulo”.

Toda a vida de Eleazar foi marcada pela descomunal concentração de atividades que conseguia desenvolver simultaneamente e com êxito. Aos 16 anos, já fazia parte da Banda dos Fuzileiros Navais do Rio de Janeiro; tocava tuba, que foi sempre seu instrumento predileto, e estudava solfejo e harmonia. Um ano mais tarde resolveu fazer concurso para entrar na Orquestra do Teatro Municipal, mas foi obrigado a sair da Marinha, perdendo todos os direitos adquiridos. Em uma época em que os músicos se viam obrigados a viver quase como marginais, o jovem, determinado já em sua vocação, não hesitou em aliar à sua atuação na orquestra a participação em conjuntos populares, que tocavam “em quase todos os bailes” – como ele próprio dizia. Fazia parte do American Jazz, um grupo formado por Almirante, Donga e Pixinguinha, enquanto estudava regência e composição com Francisco Mignone, no Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro. Ary Barroso, que foi sempre grande amigo de Eleazar, dizia: “Ele foi meu companheiro em orquestra de dança, tocava tuba – nos intervalos, harmonizava trechos de melodias que lhe eram dadas num curso do instituto”.

De porta em porta

Numa entrevista de 1985, o jornalista Assis Ângelo, especialista em música popular, conseguiu extrair de Eleazar informações importantes desse período e sobre sua definitiva escolha pela música erudita: “Entre 1938 e 1944, eu já estava na Orquestra do Teatro Municipal e terminava meu curso de regência e composição, mas, para poder viver, fazia de tudo, uma mistura musical danada”. Não só se exibia “em qualquer baile”, em clubes, e até no intervalo dos filmes nos cinemas, com seus parceiros, como chegou a gravar discos de marchinha com Carmen Miranda, que naquele tempo era apenas “uma portuguesinha estreante”. Além dos muitos dobrados que fizera para bandas, chegou a compor uma marchinha de carnaval, que não obteve sucesso algum e cujo título dizia ter esquecido. Sabia, porém, que a assinara com seu nome ao contrário, Razaele. “A gente ia até para as ‘batalhas’ de confete. Circulávamos dentro de um carro, eu sentado na capota tocando tuba e eles executando seus próprios instrumentos. Também fazíamos bailes todos os domingos na sede do Botafogo Futebol Clube.”

Eleazar estreou no campo da música erudita em 1939 com sua primeira ópera, O Descobrimento do Brasil, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, mas foram poucas suas composições porque logo fez a escolha definitiva pela regência. Todavia, o meio musical do Rio de Janeiro, então capital da República, era ainda limitado demais para o potencial de ação e de criação daquele cearense excepcional. Depois de tantas experiências, traçou seu caminho: tinha de deixar o país para aperfeiçoar-se. Em 1946, partiu para os Estados Unidos, “com a cara e a coragem”, para tentar a sorte. Na entrevista a Assis Ângelo o maestro conta que, ao se despedir de Gustavo Capanema, ex-ministro da Educação de Vargas e que lhe dera um prêmio por sua segunda ópera, Tiradentes, este perguntou-lhe o motivo de sua decisão. Eleazar respondeu: “Eu preciso estudar”. Ele achava péssimo o ensino de música no Brasil. Voltando ao país, 26 anos mais tarde, consagrado mundialmente como regente, reencontrou Capanema, já então senador, que o inquiriu novamente sobre o que achava do ensino musical no país, e sua resposta foi: “Continua do mesmo jeito, senador, e no mesmo lugar, sem professores, sem nada. Nossa escola de música é medíocre e nosso ensino está atrasado uns cem anos pelo menos”.

É quase espantosa a atitude daquele brasileiro de 34 anos, desconhecido, pobre, ao chegar aos Estados Unidos, disposto a vencer em pouco tempo. Trata-se de uma história que, contada por ele mesmo, está estampada em várias publicações: seu objetivo, tido por muitos como “uma excentricidade”, era reger uma das três grandes orquestras americanas, a de Boston, a de Filadélfia ou a de Nova York. Ele não hesitou em bater de porta em porta. Em Nova York foi chamado de louco e chegaram ao insulto: ofereceram-lhe um concerto no Carnegie Hall, contanto que no cartaz se apresentasse vestido de índio. Eleazar respondeu: “Há muito tempo não visto tanga”. Eugene Ormandy, maestro titular da Orquestra de Filadélfia, achou absurda sua pretensão e disse: “Vá para o Arizona. Você precisará de 15 ou 20 anos para chegar até aqui!” Eleazar vingou-se bem: apenas um ano e meio depois, estava no pódio da Sinfônica de Boston, regendo a orquestra que era considerada a melhor dos Estados Unidos, designada até como The Throne (O Trono). O jovem maestro brasileiro fez questão de enviar a Ormandy dois ingressos para o concerto, com a cópia de seu contrato e um cartão onde escreveu: “Veja onde já estou!”

“Sorria como Mona Lisa”

O maestro russo Sergei Koussevitzky (1874-1951) foi o mestre e a referência fundamental de toda a carreira de Eleazar, que nunca deixou de admirá-lo, elogiá-lo e de manifestar sua gratidão. Deu até o nome dele a um de seus filhos, o maestro e violinista Sergei Eleazar de Carvalho. Assim resumia Eleazar seu apreço ao regente, retratado em uma entrevista à revista “VivaMúsica!”, em abril de 1996, transcrita na importante obra Arte da Regência, de Sylvio Lago (Algol Editora, 2008, 830 págs.): “Na parte intelectual, Koussevitzky deixou um forte legado musicológico. Fez-me compreender onde estão o sujeito e o predicado da música. Ensinou-me que a execução de uma obra sinfônica possui quatro elementos essenciais: articulação, pontuação, dinâmica e estilo. Na parte técnica, ensinou-me certas maneiras de, digamos, produzir sons com as mãos”.

Em sua fase inicial nos Estados Unidos, Eleazar se valeu de um artifício para se aproximar de Koussevitzky, que dirigia o Berkshire Music Center, em Tanglewood, escola de aperfeiçoamento de regentes. Disseram-lhe que os cursos já estavam em andamento e que o maestro não recebia ninguém. Eleazar, então, fez o seguinte: “Afirmei que trazia uma mensagem do presidente do Brasil e que esta deveria ser entregue ao mestre. Fui recebido. ‘E a mensagem?’, perguntou Koussevitzky. ‘É verbal, senhor’, respondi. E, apesar da reação de surpresa, continuei: ‘Peço-lhe cinco minutos à frente da orquestra. Se julgar que não tenho qualquer possibilidade, voltarei e viverei da caça e da pesca em meu país’”. Eleazar regeu, de cor, a Grande Páscoa Russa de Rimsky-Korsakov e foi aceito. No final do curso foi para Boston, onde dividiu com o maestro americano Leonard Bernstein – que fora seu colega em Tanglewood – atividades de assistente de Koussevitzky e de professor dos músicos.

Como regente, Eleazar manteve sempre uma atitude muito profissional, um tanto fechada, apesar de afetuosa, com seus músicos. A soprano Niza de Castro Tank, que sob sua batuta fez a parte de Ceci em O Guarani, de Carlos Gomes, conta que o maestro era muito exigente e objetivo com os músicos e cantores, mas nunca mal-educado. Apesar do temperamento brincalhão, mantinha-se reservado, fechado, sem nunca misturar a esfera profissional com a pessoal. “Naquele tempo”, diz a cantora, hoje recolhida à sua casa, em Campinas, “não havia isso de cafezinhos ou comemorações com os músicos após os ensaios. Maestro e músicos, cada qual tomava seu rumo.”

São numerosas, entretanto, as histórias saborosas, as “tiradas” de seu espírito brincalhão – presentes principalmente em suas entrevistas –, os episódios até pitorescos de sua carreira. Um grande número de ex-alunos ou de músicos de orquestras que dirigiu testemunham, hoje, seus méritos – inclusive pela internet, informalmente. Como Júlio Pastore, que diz, em comentário à matéria de João Luiz Sampaio, no “Estadão”: “Estudei na Escola Municipal de São Paulo, quando Henrique Dourado era diretor, e podíamos sentir quanto Eleazar marcou todos os que o conheceram. Mesmo depois de sua morte, o estilo de reger do grande mestre, como marcar o andamento batendo a mão esquerda no próprio peito no ritmo da obra, era repetido por seus discípulos regentes em nossas apresentações no Municipal. É algo que faz parte de nossa formação”.

A violinista Ana Ribeiro conta: “Tive o privilégio de tocar na OSPB [Orquestra Sinfônica da Paraíba] sob a batuta mágica de Eleazar de Carvalho na segunda metade da década de 1980. Eu era uma jovem estagiária e ele me chamava de ‘conterrânea’ por sermos cearenses”. Ana relata que certa vez ele estava falando com o naipe dos cellos, durante um ensaio geral, quando ela deu uma sonora gargalhada. Ele se virou e lhe perguntou: “Conterrânea, você já foi a Paris?” Ela, entre confusa e surpresa, fez que não com a cabeça. Então ele continuou: “Pois vá! Pegue o metrô em La Cité e desça na Estação Louvre. Quando você descer, o museu aparece logo à sua frente. Entre e procure a Mona Lisa. E faça como ela: sorria, não dê gargalhadas”.

No já referido acervo de Jocy de Oliveira, há vasta documentação referente ao estilo e às preferências musicais do marido, testemunhando a batalha que ele teve de enfrentar, em nível mundial, pela divulgação dos compositores contemporâneos, cujo repertório prevalecia em seus concertos, e em especial de seu grande ídolo, o brasileiro Villa-Lobos. E Jocy diz, sobre seu estilo de regência: “Ele tinha uma técnica clara, que lhe permitia reger qualquer coisa. Era genial montando a interpretação de uma obra, durante os ensaios. E, na hora do concerto, transformava-se em um ator. Eleazar tinha aquela chama que conquistava o público de imediato”.